“Se existisse um partido judeu-árabe em 1948, não estaríamos na situação atual”, declarou Faiçal Azaiza, co-presidente palestino do partido ‘Israel de Todos Seus Cidadãos”, no lançamento da nova agremiação, na sexta-feira (16), na cidade de Tel Aviv.
Falando para uma audiência de mais de 200 pessoas, árabes e judeus, Azaiza destacou que “ao longo da história de Israel, há partidos judeus com representantes árabes e partidos árabes com representantes judeus, mas nunca um verdadeiro partido judeu-árabe, com participação plena, como iguais, de uns e outros”.
Azaiza, reitor da Faculdade de Bem-Estar Slocial e Ciências da Saúde da Universidade de Haifa, encabeça a iniciativa política junto com o ex-presidente do Knesset, parlamento israelense, Avraham Burg, quando integrava o Partido Trabalhista e que integrou posteriormente o Partido Novo, herdeiro do PC de Israel. Burg conclamava, da tribuna do Knesset, pela formação de um partido judeu-árabe desde o não de 2020.
O lançamento em Israel, de um partido, que por sua própria concepção, assume como principalidade a luta antirracista, anticolonial, democrática e laica, em um momento em que a coligação abertamente pró-apartheid judaico assume, junto com Netanyahu – agitador principal da campanha que levou ao assassinato de Ytzhaq Rabin – se assome ao poder em Israel, é o evento mais auspicioso possível e uma demonstração de um fenômeno social que, ao longo da história vai se evidenciando como a verdade mais profunda: de que por mais reprimida a condição humana e seu anseio, o mais saudável, por igualdade, ela acaba por comparecer e se afirmar na luta política.
LUTA ANTIRRACISTA
O lançamento deste partido, como observa Ben Reiff, autor da reportagem intitulada “Pode um novo partido judeu-árabe reviver a esquerda israelense?”, na qual nos baseamos para escrever esta matéria, surge como uma reformulação dos limites do que é ideologicamente possível e estrategicamente necessário em meio à próxima luta que agora vai se dar contra um governo sob influência direta dos kahanistas (sucessores do rabino fanático Meir Kahane, que acabou sendo expulso do parlamento israelense, junto com a ilegalidade de sua agremiação, ‘Só Assim”, por incitação racista).
“Havia no encontro uma atmosfera de apetite por um pensamento novo e pela superação das divisões que se tornaram convencionais em Israel”, observa Reiff.
Entre os que participaram com intervenções no debate durante o lançamento, o partido sionista de esquerda Meretz e o nacionalista palestino Balad (ambos ficaram aquém da clausula de barreira de 3,5% dos votos, sem os quais deixam de ter representação parlamentar).
Também se fizeram presentes ao debate ativistas pela paz, líderes de organizações sociais, acadêmicos, escritores e artistas.
A ausência lamentada foi a de representantes dos comunistas, do partido Haddash, uma atitude sectária que o seu líder, Ayman Odeh, tentou explicar a não aceitação do convite dizendo que o Haddash já seria o partido judeu-árabe de longa data e que, portanto, não haveria espaço para um outro deste naipe na sociedade israelense.
CONTRA UM ESTADO DE ISRAEL EXCLUDENTE
O próprio nome do novo partido, “Israel de todos seus cidadãos”, é um questionamento aberto da própria concepção do Estado de Israel, que na formulação contraditória de sua denominada Declaração de Independência seria “judeu” e “para o benefício de todos os seus habitantes; será baseado na liberdade, justiça e paz” e ainda “na base da igual e completa cidadania”. Uma declaração lançada em 14 de maio de 1948, em meio a uma campanha de limpeza étnica pelo terror das forças do nascente Estado.
Tanto assim que o partido terá que superar e se legalizar enfrentando a cláusula da Lei Básica (que substitui a inexistente Constituição) que explicita um partido ou candidato pode ser desqualificado para concorrer a eleições se sua plataforma negar “a existência de Israel como Estado judeu e democrático”.
A chamada Lei Estado-Nação, aprovada sob outro governo Netanyahu, em 2018, acrescenta que “A realização do direito à autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusiva do povo judeu”.
NETANYAHU SUPREMACISTA
Aliás, Netanyahu, quando antes primeiro-ministro foi ainda mais explícito na formulação discriminatória de sua concepção do Estado de Israel. Quando a atriz israelense criticou o racismo anti-árabe do partido Likud, que ele integra, respondeu: “Israel não é um Estado de todos seus cidadãos. De acordo com a Lei Básica de nacionalidade que aprovamos, Israel é o Estado-Nação do povo judeu e somente dele”.
É exatamente por isso que o partido Balad, que já defendia a transformação de Israel em um Estado de todos seus cidadãos, teve o seu registro negado pelo Comitê Eleitoral Central e só pôde concorrer porque a decisão foi revogada pela Corte Suprema de Israel.
Logo depois disso, quando o Balad apresentou no Knesset a proposta de uma Lei Básica alternativa, segundo a qual Israel se consagraria como um Estado de todos os seus cidadãos, a direção do parlamento se negou a levá-la a voto.
O partido sionista de esquerda, Meretz, tem tentado escapar dessa contradição se dizendo a favor que Israel seja simultaneamente “o Estado do povo judeu e de todos seus cidadãos”.
Toda tensão que – como vimos – permeia a própria concepção do Estado de Israel, veio à tona na tarde deste 16 de dezembro, durante os debates no lançamento do novo partido. Enquanto que o ex-deputado do Meretz, Mossi Raz, que apoia a nova agremiação, destacou que a Declaração de Independência “assegura a igualdade completa dos direitos sociais e políticos de todos os seus habitantes”, a ativista Gaby Lasky se declarou a favor de proteger os direitos das minorias em Israel e foi logo interpelada por um dos presentes ao plenário: “Que minoria? Os árabes são a maioria aqui!”, disse o interpelador referindo-se ao fato de que ,somados os palestinos israelenses aos judeus de origem árabe, a população israelense é, de fato, majoritariamente árabe.
RETORNO PALESTINO
Aos integrantes do Meretz, sucedeu na intervenção, o presidente do Balad, Sami Abu Shehadeh, enfatizou que apesar de toda a discussão sobre a igualdade civil, houve escasso debate sobre a igualdade nacional e tudo que isso implica, inclusive a concessão do direito de retorno aos refugiados palestinos atingidos pela limpeza étnica conhecida como a Nakba, a Catástrofe.
“Queremos ser sócios, mas a associação deve se basear na igualdade plena”, afirmou Shehadeh.
Einat Wezman ecoou o sentimento de Shehadeh ao afirmar que a premissa de uma “associação de iguais”, não pode ser verdadeira a menos que ancorada no fim de uma realidade assimétrica, o que “coloca com centralidade a luta pela descolonização liberada pelos palestinos”.
Ao final dos debates, e reconhecendo as contradições entre as diversas correntes de esquerda em Israel, um dos idealizadores do novo partido, Avraham Burg, chamou a todos a aturem de forma conjunta, seja no mesmo partido, seja de forma federada.
“VENHAM E FALEM”
“Dizemos a todos neste espaço: venham e falem. Talvez estejamos mais próximos um do outro, talvez estejamos mais distantes, mas nunca saberemos se não pusermos em prática nossa convivência e o novo partido “Todo os Cidadãos” pode ser o lugar de encontro para uma fusão ou uma frente”, concluiu Burg.
Abu Shehadeh, do partido palestino-israelense Balad, respondeu a Burg, informando que “houve uma reunião em Yaffo [setor árabe de Tel Aviv] logo depois das recentes eleições com Burg e Mossi Raz para pensarmos o futuro e acordamos que deveríamos celebrar mais reuniões para discutir temas importantes de nossa agenda política com respeito ao tema judeu-árabe nesta parte do mundo”.
Ele finalizou dizendo que ainda há muito a percorrer até que se atinja essa igualdade aqui defendida, pois não se pode esquecer que “os judeus estão aqui como resultado de um projeto colonial de assentamento e, infelizmente, a maioria não está disposta a renunciar aos benefícios deste projeto. Israel é um Estado racista, construído sobre a supremacia judaica e isto é consenso entre todos os partidos sionistas”, enfatizou.