
Crianças Yanomami morrem quase 10 vezes mais por causas evitáveis do que média nacional. Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro (2019-2021), ao menos 14 crianças menores de 5 anos morreram em decorrência de malária na maior Terra Indígena Yanomami, localizada entre Amazonas e Roraima. Além das mortes, a doença infectou milhares de crianças no período.
Considerando apenas 2019 e 2020, os últimos anos em que há dados nacionais disponíveis, foram oito mortes por malária na TI Yanomami, o equivalente a dois terços do total de óbitos nessa faixa etária em todo o Brasil, onde 12 crianças faleceram por complicações da doença.
Os números foram obtidos pela Agência Pública junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) integram uma lista de “óbitos por causas evitáveis”, classificação que abrange doenças tratáveis, como pneumonia, desnutrição, diarreia e verminoses, que inclui a malária.
Entre 2019 e 2021, ao menos 429 crianças menores de 5 anos morreram no território indígena por causas que poderiam ter sido evitadas ou tratadas, se for levado em conta esse critério. É uma média de 143 a cada ano, sendo os dados de 2020 e 2021 ainda inconclusivos.
A taxa de óbitos evitáveis de crianças com menos de 5 anos no Brasil foi cerca de 260 a cada 100 mil habitantes, de acordo com o DataSU. Na TI Yanomami, no mesmo período, a taxa foi de 2.400 mortes a cada 100 mil habitantes – 9,2 vezes mais crianças que perderam a vida, de acordo com a reportagem da Agência Pública.
Em 16 de setembro, a comunidade de Makabei, na Terra Indígena (TI) Yanomami, chorou a morte de uma criança de apenas 2 anos. Ela estava com malária, infectada pelo Plasmodium falciparum, o mais agressivo dos protozoários que que causam a doença, e desenvolveu malária cerebral, uma complicação grave que, salvo exceções, leva à morte.
Desde então, relegados ao descaso pela política de genocídio dos povos indígenas do governo Bolsonaro, o problema só se agravou, o que pode se comprovar pelos números apresentados. Chorar a perda de crianças virou uma triste realidade entre as famílias yanomamis.
“Choram todos os dias, todas as noites. Toda a comunidade, não só a mãe, a família inteira. Ficam de luto, chorando, de manhã, de tarde, de noite. Ficam chorando durante meses”, explica o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, que preside o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY).
Mais de 20 mil garimpeiros ocupam, de forma criminosa, a TI Yanomami. Incentivados pelo atual governo, que faz vistas grossas para às ações dos invasores nas terras demarcadas, eles agem ao arrepio da lei.
A consequência da presença predatória dos criminosos é o desmatamento, a contaminação dos rios por mercúrio usado para extração do ouro, o adoecimento das populações indígenas por doenças contagiosas espalhadas pelos invasores, além da violência, com estupros mortes – inclusive de mulheres e crianças.
A ausência do Estado e a corrupção do poder público são apontados como os principais responsáveis pela morte de centenas de crianças indígenas anualmente.
“Quando uma criança indígena morre, assassinada pela ganância dos predadores do meio ambiente, uma parte da humanidade morre junto com ela”, declarou o presidente eleito Lula (PT) em seu discurso após o segundo turno das eleições em outubro. O petista, durante a campanha, assumiu com a sociedade o compromisso de criar o Ministério dos Povos Originários.
O compromisso foi reforçado pelo presidente eleito dia 16 de novembro. “Vamos criar o Ministério dos Povos Originários para que os próprios indígenas garantam a sua segurança, paz e sustentabilidade. Os povos originários devem ser protagonistas de sua preservação”, disse Lula.
Uma das imagens recebidas pela Pública mostra uma página de um caderno com anotações. Enviada pela liderança indígena Fernando Yanomami, o registro traz o nome de dez comunidades da região do Palimiú, acompanhado do número de mortes por doenças, especialmente malária, ocorridas em cada uma delas. São 74, entre crianças e adultos. Não é possível saber se todos os óbitos computados foram contabilizados oficialmente.
A comunidade de Haxiu lidera a lista de óbitos, com 17 mortes. “Sem saúde, sem rádio, muito sofrimento lá. Tem garimpo, muito garimpo, invasão mesmo. Rio contaminado, sujo, lama, barro mesmo. Muito sujo. Morreram”, diz o líder indígena para explicar os motivos que levaram a aldeia à essa situação.
Para Júnior Hekurari, o que está ocorrendo é uma “crise humanitária”. “Fome, malária, todos os Yanomami com malária. E malária pega com fome, é morte certa. É muito triste. Eu já várias vezes clamei ao governo para ajuda”, diz.
“Eu já várias vezes clamei ao governo para ajudar, mas a ajuda não está conseguindo chegar nas comunidades. As comunidades estão sem medicamentos, não tem ação permanente [de saúde]”, denuncia a liderança indígena.
O pesquisador Paulo Basta avalia que trata-se de “um estado permanente de crise ambiental, social, sanitária, sob o ponto de vista de violação de direitos”. “É uma crise que vem progredindo de maneira a colocar os Yanomami numa situação de maior vulnerabilidade com o crescimento do garimpo nas terras indígenas”, explica.
O cientista, que é um dos responsáveis por uma série de estudos sobre os Yanomami conduzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Unicef, diz que a violência praticada pelos garimpeiros criou um clima de medo no território. Isso fez com que a Sesai deixasse de mandar profissionais de saúde para áreas de conflito conflagrado, avalia.
Com isso os indígenas foram “abandonados à própria sorte”, tendo que recorrer aos garimpeiros quando surge alguma demanda emergencial.
“É claramente insuficiente o serviço de saúde prestado a essa população. A cobertura das unidades de saúde é baixa, a qualidade do atendimento é péssima”, diz o pesquisador.
“Não há infraestrutura local, não há medicamentos em quantidade e qualidade suficientes, não há estrutura pra acolher pacientes com quadros graves, tampouco há estrutura pra fazer remoção desses pacientes pra unidades de saúde na cidade em tempo oportuno”, conclui Basta.

DESNUTRIÇÃO
Somado a isso, em 2021, 56,51% das 4.245 crianças Yanomami assistidas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y) tinham um quadro de desnutrição aguda (baixo ou baixíssimo peso para a idade). Em 20 dos 37 Polos Base do Dsei-Y, o índice era superior a 50%, chegando a 82,93% na região do Homoxi, uma das áreas onde o garimpo mais avançou nos últimos anos.
Os dados são ainda mais graves do que os apresentados pela Pública no ano passado, referentes a 2019, quando 54,32% das crianças Yanomami apresentavam desnutrição aguda, com o índice ultrapassando 50% em 18 dos 37 Polos Base.
Para estabelecer uma comparação, dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde revelam que, em 2021, 4,27% das 4,5 milhões de crianças menores de 5 anos no Brasil tinham um quadro de desnutrição profunda.
Se não bastasse todo esse quadro de violência, abandono e omissão contra esses povos, o Ministério Público Federal (MPF) identificou um esquema de desvio de medicamentos que deveriam ir para às comunidades Yanomami, além de superfaturamento.
Por causa disso, a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Yoasi, em 30/11), com 10 mandados de busca e apreensão em Boa Vista (RR). Os desvios teriam acontecido em 2020 e no ano passado. Ao longo do 2021, foram entregues menos de 30% dos medicamentos contratados. O esquema, que teria movimentado cerca de R$ 600.
Faltam de vermífugos à antibióticos usados no tratamento de pneumonia, além de remédios mais caros, com mais efeitos colaterais, para combater a malária. “No ano passado, foi feito um esforço tão grande pra formar o ‘kit covid’ e enfiar goela abaixo da população que hoje não tem cloroquina pra fazer tratamento de malária”, relata o médico e pesquisador da Fiocruz.
Ele alerta para a possibilidade de desenvolvimento de resistência dos parasitas causadores da doença por conta do uso indiscriminado de medicamentos mais fortes. Se não fosse a ajuda de ONGS e de outros atores da sociedade civil, que fizeram vaquinhas para comprar medicamentos, o quadro seria ainda mais grave, avalia o médico.
GARIMPO
No dia 30 de novembro, garimpeiros atearam fogo na Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) do Homoxi, que já está há mais de um ano fechada por causa de ameaças contra os profissionais de saúde que lá atendiam, em represália a terceira fase da “Operação Guardiões do Bioma”. Durante a ação, agentes da Polícia Federal e do Ibama destruíram aviões e equipamentos utilizados por garimpeiros ilegais que atuam na TI Yanomami.
Um mês antes – em 30 de outubro, o MPF em Roraima emitiu uma recomendação pedindo que o Ministério da Saúde nomeasse um interventor no Dsei-Y e que a Sesai criasse um grupo específico para acompanhar em tempo real a situação da saúde na TI Yanomami. No documento, o procurador da República Alisson Marugal destaca que, entre o começo de 2020 e a metade de 2022, foram empenhados mais de R$ 225 milhões na saúde Yanomami – o mais caro Dsei do Brasil –, sem que isso tenha se convertido em qualquer melhoria da saúde dentro da TI.