
“Entregar a Corsan pelo preço pago pela Aegea é um presente de Natal do Governo do Estado aos empresários privados. O Sindiágua vai provar que o valor pago, fica abaixo do valor real da companhia”, denuncia o presidente do sindicato
Sob suspeita de favorecimento, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) foi privatizada na terça-feira (20), em lance único e com ágio de apenas 1,15%, em leilão realizado na bolsa de valores de São Paulo.
O grupo Aegea será o novo dono da empresa, que foi arrematada por R$ 4,151 bilhões, pouco acima do preço mínimo de R$ 4,1 bilhões estipulado pelo governo do Rio Grande do Sul. Nenhum outro grupo apresentou proposta no leilão.
Na última sexta-feira (16), o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua) registrou em cartório prevendo justamente a Aegea como vencedora a partir de suspeitas de favorecimento.
A Aegea atua em nove municípios da região metropolitana de Porto Alegre no formato de parceria público-privada (PPP). A companhia também está presente em 317 municípios gaúchos por meio da realização de estudos, projetos, construções, operações, exploração e ampliação dos serviços públicos de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário.
“A água é pública e não pode ser privatizada. Vamos anular esse leilão”, afirmou Arilson Wünsch, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua). Ele sustenta que o valor mínimo estipulado para a venda da Corsan foi equivalente à arrecadação de 1 ano e 3 meses da empresa, e pelo preço equivalente ao lucro de apenas quatro anos. A afirmação, diz ele, está baseada na ofensiva judicial que o sindicato tem empreendido nas diferentes esferas.
“Há quatro medidas liminares que proíbem a assinatura do contrato com a arrematante exatamente porque afloram indícios de irregularidades neste processo. Agora vamos comprovar que essas irregularidades são reais e causam um enorme prejuízo ao Estado e ao povo do Rio Grande do Sul”, declarou o dirigente.
A assinatura do contrato está prevista para 20 de março de 2023, mas está proibida pela Justiça de ocorrer antes do julgamento de mérito das ações em andamento.
“A companhia foi vendida por preço pífio, a um único licitante, que era de todos conhecido muito antes sequer da publicação do Edital. É a legítima crônica de um prejuízo anunciado”, afirmou o dirigente, que estima o valor patrimonial da companhia em R$ 120 bilhões.
“Entregar a Corsan pelo preço pago pela Aegea é um presente de Natal do Governo do Estado aos empresários privados. O Sindiágua vai provar que o valor pago, fica abaixo do valor real da companhia”, completa Wünsch.
HISTÓRICO DESFAVORÁVEL
Os serviços da Aegea já são conhecidos da população do Rio de Janeiro. A empresa venceu a disputa de dois dos quatro blocos da concorrência pública, promovida pelo Estado do Rio para a venda da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), em abril. A partir da compra, a empresa adquiriu os direitos para explorar os serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água para 35 municípios do estado, incluindo a capital fluminense.
O edital contempla a execução de obras de infraestrutura, melhorias, manutenção e operação dos sistemas, além de prever investimento de R$ 30 bilhões, nos 35 anos de contrato. Na prática, não é o que vem acontecendo. No decorrer deste ano, a imprensa mostrou, por diversas ocasiões, o problema da falta de água enfrentado pela população dos bairros e comunidades mais carentes do Rio de Janeiro. Sem contar, que a água, quando raro chegava nas torneiras dos consumidores, apresentava odor e condições impróprias para o consumo.
“Esses recursos das outorgas estão para além do saneamento básico. Já que decidiram vender um patrimônio público, o mínimo a ser feito agora é reverter esse recurso para o público e não para o privado. Esse dinheiro deveria estar sendo usado em melhorias estruturais das cidades, mas falta controle”, criticou Carolina Rodrigues, educadora da Fase RJ, organização não-governamental que atua em defesa da melhoria da qualidade de vida das populações carentes.
DINHEIRO DO BNDES
No Brasil, vale destacar que a entrega das empresas públicas prestadoras de serviço envolve capital do BNDES, com é o caso da Aegea. Contraditoriamente, após arrematar as empresas, muitas vezes por um preço abaixo do valor real, as tarifas adotadas pelos novos controladores são exorbitantes.
“Licitar concessões tendo como critério o maior valor de outorga ofertado pelos licitantes é atraente para governadores e prefeitos com dificuldades de caixa. Mas gera graves distorções: nas concessões do Amapá, Alagoas e Rio de Janeiro, os valores das outorgas totalizam R$ 29,5 bilhões a serem pagas à vista enquanto os investimentos a serem feitos ao longo dos 35 anos de duração dos contratos totalizam R$ 45,8 bilhões”, observa o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS).
“É evidente o impacto negativo das outorgas sobre a tarifas, portanto sobre a acessibilidade econômica dos usuários de menor renda, onde se concentra o déficit de atendimento”, diz. “O dinheiro das outorgas não será gasto em saneamento básico. No caso do Rio de Janeiro, existem denúncias de que os recursos foram usados para outros fins, alheios à prestação de serviço de saneamento que deveria ser realizado pela empresa”, denuncia o parlamentar.
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Poluição no rio Jubilee adjacente às obras de tratamento de esgoto de Slough, gerenciadas pela Thames Water, em abril de 2022 – Foto: Maureen McLean/The Guardian
“A privatização é o deus que falhou”, diz The Guardian
A decisão de privatizar o setor de água e saneamento no Brasil caminha na direção oposta ao que está acontecendo pelo mundo. Preços estratosféricos da conta de energia, serviços de baixa qualidade, poluição das águas e lucros astronômicos pelas empresas é uma realidade dos serviços privatizados em dezenas de países.
No Reino Unido, a Autoridade Reguladora dos Serviços de Água [Water Services Regulation Authority (Ofwat)], órgão responsável pelo controle e fiscalização do setor privatizado de água e esgoto, emitiu um alerta denunciando o elevado nível de poluição das águas e a baixa qualidade dos serviços de tratamento e distribuição por parte das empresas responsáveis.
O relatório aponta que as empresas Northumbrian Water, Southern Water, South West Water, Thames Water, Welsh Water e Yorkshire Water foram descritas no documento como atrasadas no método de atendimento aos cidadãos e na administração de seus sistemas. O pronunciamento da Ofwat representa uma mudança de postura, após anos em que as empresas não foram devidamente regulamentadas, segundo o jornal The Guardian, insuspeito de qualquer inclinação de esquerda ou de defesa da estatização.
“As companhias de água e esgoto estão falhando quando se trata de cuidar dos clientes, do meio ambiente e de sua própria resiliência financeira. Essas empresas precisam resolver esse desempenho inaceitável com urgência” declarou David Black, executivo-chefe da Ofwat.
“Em 2021 e 2022 houve um aumento do número de incidentes graves de poluição, além do descumprimento das obras de tratamento. Apenas quatro empresas atingiram o nível de desempenho para reduzir o alagamento de esgoto nas residências”, completou. O relatório aponta um baixo investimento nas estações de tratamento e o aumento de incidentes relativos à inundação de esgotos.
O país privatizou seu serviço de saneamento em 1989, durante o governo ultraneoliberal de Margaret Thatcher. Na década de 1980, as infraestruturas para gestão e tratamento da água foram afetadas pelos baixos financiamentos por parte da administração pública. No final da década, o governo vendeu também os ativos do setor à iniciativa privada.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, (Ipea), em estudo publicado no ano 2000, o modelo adotado no Reino Unido se beneficiou da estrutura governamental regionalizada, centralizada e livre da interferência de poderes públicos locais, implementada anteriormente à privatização.
A política privatista não deu conta – ou não se propôs – a resolver antigos problemas do sistema de tratamento de água e esgoto no país. O processo de despejar água não-tratada no mar, ainda persiste. O sistema de saneamento de Londres era arcaico e carecia de estrutura para impedir enchentes durante períodos de fortes chuvas, mas os privatistas não investiram. O despejo de esgoto em praias persiste. Em agosto deste ano, a região da Cornualha, no oeste inglês, teve 14 de suas 80 praias interditadas devido ao esgoto.
EVASÃO
Críticos apontam que a privatização vem gerando, nos últimos anos, uma evasão fiscal generalizada, ocultando informações sobre um serviço vital através da confidencialidade comercial – além de um aumento de 42% nas contas de água, descontados os valores da inflação.
“A privatização é o deus que falhou”, disse o The Gardian em editorial de 22 de junho de 2022. O jornal diário britânico afirmou que a promessa de que a privatização proporcionaria “bons serviços, economia para o governo e mais investimentos” nunca se concretizou. Naquele momento, a Anglian Water, uma das maiores prestadoras privadas dos serviços de água e esgoto, acabara de despejar dividendo de 92 milhões de libras (R$ 591 milhões) no colo de acionistas mesmo causando enormes danos ambientais ao país.
Entre os agraciados, a Abu Dhabi Investment Authority e o Canada Pension Plan Investment. A Anglian Water havia sido multada pela Agência do Meio Ambient neste ano por lançamento de esgotos em rios e lagos. A população atendida pela Anglian tinha recebido um aumento em suas tarifas de 5%. Na outra ponta, Peter Simpson, presidente-executivo da empresa, e Steve Buck, diretor financeiro, receberam juntos mais de 2,2 milhões de libras como bônus em 2021.
Uma semana após a divulgação do relatório da Ofwat, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou a Análise Global e Avaliação de Saneamento e Água Potável (GLAAS) da ONU e defendeu “ações globais e locais urgentes para garantir água, saneamento e higiene geridos de forma sustentável e para todos”, a fim de evitar “impactos devastadores na saúde de milhões de pessoas”.
Enquanto 45% dos países estão a caminho de atingir suas metas de cobertura de água potável definidas nacionalmente, apenas 25% dos países estão a caminho de cumprir suas metas nacionais de saneamento, segundo o relatório; menos de um terço dos países relataram ter recursos suficientes para realizar as demandas de água potável, saneamento e higiene. Por fim, 75% das nações informaram não dispor dos recursos financeiros necessários para implementar programas e estratégias no setor.
“Enfrentamos uma crise urgente: o acesso deficiente a água potável, saneamento e higiene ceifam milhões de vidas todos os anos, enquanto a frequência e intensidade crescentes de eventos climáticos extremos continuam a dificultar a prestação de serviços seguros”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, que conclamou pelo “aumento drástico” de investimentos em água e saneamento.
Um mapeamento feito por onze organizações majoritariamente europeias revela que, da virada do milênio para cá foram registrados 267 casos de “remunicipalização”, ou reestatização, de sistemas de água e esgoto. No ano 2000, de acordo com o estudo, só se conheciam três casos.
Segundo Satoko Kishimoto, uma das autoras da pesquisa, divulgada em 2017, a mudança vem sendo impulsionada por um leque de problemas reincidentes, entre eles serviços inflacionados, ineficientes e com investimentos insuficientes. À época ela era coordenadora para políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda. Atualmente, Kishimoto é prefeita de Tóquio.
A análise das informações coletadas ao longo dos anos deu margem ao estudo. De acordo com a primeira edição, entre 2000 e 2015 foram identificados 235 casos de remunicipalização de sistemas de água, abrangendo 37 países e afetando mais de 100 milhões de pessoas.
As cidades que recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás – uma longa lista que inclui lugares como Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz.
“Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso”, explicou a pesquisadora à BBC Brasil.
JOSI SOUSA