União Europeia criminaliza ação dos barcos humanitários, dizendo que atrapalha a guarda costeira líbia, e até proíbe o acesso aos portos
Em apenas três dias no fim de semana, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), da ONU, registrou 204 imigrantes mortos por afogamento no Mediterrâneo, o que está sendo apontado como consequência direta da criminalização, pela União Européia (UE), dos barcos humanitários, que inclusive estão sendo proibidos de aportar em países como Itália e Malta. Nesta quarta-feira (4), o Open Arms entrou no porto de Barcelona, com 60 imigrantes sobreviventes a bordo, após quatro dias de travessia.
Há uma foto que resume o que foi esse fim de semana e o que aguarda os imigrantes quando a histeria xenófoba se espraia na Europa: a de membros da guarda costeira da Síria carregando os corpos de três bebês. 103 imigrantes morreram na sexta, inclusive três bebês; 38 no sábado e mais 63 no domingo. Uma semana antes, 220 imigrantes haviam perecido nas águas do Mediterrâneo, elevando o total de mortes em poucos dias para mais de 400. Desde o início do ano, são mais de 1000. Mas a quantidade de mortos verdadeira jamais será conhecida.
Como advertiu o capitão do barco, “navegar 750 milhas náuticas para chegar ao porto é insustentável. São quatro dias em lugar de um”. Pela lei internacional, que está sendo flagrantemente violada, o porto mais próximo deveria aceitar os sobreviventes do naufrágio. O Open Arms chegou a Barcelona às 11h15, horário local. Nos quatro dias, os 60 imigrantes dormiram no chão e comeram pasta de arroz. Como descreveu o jornal El País, o camaronês de 39 anos, Bitcha Honoree, mirou o céu e agradeceu com as mãos, repetindo “merci, merci, merci”.
Assim como aconteceu com o navio humanitário Aquarius, o aportamento foi autorizado pelo novo governo espanhol após recusa expressa das autoridades de Roma, Paris e Valeta. Outro navio com refugiados tirados das águas do Mediterrâneo, o Lifeline, vagou por seis dias até poder atracar na capital de Malta. A pressão é para impedir que os navios humanitários “atrapalhem” a guarda costeira líbia de fazer o que está sendo pago pela UE: deter os refugiados e imigrantes antes que alcancem a costa européia. Segundo as denúncias, integrantes da guarda costeira abastecem os mercados de escravos instaurados no país desde o bombardeio da Otan.
Governos e políticos xenófobos acusam os navios humanitários de fazerem tráfico de gente, ao salvarem os que estão se afogando. São, nas palavras no novo premiê italiano Giuseppe Di Maio, “táxis mediterrâneos”. Ou, conforme, Horst Seehofer, ministro do Interior alemão que desistiu de romper com Ângela Merkel, “ônibus da Líbia para a Europa”. Agora, os navios humanitários estão sendo impedidos de deixar o porto pelos governos da UE, que se tornam, assim, responsáveis diretos pela morte em massa de refugiados no Mediterrâneo. O Lifeline, Sea Fox e Sea Watch 3 estão agora restritos ao porto de Malta; o Aquarius, que há poucos dias levou mais de 600 refugiados para a Espanha, agora só pode ancorar em Marselha.
“Em que tipo de mundo estamos vivendo quando as equipes de resgate são transformadas em criminosos?”, perguntou o capitão da Lifeline, Claus-Peter Reisch, preso após atracar em Malta e ter o passaporte confiscado. “Que tipo de mundo é que faz mais contra as equipes de resgate do que impedir que as pessoas morram?”. As autoridades em Malta acusam Reisch de cruzar as águas maltesas com um navio não registrado, apesar de ser registrado sob bandeira holandesa.
“Eu salvei 234 vidas. Vou a tribunal com a cabeça erguida e não tenho qualquer problema com isso. As mortes no Mediterrâneo continuam enquanto estamos presos”, denunciou Reisch. Ele relatou ainda que a guarda costeira da Líbia recentemente ameaçou matá-lo e à sua tripulação.
Conforme o ministério das Relações Exteriores, os centros de detenção na Líbia, operados pela guarda costeira, são conhecidos como “o inferno na terra”, onde prevalecem “as condições de campo de concentração”. Trata-se de um relatório elaborado pelo embaixador alemão no Níger. 16 jovens que foram resgatados na sexta-feira foram imediatamente levados para um acampamento em Tajoura. Eram de Gâmbia, Sudão, Níger, Guiné e Iêmen. Nos últimos dias, cerca de mil pessoas foram detidas pela guarda costeira da Líbia e impedidas de entrar na Europa.
A OIM – que escapou de ter como diretor um xenófobo indicado por Trump – manifestou-se profundamente “preocupada” com o envio de migrantes resgatados para campos fechados e advertiu que as condições nesses locais estavam se deteriorando. Assim, a cláusula do direito internacional dos refugiados, que determina que as pessoas não devem ser reenviadas para Estados que enfrentam graves violações dos direitos humanos, virou letra morta, enquanto os europeus cinicamente pagam ao simulacro de governo de Trípoli e à guarda costeira líbia para fazerem o trabalho sujo. Sem falar no escândalo dos mercados de escravos na Líbia, em pleno século XXI, um efeito colateral do bombardeio da Líbia pela Otan e assassinato de seu líder Muammar Kadhafi.
Na última cúpula européia sobre imigração, melhor dizendo, sobre repressão à imigração e aos refugiados, a decisão foi insuflar a xenofobia, fechar as fronteiras da Europa, criar campos de concentração sob várias denominações, de preferência, fora da União Européia, e melhor ainda, se na África, reforçar a polícia de fronteira, e acelerar a deportação de quem conseguir, superando todos os obstáculos, pedir asilo e ter o pedido negado.
Enquanto isso, a crise da coalizão alemã parece estar amainando, graças à concordância entre o partido de Merkel (CDU) e sua sublegenda (CSU) de que os refugiados já registrados em outro país da UE seriam presos na fronteira alemã e internados em “zonas de trânsito”, isto é, campos de concentração. Há três anos atrás, os social-democratas haviam se oposto, dizendo que “tinha mais a ver com Guantánamo do que com um Estado baseado no estado de direito”. No “plano diretor de imigração” de Seehofer, há a proposta de apresentar à Comissão Européia um “modelo padrão” de centro de internamento, isto é, de campo de concentração. Acrescenta ainda que “a conclusão negativa de um pedido de asilo deve significar simultaneamente o início da deportação”. Como todos sabem, a expertise alemã sobre campos de concentração é imbatível.