VALÉRIO BEMFICA
[O texto que publicamos nesta página é a intervenção, na 13º Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE), de Valério Bemfica, presidente do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC-UMES). Devido à sua importância, neste momento grave de devastação do país, após quatro anos de obscurantismo bolsonarista, com a política cultural entregue ao troglodismo fascista, consideramos um dever a sua divulgação entre os nossos leitores (C.L.)]
Bom dia a todos e a todas. Minhas saudações especiais aos meus companheiros de mesa, minha camarada Deputada Jandira Feghali, cara presidenta da Funarte, Maria Marighella, Deputada Rosa Amorim, companheiro Leo do MTST. Agradeço à Bruna Brelaz (presidente da UNE) e a Paola Soccas (coordenadora do CUCA da UNE) pelo convite que me foi feito
Eu queria começar dizendo que eu já tive diversas oportunidades de debater em Bienais da UNE, mas sempre sobre temas mais específicos. Lembro de uma linda conversa com a Jalusa Barcellos e o saudoso Arthur Poerner, onde falamos sobre o CPC, entidade nascida na UNE e que a UMES de São Paulo teve a genial ousadia de recriar. Ou outra ocasião, onde, com Rômulo Costa (Furacão 2000), falamos sobre a música independente e seus caminhos.
Este ano, por motivos óbvios, o tema precisa ser mais amplo: temos uma Nação em frangalhos, vilipendiada, corrompida, assolada pelo ódio. O Brasil clama por reconstrução. Nos últimos quatro anos tivemos – sem a menor dúvida e em todos os aspectos – o pior presidente da história desse país. Sou mais velho do que a maioria de vocês e o primeiro presidente de quem ouvi falar foi o Médici, de triste memória, a quem meu pai, brizolista convicto, xingava diariamente. Desde então lembro de todos – e quase todos foram ruins. Mas nenhum foi tão deletério quanto o inominável, hoje exilado na Disneylândia. Nem a besta do Collor!
São poucos os adjetivos negativos que, dirigidos a ele, possam soar falsos: é genocida, ignorante, preconceituoso, arrogante, corrupto, boquirroto, covarde, etc., etc., etc. Mas, ainda assim, foi para o segundo turno e fez 58 milhões de votos! Como explicar uma barbaridade dessas? E o que que fazer para que isso nunca mais se repita, uma vez que “ainda está fértil – e prenhe – o ventre que pariu a besta imunda”? – como dizia Brecht, em Arturo Ui.
Me desculpem os sociólogos, filósofos, políticos, educadores, mas a resposta sobre como chegamos nisso – e de que forma podemos sair – está no campo cultural. Acho até que poderíamos ter a petulância de rebatizar essa mesa: “A cultura É o eixo fundamental na reconstrução do Brasil”. Mas vamos justificar primeiro.
Se observarmos só a “Era do Coiso”, a questão chega a ser óbvia. Desde o início, o ódio à cultura sempre foi a tônica dominante. Mesmo antes da eleição: em setembro de 2018 o Museu Nacional foi destruído por um incêndio. O então aspirante a Presidente da República foi incapaz de manifestar qualquer pesar. Se falasse, provavelmente diria algo como: “E daí, não sou bombeiro, porra!”. Tão logo foi proclamado o resultado das eleições de 2018, o guru-astrólogo do bando zurrou, desde a capital dos Confederados Norte-Americanos: “Nossa tarefa principal é combater o Marxismo Cultural!”. E começou aí a mais tenebrosa era da cultura nacional. Logo no começo do governo passado, escrevi um artigo intitulado Introdução ao bolsonarismo cultural: Elogio da Loucura e da Picaretagem, denunciando a nomeação de monarquistas alucinados, blogueiros de turismo, roteiristas de segunda linha da TV Record, lunáticos de todos os quilates e terraplanistas assumidos para os principais cargos do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de Secretaria Especial. Na presidência da Funarte, onde hoje podemos nos orgulhar de ter a companheira Maria Marighella, foi instalado um cidadão que achava que “os Beatles vieram para implantar o comunismo, o John Lennon tinha um pacto com o diabo e Elvis Presley era produto de agentes soviéticos infiltrados na CIA.” Tudo isso sob a regência de um dublê de Goebbels. Como é história recente, e todos vocês devem se lembrar, não vou me deter muito nisso, na secretária Porcina (a que foi sem nunca ter sido), nem no galã de malhação, que não sabia quem foi Lina Bo Bardi e que preferia clubes de tiro a bibliotecas. Esses episódios, mesmo sendo trágicos, nós vencemos, foram derrotados nas urnas.
A minha questão é saber como uma turba de alucinados, que nutrem um profundo ódio à cultura nacional, conseguiu, tanto em 2018 quanto em 2022, convencer cerca de 58 milhões de brasileiros a votarem em seu representante. E minha tese é que a cultura brasileira vem sendo solapada há anos, com reflexos diretos na nossa educação, no nosso jeito de viver, nas nossas lutas sociais, na nossa economia. Precisamos começar a reconstrução do Brasil resgatando o sentimento de pertencimento do nosso povo, resgatando o orgulho de ser brasileiro, de ser parte viva de uma das culturas mais ricas que o mundo já viu. Estarei eu sendo chauvinista? Com certeza não. Ariano Suassuna disse, certa vez, que era absurdo ser contra a cultura estrangeira. Mas que era preciso fortalecer a cultura brasileira porque só assim “qualquer coisa que vem de fora em vez de ser uma influência que nos descaracteriza, que nos esmaga, que nos corrompe, passa a ser uma incorporação que nos enriquece”.
Uso a palavra Cultura no sentido daquilo que não é simplesmente dado pela natureza, ou seja, aquilo que é trabalhado, construído pela ação humana, tanto no campo material quanto no do pensamento. Ou seja, o conjunto de valores, sejam eles materiais ou espirituais, de saberes, de crenças e hábitos, que a humanidade cria através de suas práticas sócio-históricas, e que caracterizam cada sociedade e cada momento histórico.
Assim, podemos dizer que o nosso idioma, a nossa arte em geral (música, dança, teatro, literatura, artes plásticas, cinema, etc.) e também nossa culinária, os saberes populares (lendas, mitos, práticas da medicina popular), as crenças e manifestações religiosas, as tradições, nossa maneira de tratar com os outros, os hábitos, os esportes, os valores morais, tudo isso integra a nossa cultura. É o que nos faz brasileiros do século XXI, é o que nos permite viver o presente, ter um passado, almejar um futuro. E são essas coisas que vêm sendo atacadas sistematicamente – às vezes de forma aberta, às vezes de maneira velada.
Mário de Andrade, em “O Poeta come Amendoim”, dedicado a Carlos Drummond de Andrade, define assim seu amor pelo Brasil:
“Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso
o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas cantigas, amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento muito pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.”
O imperialismo – e não tenho vergonha de usar essa palavra – apresentando-se como “moderno”, “pós-moderno”, “liberal”, “neoliberal”, “o mercado”, ou qualquer outro desses rótulos, ataca justamente isso: nossos ritmos, gostos, sentimentos, crenças, trabalhos, prazeres. Por meio de filmes, livros, músicas, séries de TV, programas e métodos educacionais, jogos, redes sociais, ditam os comportamentos e as convicções das gerações de mileniuns, X, Y, Z (meras patacoadas geradas em departamentos de marketing). Vendem uma suposta globalização – tsunami invencível – que acabou com a possibilidade e com a validade de qualquer coisa nacional. Ganham, dessa forma, por dois lados: aumentam seus lucros extraordinariamente, vendendo os seus enlatados e, ao mesmo tempo, moldam a mente, os sonhos e as vidas dos brasileiro à imagem e semelhança deles.
Vejamos o caso do cinema: no país de Anselmo Duarte, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Glauber Rocha, fomos convencidos de que a mão invisível do mercado é que devia conduzir os rumos do nosso audiovisual. Aos poucos, os estrangeiros dominaram o setor de distribuição e exibição, além de já terem fincado as garras profundamente na produção. O resultado é que, se há quatro décadas atrás tínhamos 60% da bilheteria com o cinema nacional, hoje comemoramos quando chegamos a 20%. Só 8% das cidades têm cinema e temos menos salas do que há cinquenta anos atrás. Continuamos, é verdade, produzindo audiovisual, temos bons artistas e técnicos. Mas só vai bombar o que os gringos quiserem, o que corresponder à estética e à ideologia deles.
Já na música, convenceram milhões de incautos de que os modelos de negócio disruptivos das startups da internet levariam cultura gratuita aos quatro cantos do planeta. Mas a realidade hoje é que meia dúzia de big techs monopoliza o mundo virtual, pratica preços abusivos e tenta se colocar acima das leis de qualquer país. Usando argumentos libertários, travaram uma luta sem tréguas contra os direitos autorais (ou seja, contra os autores nacionais!), afirmando que era preciso flexibilizá-los para que a música circulasse livremente e o monopólio das gravadoras acabasse. A verdade é que houve uma monopolização ainda maior no mercado da música, as antigas gravadoras ficaram ainda mais fortes e a diversidade musical diminuiu. Continuamos tendo excelentes músicos e grandes criadores. Só que, para sobreviverem, foram transformados em “produtores de conteúdo para as redes”. Se der para fazer dancinha no TikTok, melhor. Se antes o Brasil era conhecido por Garota de Ipanema (segunda canção mais tocada na história da música mundial), e por gerar lendas mundiais, como Carmen Miranda, João Gilberto e Baden Powell, parece que hoje a maior honra que um artista brasileiro pode ter é ganhar um prêmio brega da indústria musical estadunidense, entregue em Las Vegas.
Na área da educação, cada vez mais a arte sai, os negócios ficam. No país de Villa-Lobos, Pixinguinha, e Tom Jobim, existe uma lei (11.769/2008) que determina o ensino de música nas escolas. Só que ela não é aplicada. Em compensação, no país de Eike Batista, a disciplina de “empreendedorismo” já é ensinada do Fundamental 1, sem que nenhuma lei exija! No país de Dias Gomes, Vianinha, Fernanda Montenegro e Paulo Autran, teatro na escola, quando existe, é só enfeite. Mas, no país em que 70% dos trabalhadores ganham até dois salários-mínimos, ensina-se pomposamente “Educação Financeira”! Deve ser para formar investidores para substituir os controladores das Lojas Americanas…
No Brasil onde mais de 60% são pretos e pardos, Brasil de Zumbi, Henrique Dias, Luísa Mahin, Luiz Gama, Machado de Assis e João Cândido, existe a lei 10.639, que estabelece o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, e que completou 20 anos em janeiro. Só que continuam faltando materiais didáticos, professores, capacitação. Em compensação, anuncia-se, com pompa e circunstância, o ensino obrigatório de “Projeto de Vida” no ensino médio.
No discurso, essa é a maneira de fazer que de nossas favelas surjam dezenas de Zuckerbergs, Musks e Gates. Na prática serve para convencer milhões de futuros trabalhadores – além de pesquisadores, jornalistas e professores – de que emprego é um conceito ultrapassado. Que o legal é ser empreendedor, parceiro de companhias descoladas na economia colaborativa. O resultado é uma legião de explorados, trabalhando doze horas por dia, alugando carros para enriquecer os donos da Localiza e do Uber ou alugando bicicletas do Itaú para encher as burras do IFood.
Nem o nosso “jeito de comer” escapa dos tentáculos do neoliberalismo, da globalização e do mercado. Na terra onde “em se plantando tudo dá”, resolveram só plantar soja, milho e cana (comodities!). Mas precisamos importar feijão e 30% da população passa fome. Mandamos carne – muitas vezes às custas de nossas florestas – para o mundo inteiro, enquanto milhões de miseráveis se digladiam na fila do osso. Quando o MST coloca uma terra improdutiva para produzir comida para os brasileiros, é taxado de terrorista. Mas quando os grandes latifundiários grilam uma terra pública, desmatam, expulsam indígenas e põe meia dúzia de bois no pasto, é agrobusiness!
Para abreviar, nem vou falar do genocídio perpetrado contra os povos indígenas. Não por achar o tema menos importante: os indígenas são um dos pilares fundamentais da nossa nação. Destruí-los significa destruir o Brasil. Mas é que as imagens do sofrimento do povo Yanomami, veiculadas nos últimos dias, são muito mais fortes do que qualquer palavra que eu pudesse dizer. E ainda tivemos que ouvir de um governador reeleito – que há muito já trocou sua alma vil por um punhado de ouro – recomendar que os indígenas “saíssem do mato” e parassem de “viver como bichos”.
Ainda teria muitos exemplos a dar, mas o tempo é curto. O fato é que a cantilena liberal-imperialista teve um razoável sucesso nas suas pregações. A tal ponto que parte de nosso povo perdeu totalmente o interesse pela nossa cultura e pelos nossos valores. Tudo o que é estrangeiro é melhor! Alguns passaram a sentir vergonha de serem brasileiros. A camisa da seleção brasileira foi apropriada como uniforme de lunáticos. Ser chamado de patriota virou quase um xingamento.
Precisamos resgatar nossa cultura, nossos símbolos, nossos valores. Precisamos salvar milhões de compatriotas que foram seduzidos e enganados pelo discurso neoliberal fascistizante! Alguns podem achar que eu estou sendo radical, que as tudo está indo pelo seu caminho natural, que certas coisas não podem ser revertidas ou vencidas. Acho que não. Precisamos chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Fascismo é fascismo, não “liberalismo”. Especulador é especulador, não “investidor”. Imperialismo é imperialismo, não “livre comércio”. Não se trata de “luta por inclusão”, é luta de classes mesmo! Trabalho sem direitos, não é “parceria”, é aumento da exploração da mais valia absoluta. Volto ao velho e bom Brecht, em seu poema Nada é impossível de mudar:
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.
Essa é a minha análise, talvez compartilhada por muitos de vocês. Mas não basta saber o que está acontecendo ou indignar-se com a situação. É preciso agir. Na Tese número XI sobre Feuerbach, Marx disse: Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo. Parafraseio: não cabe aos fazedores de cultura do Brasil, nesse momento, apenas expressar a realidade e a condição humana. É preciso modificá-las. Precisamos de arte, de música, teatro, dança, literatura, cinema. Precisamos de um Ministério da Cultura forte e presente. Precisamos de educação humanista, de trabalho digno, de natureza preservada. Precisamos construir o Brasil da solidariedade, do amor, da esperança. Precisamos acabar com o ódio, com a violência, com o preconceito. Um Brasil onde o trabalhador seja mais importante do que o investidor.
E a cultura é a grande arma para isso. Em um texto com tantas citações, encerro com Chico Buarque: “Creia, ilustre cavalheiro / Contra fel, moléstia, crime / Use Dorival Caymmi / Vá de Jackson do Pandeiro”.
Obrigado.
Maravilhoso!