Alastair Crooke, ex-espião e ex-diplomata britânico, ex-conselheiro da diplomacia europeia, avalia que a resiliência russa diante da insistência na ação militar e econômica caminha para abalar a hegemonia norte-americana com base no dólar
“A resiliência exibida pela economia russa depois que o Ocidente comprometeu todo o peso de seus recursos financeiros para esmagar a Rússia, vem levando o Ocidente a temer que tal erro de cálculo possa levar ao colapso da primazia do dólar”, afirmou Alastair Crooke, ex-espião e ex-diplomata britânico, ex-conselheiro da diplomacia europeia, atual editor do respeitado portal strategic-culture.org, fundador do ‘Fórum dos Conflitos’ de Beirute e escritor.
Para Crooke, trata-se do “erro de cálculo desta era”, “que pode dar início ao colapso da primazia do dólar e, portanto, também da conformidade global às demandas políticas dos EUA”.
Washington – ele sublinha – “não se atreve – na verdade não pode – ceder na primazia do dólar, o significado final do ‘declínio americano’. E assim o governo dos EUA fica refém de sua hegemonia financeira de uma forma que raramente é totalmente compreendida”.
O analista assinala que Biden “não pode retirar sua narrativa fantástica da iminente humilhação da Rússia; eles apostaram a Câmara nisso. No entanto, tornou-se uma questão existencial para os EUA precisamente por causa desse flagrante erro de cálculo inicial que foi subseqüentemente alavancado em uma narrativa absurda de um tropeço, a qualquer momento ‘colapsando’ a Rússia”.
“O que é então esta ‘Grande Surpresa’ – o evento quase completamente imprevisto da geopolítica recente que tanto abalou as expectativas dos EUA e que leva o mundo ao precipício?”, ele indaga.
“É, em uma palavra, Resiliência. A resiliência exibida pela economia russa depois que o Ocidente comprometeu todo o peso de seus recursos financeiros para esmagar a Rússia. O Ocidente atacou a Rússia de todas as formas concebíveis – por meio de guerra financeira, cultural e psicológica – e com guerra militar real como conseqüência”.
“No entanto, a Rússia sobreviveu e sobreviveu de forma relativamente generosa. Está indo ‘bem’ – talvez até melhor do que muitos internautas da Rússia esperavam. Os serviços de inteligência ‘Anglo’, no entanto, garantiram aos líderes da UE que não se preocupassem; é ‘slam dunk’; Putin não pode sobreviver. O rápido colapso financeiro e político, eles prometeram, era certo sob o tsunami de sanções ocidentais”.
Mas, em vez de um reexame crítico, conforme os eventos falharam em fornecer confirmação, a aposta foi “dobrada”, destaca Crooke.
MOMENTO ABALADOR
“Então, por que essa ‘expectativa frustrada’ constitui um momento tão abalador para nossa era? É porque o Ocidente teme que seu erro de cálculo possa levar ao colapso de sua hegemonia do dólar”, assinala o analista.
Mas, por pior que ‘isso’ seja da perspectiva dos EUA, o medo se estende muito além disso também, diz Crooke, citando o neocon Robert Kagan, para quem “o avanço externo e a ‘missão global’ dos EUA são a força vital da política interna americana”. Desde a fundação do país, “os EUA têm sido um império republicano expansionista; sem esse movimento adiante, os laços cívicos de unidade doméstica são questionados”.
Para Crooke, “o ponto aqui é que a Resiliência Russa, de um só golpe, quebrou o chão de vidro das convicções ocidentais sobre sua capacidade de ‘gerenciar o mundo’”. Após os vários desastres ocidentais centrados na mudança de regime por choque e pavor militar, até os neoconservadores endurecidos – em 2006 – “admitiram que um sistema financeiro usado como arma era o único meio de ‘segurar o Império’”.
Mas – destaca o editor do portal – essa convicção agora foi derrubada – e Estados ao redor do mundo “tomaram conhecimento”.
O MISTÉRIO DO “PIB RUSSO”
Esse choque de erro de cálculo é ainda maior porque o Ocidente “desdenhosamente considerou a Rússia uma economia atrasada, com um PIB equivalente ao da Espanha”, apontou Crooke.
Em entrevista ao Le Figaro na semana passada, o professor Emmanuel Todd observou que a Rússia e a Bielorrússia, juntas, constituem apenas 3,3% do PIB global. “O historiador francês questionou, portanto, ‘como então é possível que esses Estados tenham mostrado tanta resiliência – em face de toda a força do ataque financeiro’?”
Bem, em primeiro lugar, como sublinhou o Professor Todd, “o ‘PIB’ como medida de resiliência econômica é totalmente fictício”. Ao contrário do seu nome, o PIB mede apenas as despesas agregadas. E muito do que é registrado como ‘produção’, como o faturamento superinflado para tratamento médico nos EUA’ e (dito, irônico) serviços como as análises altamente pagas de centenas de economistas e analistas bancários, “não são produção, per se, mas ‘vapor de água’”.
A resiliência da Rússia, atesta Todd, se deve ao fato de ter uma economia real de produção. “A guerra é o teste final de uma economia política”, observa. “É o Grande Revelador”.
“E o que foi revelado? Ele revelou outro resultado bastante inesperado e chocante – que deixa os comentaristas ocidentais cambaleando – que a Rússia não esgotou seus mísseis. Uma economia do tamanho da Espanha, perguntam os meios de comunicação ocidentais, como pode uma economia tão pequena sustentar uma prolongada guerra de atrito da OTAN sem ficar sem munições?”.
“Mas, como Todd descreve, a Rússia conseguiu sustentar seu suprimento de armas porque tem uma economia real de produção que tem capacidade para manter uma guerra – e o Ocidente não tem mais. O Ocidente fixado em sua métrica enganosa de PIB – e com seu viés de normalidade – está chocado com o fato de a Rússia ter a capacidade de ultrapassar os estoques de armas da OTAN. A Rússia foi rotulada por analistas ocidentais como um “tigre de papel” – um rótulo que agora parece mais provável de se aplicar à OTAN”.
FRAQUEZA DO MODELO OCIDENTAL HIPERFINANCEIRIZADO
A importância da ‘Grande Surpresa’ – da Resiliência Russa – resultante de sua economia real de produção vis à vis a evidente fraqueza do modelo ocidental hiperfinanceirizado lutando por fontes de munições não foi perdida para o resto do mundo, sublinha Crooke.
Há uma história antiga aqui, ele registra. “No período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, o establishment britânico estava preocupado com a possibilidade de perder a próxima guerra com a Alemanha: os bancos britânicos tendiam a emprestar a curto prazo, em uma abordagem de ‘infla e despeja’, enquanto os bancos alemães investiam diretamente em empréstimos de longo prazo – projetos industriais de economia real – e, portanto, eram considerados capazes de sustentar melhor o suprimento de material de guerra”.
Mesmo assim, a elite anglo teve uma “avaliação silenciosa da fragilidade inerente a um sistema fortemente financeirizado”, que eles compensaram “simplesmente expropriando os recursos de um enorme império para financiar a preparação para a próxima Grande Guerra”.
“O pano de fundo, então, é que os EUA herdaram a abordagem de financeirização anglo que subsequentemente turbinaram quando os EUA foram forçados a abandonar o padrão-ouro por déficits orçamentários crescentes. Os EUA precisavam atrair as ‘poupanças’ do mundo para os EUA, com as quais financiar seus déficits da guerra do Vietnã”.
Crooke assinala que o resto da Europa, desde o início do século XIX, desconfiava do “modelo anglo” de Adam Smith. “Friedrich List reclamou que os anglos assumiram que a medida final de uma sociedade é sempre seu nível de consumo (despesas – e, portanto, a métrica do PIB). A longo prazo, argumentou List, o bem-estar de uma sociedade e sua riqueza geral eram determinados não pelo que a sociedade pode comprar , mas pelo que ela pode produzir (ou seja, valor proveniente da economia real e autossuficiente)”.
NOVA ORDEM COM FOCO NA ECONOMIA REAL
E agora, com a ‘Grande Revelação’, o foco na economia real é visto como um insight chave que sustenta a Nova Ordem Global, diferenciando-a fortemente em termos de sistemas econômicos e filosofia da esfera ocidental, sublinha Crooke.
“A nova ordem está se separando da velha, não apenas em termos de sistema econômico e filosofia, mas por meio de uma reconfiguração dos neurônios pelos quais o comércio e a cultura viajam. Velhas rotas comerciais estão sendo contornadas e deixadas para murchar – para serem substituídas por hidrovias, oleodutos e corredores que evitam todos os pontos de estrangulamento pelos quais o Ocidente pode controlar fisicamente o comércio”.
Para Crooke, ao invés de ‘isolamento’, novos horizontes se abrem para a Rússia. “O corredor Norte-Sul (agora aberto) liga São Petersburgo a Bombaim. Outro componente liga as vias navegáveis do norte da Rússia ao Mar Negro, ao Mar Cáspio e daí ao sul. Espera-se que outro componente conduza gás do Cáspio da rede de gasodutos do Cáspio para o sul até um ‘hub’ de gás do Golfo Pérsico.
Olhando desta forma, ele diz, é como se os conectores neurais na matriz econômica real estivessem, por assim dizer, sendo levantados do oeste e sendo colocados em um novo local no leste. “Se Suez foi a hidrovia da era européia e o Canal do Panamá representou a do século americano, então a hidrovia do nordeste do Ártico, os corredores Norte-Sul e o nexo ferroviário africano serão os da era eurasiana”.
Em essência, a Nova Ordem está se preparando para sustentar um longo conflito econômico com o Ocidente.
PONZI NA VEIA
“Aqui, voltamos ao ‘erro de cálculo flagrante’. Essa Nova Ordem em evolução ameaça existencialmente a hegemonia do dólar – os EUA criaram sua hegemonia exigindo que o petróleo (e outras commodities) fosse precificado em dólares e facilitando uma frenética financeirização dos mercados de ativos nos EUA. Os EUA financiando seu déficit governamental (e seu orçamento de defesa) de graça”, destaca Crooke.
A esse respeito – ele revela – , “esse paradigma do dólar altamente financeirizado possui qualidades reminiscentes de um esquema Ponzi sofisticado: atrai ‘novos investidores’, atraídos pela alavancagem de crédito a custo zero e pela promessa de retornos ‘garantidos’ (ativos bombeados cada vez mais para cima pela liquidez do Fed). Mas a atração de ‘retornos garantidos’ é tacitamente subscrita por inflar uma ‘bolha’ de ativos após a outra, em uma sequência regular de bolhas – infladas a custo zero – antes de serem finalmente ‘descartadas’. O processo, então, é ‘lavado e repetido’ ad seriatim”.
“Aqui está o ponto: como um verdadeiro Ponzi, este sistema depende de dinheiro constante, e cada vez mais, ‘novo’ entrando no esquema, para compensar ‘pagamentos’ (financiar gastos do governo dos EUA). Ou seja, a hegemonia dos EUA agora depende da constante expansão do dólar no exterior”.
E, como acontece com qualquer Ponzi puro, uma vez que o ‘dinheiro’ vacila, ou os resgates aumentam, o esquema entra em colapso, sublinha Crooke.
“Foi para evitar que o mundo abandonasse o esquema do dólar por uma nova ordem comercial global que o sinal foi promulgado, por meio do ataque violento à Rússia, para avisar que abandonar o esquema traria sanções do Tesouro dos EUA sobre você e o derrubaria”.
O JOGO MUDOU
Mas então – registra o analista – “vieram DOIS choques que mudaram o jogo, em estreita sucessão: a inflação e as taxas de juros dispararam, desvalorizando o valor de moedas fiduciárias como o dólar e minando a promessa de ‘retornos garantidos’; e em segundo lugar, a Rússia NÃO COLAPSOU sob o Armagedom financeiro”. “O ‘dólar Ponzi’ cai; os mercados dos EUA caem; o dólar cai de valor (vis á vis commodities)”.
Esse esquema “pode ser derrubado pela resiliência russa – e por grande parte do planeta se desintegrando em um modelo econômico separado, não mais dependente do dólar para suas necessidades comerciais”. (ou seja, novo ‘dinheiro que entra’ para o dólar ‘Ponzi’ torna-se negativo, assim como ‘dinheiro que sai’ explode, com os EUA tendo que financiar déficits cada vez maiores (agora internamente)).
“A equipe Biden, portanto, colocou os EUA em um ‘canto’ apertado da Ucrânia. Mas nesta fase – realisticamente – o que a Casa Branca pode fazer? Não pode retirar a narrativa da “vitória humilhação” e derrota da Rússia. Eles não podem deixar a narrativa passar porque ela se tornou um componente existencial para salvar o que puder do ‘Ponzi’. Admitir que a Rússia ‘ganhou’ seria o mesmo que dizer que o ‘Ponzi’ terá que ‘fechar o fundo’ para novas retiradas (assim como Nixon fez em 1971, quando fechou as retiradas da janela do ouro)”, destaca o ex-agente. Para concluir, Crooke se detém sobre a situação em que “o confronto econômico entre o Ocidente e os Estados da Nova Ordem Global” venha a se transformar em uma guerra “mais ampla e mais longa”.