Decisão foi usar recursos em caixa da empresa para readquirir ações dela própria. O apagão de 2001 começou assim: o “mercado” substituiu a gestão pública e a busca do lucro imediato passou a imperar
A Eletrobrás, recém-privatizada, aprovou um programa que permite à empresa usar recursos em caixa para recomprar até 202,11 milhões de ações ordinárias e até 27,55 milhões de ações preferenciais B, o que representa 10% do total em circulação na Bolsa de Valores brasileira (B3).
Os detalhes da medida constam em comunicado aos investidores publicado na noite de terça-feira (3). Segundo o comunicado, o objetivo é “incrementar o valor aos acionistas pela aplicação eficiente dos recursos disponíveis em caixa, otimizando a alocação de capital”.
Entidades do setor apontam que a medida revela uma negociata e confirma que, com a privatização, não haverá investimentos na ampliação energética do país. Eles alertam que a busca de lucros imediatos afasta a empresa de sua tradição de liderar os investimentos em ampliação de fontes de energia.
O objeto da recompra, medida considerada especulativa por especialista da área, visa beneficiar os acionistas, conforme explicita o comunicado. Esses analistas destacam que a recompra, mesmo estando sujeita à disponibilidade de caixa, está garantida porque, segundo seus próprios dirigentes, “a empresa tem uma boa situação no seu balanço”.
Ao final desta quarta-feira, as ações ELET3 (ordinárias) subiam 2,84%, a R$ 40,96, enquanto ELET6 (preferenciais B) tinham ganhos de 2,12%, a R$ 42,30, às 18h.
Ou seja, o argumento dos privatistas de que as estatais eram deficitárias, cabides de empregos, e que deveriam ser vendidas para “aliviar” o Tesouro, estão sendo desmoralizados pela própria argumentação a favor da recompra.
A “boa situação de balanço” – que para eles não existia -, ao invés de redundar em mais investimentos da empresa na ampliação de fornecimento de energia para o país, se transformam em recursos especulativos e em tramoias com vistas a beneficiar grupos de acionistas que buscam o ganho fácil e o controle informal da empresa.
Em seu parecer contrário à privatização da Eletrobrás, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Vital do Rêgo já tinha desmoralizado este argumento falso de que a empresa era deficitária. “O primeiro ponto falacioso é que a Eletrobrás gera prejuízo. É mentira. A Eletrobrás registrou um lucro líquido de R$ 37 bilhões nos últimos quatro anos. Dos quais: R$ 6,4 bilhões em 2020 e R$ 5,7 bilhões em 2021. Foi a sexta empresa mais lucrativa do país em 2020, mesmo no ano de pandemia”, lembrou o ministro.
E ele ainda denunciou que além de mentir sobre a lucratividade da empresa, os privatistas mentiram também sobre o valor da venda. “Estamos diante do desfazimento de um patrimônio público por valor muito menor do que ele representa. Identificamos dezenas de ilegalidades. São afrontas diretas a lei, sem falar das inobservâncias à normativos infralegais e à própria Constituição Federal. Além do descumprimento de acórdão e jurisprudência do próprio tribunal”, advertiu.
Criada em 1962 para coordenar empresas do setor elétrico e garantir a expansão do setor, a Eletrobrás é uma sociedade de economia mista e de capital aberto. Embora venha registrando lucros líquidos anuais desde 2018, o então presidente Jair Bolsonaro incluiu a companhia no Programa Nacional de Desestatização. Em junho do ano passado, foram emitidas ações que reduziram a participação da União no capital votante para menos da metade. O controle da empresa foi passado para grupos privados.
Outra mentira que cai com este anúncio da recompra de ações é a tese, repetida insistentemente, de que, somente sob mãos privadas, a Eletrobrás poderia investir. Há seis meses, desde a privatização, não houve sequer um investimento feito pela Eletrobrás. Nesse período, a empresa não ganhou nada após dois leilões de transmissão e um de geração.
E neste mesmo período o que se viu foi a escandalosa elevação dos ganhos dos novos executivos da empresa. A assembleia de acionistas da Eletrobrás privatizada aprovou às vésperas do Natal o aumento de até 3.576% nos salário da diretoria. Wilson Ferreira Júnior, ex-presidente da estatal, que hoje preside a companhia, teve sua remuneração aumentada dos atuais R$ 52,3 mil para R$ 300 mil por mês.
E é bom que se registre que, quando os métodos de mercado foram implantados no setor energético do país, em 1995, o país acabou passando por um grave apagão, em 2001, exatamente por fata de investimentos pelo setor privado que se apoderou de várias empresas públicas do setor. Nos governos Lula, a Eletrobrás voltou a investir mas, agora, depois de privatizada, volta a cortar os investimentos e mostra seu caráter especulativo e pouco afeita produção e à ampliação da oferta de energia.
Como denunciou Roberto D´Araújo, diretor do Instituto Ilumina, e uma das maiores autoridades no assunto, “os dados do balanço energético mostram que, toda vez que se anuncia privatização de usinas prontas, o capital se retrai de novos investimentos. Já aconteceu na década de 90, onde o déficit de adição de capacidade de geração chegou a 8 GW, que, só foi esquecido porque o racionamento reduziu o consumo em 15%.
Segundo ainda o especialista, “o discurso neoliberal de demonização das empresas públicas, imputando nessas a pecha de ineficiência e desconfiança, promoveu o abandono do princípio do coletivo na sociedade que se observa desde 1995. Desconfia-se das estatais e, ao invés de moralizá-las, privatiza-se sem compreender que privatizar não é apenas vender empresas”.
“Na década de 90″, prossegue D´Araújo, “além de mais de 80 estatais privatizadas com financiamento do BNDES, a Eletrobrás também foi posta à venda. Evidentemente, o capital tem seus próprios limites e, ao perceber que haveria uma verdadeira liquidação de usinas, os investidores se desinteressaram por novos desafios. Na realidade, o racionamento de 2001 ocorreu por conta do déficit de mais de 8.000 MW médios de oferta. Praticamente uma usina de Itaipu era esperada e não ocorreu. São Pedro não foi o culpado”.
SÉRGIO CRUZ