CARLOS LOPES
Ao fundar o Centro das Indústrias (hoje, Ciesp), em 28 de março de 1928, Roberto Simonsen afirmou:
“A grande indústria, por toda parte do mundo em que se instala, traz como corolário o aumento dos salários, o barateamento relativo dos produtos, o enriquecimento social e o aumento da capacidade de consumo”.
Não era uma declaração demagógica. Durante toda a sua vida, a ideia de que o Brasil devia ser um país industrial esteve ligada, em Simonsen, à ideia de acabar com a miséria no país. Muito acertadamente, em seu prefácio de 1977 à edição que o Ipea então fez da polêmica entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, o economista Carlos Von Doellinger escreveu:
“No comando de suas empresas, que incluíram [além da construção civil], posteriormente, frigoríficos, fábricas de artefatos de cobre, borracha etc., nas grandes cidades e no interior, impressionava-se profundamente com as condições precárias de vida da maioria da população brasileira. Seus pronunciamentos públicos constantemente referiam-se aos aspectos sociais do país. Via na industrialização a única solução efetiva para esse estado de coisas, já que a pobreza na agricultura era quase endêmica”.
Depois de alguns anos de neoliberalismo estúpido, soa algo estranho que o maior líder empresarial da História do país – fundador do Ciesp e da Fiesp, da qual foi presidente durante cinco mandatos, de 1938 a 1945 – assim pensasse. Mas Roberto Simonsen foi um dos grandes homens do Brasil. A tacanhez era estranha à sua personalidade.
ORIGENS
Isto vem a propósito de dois livros muito importantes que o Ipea lançou há alguns meses. O primeiro é a reedição (isto é, a terceira edição) do volume de 1977, “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, com os documentos da polêmica de 1944/1945 entre Simonsen e Gudin – e com o prefácio original de Doellinger. O segundo é uma antologia e livro de ensaios sobre essa polêmica, de autoria de Aloísio Teixeira, Gilberto Maringoni e Denise Lobato Gentil, “Desenvolvimento – O debate pioneiro de 1944-1945”.
Doellinger, autor de alguns trabalhos importantes, entre os quais “Empresas Multinacionais na Indústria Brasileira” (escrito com Leonardo Cavalcanti e publicado, também pelo Ipea, em 1979), resume as origens da polêmica:
“Em meados dos anos 1930, (…) o surto de industrialização propiciou a ascensão dos representantes dos interesses da classe [isto é, dos empresários industriais], passando os mesmos a ter peso crescente no centro das decisões políticas e econômicas. Seus representantes se destacavam em órgãos como o Conselho Federal de Comércio Exterior, a Comissão de Política Industrial e Comercial, a Comissão de Planejamento Econômico (CPE) e exerciam influência direta junto ao próprio presidente, como políticos ou conselheiros. Essas novas lideranças reivindicavam também o nacionalismo econômico e até mesmo a participação direta do governo nos setores de infraestrutura e de indústrias básicas. Sua ideologia era o protecionismo à indústria nascente, como seria lógico de se esperar”.
Nas palavras de Roberto Simonsen, reproduzidas nesse prefácio:
“O protecionismo cerceia de alguma forma e por algum tempo a permuta entre as nações, mas traduz uma grande liberdade de produção dentro das fronteiras do país que o adota. De fato, nos países que adotam o protecionismo, qualquer cidadão pode montar a indústria que entender desde que repouse em sadio fundamento, certo de que está livre do esmagamento proveniente dos dumpings ou manobras de poderosos concorrentes estrangeiros”.
A oposição aos adeptos da industrialização do país era composta por “boa parcela dos que constituíam ainda as classes políticas e a elite dirigente em geral [isto é, pelos remanescentes da República Velha, sobretudo em São Paulo] e, nas classes produtoras, os comerciantes e industriais ligados ao comércio importador e exportador, bem como a maioria dos que militavam na agricultura [em suma, a antiga oligarquia cafeeira e suas extensões]”.
Eram estes que Getúlio chamou “os carcomidos”, ligados aos interesses externos, especialmente ingleses. Seu representante ideológico era Eugênio Gudin. Voltaremos, em outra edição, ao assunto, mas é inútil procurar razões teóricas para a posição de Gudin. Ele sempre representou interesses bem concretos. Não era somente “ligado” aos interesses externos, mas um agente direto e declarado desses interesses, não fosse ele um ex-empregado do magnata Percival Farquhar (a quem representou na diretoria de “O Jornal”, diário que Assis Chateaubriand fundou com dinheiro de Farquhar); funcionário da notória The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power; diretor por 25 anos da Western Telegraph; e diretor-geral por três décadas da The Great Western of Brazil Railway Company Limited. Sua desastrosa gestão no Ministério da Fazenda, após a traição de Café Filho a Getúlio, não foi a de um “economista neoclássico” (o que, como veremos em outra edição, ele nunca foi), mas simplesmente a extensão de sua ficha funcional.
Porém, esse conflito, que começara antes da Revolução de 30, foi decidido a favor dos “industrialistas” em 1937. Como descreve Doellinger:
“Com a instituição do Estado Novo (…) a política econômica se apoiaria na industrialização, no nacionalismo e no forte conteúdo social e urbano. Os empresários eram estimulados pelo governo a investir, enquanto este ampliava sua autoridade para dirigir a economia”.
Fundamentalmente, o governo agia por meio de incentivos fiscais, creditícios (“através do Banco do Brasil – Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai), criada em 1937”) e cambiais (“controles de câmbio, das cotas de importação”) e “através de investimentos públicos em setores como ferrovias, navegação, serviços públicos e indústrias básicas, como petróleo e aço. (…) A Comissão do Plano Siderúrgico Nacional foi criada em 1940 e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1941. Outras companhias do governo foram criadas posteriormente; Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Companhia Nacional de Álcalis e Fábrica Nacional de Motores (FNM)”.
A ideia de “planificação” já estava implicitamente, como registra Doellinger, presente nessas iniciativas.
No entanto, a II Guerra Mundial trouxe novas dificuldades para o Brasil. Aqui, no prefácio de Doellinger, aparece algo que raramente é mencionado, talvez porque seja inteiramente verdadeiro – o que estava por trás de toda a retórica americano-udenista, supostamente democrática, em 1945:
“Os Estados Unidos seriam, reconhecidamente, o novo ‘Estado forte’, e o governo americano preparava-se para assumir o novo papel em toda a sua plenitude. Assim, enquanto o mundo ocidental preparava-se para uma nova ordem liberal, a aparente rigidez da posição do governo brasileiro, tanto em assuntos políticos, como principalmente econômicos, dava lugar a grande inquietação” (grifo nosso).
Não por acaso, acrescentamos nós, em 7 de dezembro de 1944, o presidente Getúlio, discursando na Associação Comercial de São Paulo, faz uma advertência:
“Já em 1936, o Tratado de Comércio proposto pelos Estados Unidos [isto é, pelo governo Roosevelt], e por nós aceito sem restrições, objetivava principalmente salvaguardar a liberdade de comércio entre os países democráticos, ameaçada pelos expedientes perigosos postos em prática pelos que hoje combatemos de armas na mão. Não podemos admitir a hipótese (…) de que, terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios, venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica. (…) A excelente máxima de ‘viver e deixar viver’ terá de presidir aos ajustes e convênios futuros. E nem vale a pena pensar em que desorganização caótica, de revoluções e perturbações, mergulhará o mundo de novo se não for ouvida a voz da razão e não nos convencermos de que não é possível a hegemonia de nenhum povo ou raça, isoladamente, sobre os demais” (cit. in Miguel Bodea, “Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul”, Porto Alegre, 1992, Ed. UFRGS, pág. 148. NOTA DO HP: Nesta página do livro de Bodea, a data do discurso é referida como 7/11/1944, porém, nas referências bibliográficas, aparece a data 7/12/1944).
Na economia brasileira, “a guerra, efetivamente, havia criado um ambiente de austeridade no consumo, em face principalmente das dificuldades de importação; contudo, indicações disponíveis são de que a taxa de investimento havia crescido bastante, para tanto muito contribuindo os investimentos do governo. Nessas condições, a demanda global mantinha-se elevada, ao passo que a oferta global estava limitada pelas dificuldades de importação, tão intensas que acarretaram sucessivos saldos superavitários no balanço de pagamentos. Em consequência, o acúmulo de reservas de cerca de US$ 600 milhões ao longo do período exacerbaram ainda mais as pressões inflacionárias já intensas desde 1939. Entre 1944 e 1945, a taxa de inflação atingiu 20% ao ano (a.a.), nível nunca registrado anteriormente. Tal situação era energicamente combatida pelos que pugnavam por um comportamento mais austero de parte do governo, especialmente em relação aos considerados excessivos dispêndios de capital, cuja implicação era naturalmente uma participação maior do governo na economia. Propunham menores gastos e políticas monetárias menos generosas, que evitassem a crescente expansão de crédito do Banco do Brasil ao setor privado. Consideravam inadequada uma política expansiva do governo em virtude do ambiente de contenção generalizada no resto do mundo” (Doellinger, op. cit.).
Como sempre, o problema era atribuído aos gastos do governo e à excessiva independência em relação aos países capitalistas centrais – mesmo com a existência de uma guerra mundial que já durava cinco anos…
Porém, “posição oposta assumiam, evidentemente, os que, defendendo a orientação governamental, se colocavam a favor da industrialização, da presença do governo nos setores de infraestrutura e indústrias básicas, do aumento de crédito visando estimular os investimentos, da imposição de medidas protecionistas contra as importações”.
Este era o fundo conjuntural do debate quando o governo, seguindo a tendência anterior, propôs que se discutisse a planificação da economia.
Assim, quando o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), órgão do então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, reuniu-se em 16 de agosto de 1944, era esta a questão em pauta. O relator era Roberto Simonsen.
Nas próximas edições, publicaremos os principais trechos do parecer de Simonsen e alguns outros documentos da polêmica, assim como abordaremos as excelentes publicações do Ipea.
Entretanto, para que o leitor tenha uma dimensão das questões que então foram tratadas (isto é, da luta política em torno dos rumos da economia), transcrevemos os seguintes trechos do parecer de Roberto Simonsen:
“Considerando o que se observa, presentemente, na República Argentina, no Canadá e em outras regiões de maior progresso material que o do Brasil, e, ainda, o que sucede nas regiões mais adiantadas do país, levando-se em conta o custo da vida, a necessidade da formação de capitais e as novas condições criadas pela guerra, não é exagerado concluir que necessitaríamos, assim, de uma renda nacional cerca de quatro vezes mais elevada do que a atual, ou seja, de 160 bilhões de cruzeiros. Não se pode, infelizmente, transpor, de chofre, uma diferença tão vultosa.
“A produção para o mercado interno está, bem o sabemos, condicionada às necessidades do consumo; estas variam de acordo com a produtividade e com o estágio de educação das populações. A produtividade é função do nosso aparelhamento econômico e eficiência técnica. A educação das populações, por sua vez, depende dos recursos disponíveis para o seu custeio.
“Não é possível, tampouco, alcançar, com novas exportações, o substancial enriquecimento indispensável.
“Não podemos, porém, nos quedar indiferentes ante esse vital problema brasileiro: a quadruplicação da renda nacional, dentro do menor prazo possível.
“Preliminarmente, para resolvê-lo temos que decidir se poderíamos atingir essa finalidade pelos meios clássicos de apressar a evolução econômica, estimulando pelos processos normais as iniciativas privadas, as várias fontes produtoras e o mercado interno, ou se deveríamos lançar mão de novos métodos, utilizando-nos, em gigantesco esforço, de uma verdadeira mobilização nacional numa guerra ao pauperismo para elevar rapidamente o nosso padrão de vida.
“As críticas, imparciais e objetivas, que tivemos oportunidade de citar e as considerações já feitas demonstram ser impossível satisfazer esse nosso razoável anseio com a simples aplicação dos processos clássicos.
“A prevalecer o lento ritmo observado em nosso progresso material, estaríamos irremediavelmente condenados, em futuro próximo, a profundas intranquilidades sociais.
“Vulgarizam-se, cada vez mais, as noções de conforto, e as populações subalimentadas e empobrecidas do país aspiram, legitimamente, a melhor alimentação, habitações apropriadas e vestuário conveniente.
“A nossa atual estruturação econômica não conseguiria proporcionar, ao povo em geral, esses elementos fundamentais do novo direito econômico”.
[Publicado em HORA DO POVO, nº 2928, 19/01/2011 – texto revisto]
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Abaixo, o leitor poderá conhecer o parecer de Roberto Simonsen, na época presidente da Fiesp, apresentado ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) em 16 de agosto de 1944. O texto aqui publicado é uma condensação. A íntegra poderá ser encontrada na excelente coletânea publicada pelo Ipea – e, como nos referimos na edição anterior, recentemente republicada – “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”.
O parecer de Roberto Simonsen, aprovado pelo Conselho, foi enviado pela Presidência da República à Comissão de Planejamento Econômico (CPE) – que tinha Eugênio Gudin como relator. Foi então que se iniciou a polêmica sobre a política econômica que o país precisaria seguir para continuar crescendo até transformar-se num país desenvolvido, com a superação das dificuldades, algumas reveladas pelo próprio crescimento, outras agudizadas com a eclosão da II Guerra Mundial.
Após a publicação do parecer de Roberto Simonsen, analisaremos a contestação de Gudin – um repositório do que a reação entreguista repetiria pelos quase 70 anos que nos separam daquele momento de nossa História, ou seja, até hoje. O texto de Gudin, aliás, tem um mérito – é forçoso reconhecer: defende, antes do tempo (“avant la lettre”, como diria Gudin, com seu pedantismo egresso do século XIX), as vulgaridades neoliberais com invulgar clareza; isto é, sem arrevesados rococós, daqueles que transformam aumentos de juros em “medidas macroprudenciais” ou em “bancarização” aquilo que é apenas fazer com que quitandas e lojas lotéricas sejam sucursais de bancos para a população de baixa renda.
O que não quer dizer que Gudin tenha algum pudor de mentir – não fosse ele o ridículo esnobe que dizia “jamais beber água, só vinho”. O que, se fosse verdade, privaria o país do prazer de sua companhia muito antes dos 100 anos com que morreu.
Sobre o parecer de Roberto Simonsen, apenas uma última observação: em vários trechos ele apoia-se no relatório da missão Cooke, enviada ao Brasil pelos EUA; da mesma forma, na parte que se refere às fontes de financiamento do plano – que não reproduzimos na condensação abaixo – ele refere-se a um possível empréstimo a ser contraído com o governo dos EUA do tipo “lend-lease” (“empréstimo e arrendamento”, ou seja, sem pagamento em dinheiro, tal como, durante a guerra, foram os empréstimos à Inglaterra e à URSS).
Depois de mais de seis décadas de missões do FMI e espoliação financeira norte-americana sobre os países menos desenvolvidos, soam, ao leitor atual, algo estranhas essas referências. No entanto, não o eram na época – Roberto Simonsen pensa a questão no quadro do governo norte-americano da época, dirigido pelo grande presidente Franklin Delano Roosevelt. A missão Cooke, por exemplo, chegou a conclusões muito progressistas sobre a economia do Brasil e suas perspectivas. E o empréstimo não era nada fora de questão na época.
Infelizmente, o que veio depois de Roosevelt nos EUA não foi benéfico nem ao Brasil, nem ao próprio país do norte. Mas a culpa não é de Roberto Simonsen – nem cabia a ele prever o que os EUA se tornariam no pós-guerra, e não apenas porque tal destino não dependia de sua vontade, mas, sobretudo, porque, se dependesse dela, a história seria outra.
O PARECER DE ROBERTO SIMONSEN
A indicação formulada pelo Ex.mo sr. Ministro Marcondes Filho para que se investigue se a nossa evolução econômica estabeleceu os princípios fundamentais que devem orientar o desenvolvimento industrial e comercial do Brasil, obriga-nos – em face mesmo dos objetivos que nortearam a programação deste Conselho – a fazer a crítica de alguns aspectos dessa evolução, apresentando sugestões e conclusões que nos parecem as mais condizentes com o fortalecimento da nossa economia.
Na sessão inicial deste Conselho, solicitamos, juntamente com os demais representantes das classes produtoras, que fossem coligidos os elementos básicos para a fixação da política econômica de maior conveniência ao país.
Indicamos, como dado preliminar e essencial, a cifra representativa da renda nacional.
A Diretoria de Estatística e Previdência deste Ministério acaba de apresentar os resultados de suas pesquisas, admitindo como conceito da renda a capacidade de consumo total das populações. Encontrou cerca de 40 bilhões de cruzeiros, o que traduz uma renda, por habitante, 25 vezes menor do que a verificada nos Estados Unidos.
Por um recente estudo do sr. Howard, técnico da Comissão de Fomento Interamericano, verifica-se que, em números globais, comparadas as cifras referentes aos anos de 1938 e 1942, diminuiu o volume de materiais e matérias-primas exportadas das repúblicas ibero-americanas para os Estados Unidos. O que se registrou, realmente, foi um aumento na exportação de alguns artigos e um considerável acréscimo em muitos dos preços.
Examinando-se as estatísticas da importação, nos Estados Unidos, do minério de ferro, cobre, minério de zinco, minério de manganês, minério de cromo, concentrados de estanho, minério de tungstênio, minério de antimônio, cristais de rocha, mica, nitrato de sódio, borracha, madeira de balsa, algodão em bruto, fibras (henequém e sisal), cinchona, caroço de mamona, caroço de algodão, amêndoa de babaçu, óleo de oiticica, conclui-se que, em 1942, aquele país importou mais cobre, minério de manganês e cromo, borracha, madeira de balsa, sisal, henequém e cristais de rocha. Desses, apenas três artigos tiveram a sua exportação elevada em mais de 100%: o minério de cromo, os cristais de rocha e a madeira de balsa.
Os preços, porém, subiram 451% nos cristais de rocha, 154% na mica, 200% no óleo de oiticica, 67% no minério de ferro, 20% no minério de manganês, 73% no minério de antimônio e 213% na borracha.
Howard, no seu interessante trabalho, observa que em geral, durante a guerra, os produtos importados dos países latino-americanos são oriundos da indústria extrativa, que, como se sabe, requer pequenos equipamentos. Foram, de fato, os altos preços que exerceram forte emulação sobre este comércio.
Constitui, portanto, no após-guerra, gravíssimo problema para as nações americanas o reajustamento de preços às condições dos mercados internacionais, a fim de que, em épocas normais, possam manter suas exportações em regime de competição.
Acentua Howard que assim como as minas, a indústria e a agricultura norte-americanas terão que enfrentar nos mercados mundiais os artigos produzidos com os menores salários em vigor nos países europeus, na África e Oriente, também a agricultura, a mineração e a indústria das demais Repúblicas do nosso hemisfério terão que defrontar a mesma situação.
MISSÃO COOKE
A Missão Técnica Norte-Americana chefiada pelo sr. Morris L. Cooke visitou o Brasil no segundo semestre de 1942 e fez várias apreciações sobre a nossa situação econômica e social. Observou que o Brasil, como nação industrial, está ainda na adolescência, se bem que se lhe possa vaticinar um grande futuro, possuidor que é de tão vultosa extensão territorial com tão valiosas e variadas riquezas naturais, e com uma população rica de aptidões para os trabalhos materiais e intelectuais.
A Missão assinala os pontos de maior fraqueza do Brasil industrial: 1) a dependência da importação de petróleo, que utilizamos em larga escala em motores industriais, nos automóveis e até para a iluminação; 2) a importação de carvão mineral para os transportes e motores industriais; 3) a carência de metais especiais e equipamentos para novos empreendimentos e conservação dos existentes. Todas essas insuficiências foram motivo de agudas crises registradas na presente guerra.
Em relação aos combustíveis, lembra a Missão que o Brasil consumia 49,5 kg de carvão por cabeça, quando os Estados Unidos consumiam 2.944 kg, ou seja, 60 vezes mais. O Brasil importava, em tempos normais, 1.224 mil m? (7.600.000 barris) de petróleo, dos quais 35%, ou seja, 428.400 m? (2.700.000 barris) de gasolina; utilizava-se de 28,125 litros por habitante, enquanto nos Estados Unidos, em tempos normais, essa cifra se elevava a 1.387 litros, ou seja, 50 vezes mais.
Em relação à eletricidade, o Brasil, com os seus 1.187.000 kW instalados, fornece 65,5 kWh, por cabeça, contra 1.070 kWh, nos Estados Unidos.
Fazendo apreciações sobre a nossa indústria metalúrgica, mostra a Missão que a nossa produção de aço, por cabeça, é 50 vezes menor que a dos Estados Unidos. Acentua o nosso atraso nas indústrias químicas, mostrando que a nossa produção de ácido sulfúrico é de um quilo por pessoa, ao passo que é de 70 quilos nos Estados Unidos. O nosso índice, neste caso, é igual ao existente naquele país em 1860.
Propugna ainda a Missão a necessidade da criação de bancos industriais destinados ao financiamento de novos empreendimentos e ao propiciamento de uma assistência técnica mais intensa.
Finaliza, observando que, na idade do aço e do vapor, a liderança industrial pertenceu às regiões mundiais em que se encontravam depósitos de carvão e minério de ferro, próximos uns dos outros e dos centros populosos. Como no Brasil não ocorre essa circunstância, “os processos econômicos dominantes nos últimos cem anos dificilmente permitiriam as soluções de seus problemas de transporte. A prevalecerem os processos do século XIX, o desenvolvimento industrial do país teria que ser limitado”.
Mas o futuro parece pertencer mais à eletricidade do que ao vapor; ao alumínio mais do que ao aço; e aos transportes aéreos mais do que às estradas de ferro. O Brasil está admiravelmente dotado de elementos básicos para enfrentar um tal futuro.
A SITUAÇÃO
Uma apreciação sobre a nossa evolução econômica, nos últimos cinco anos, indica um sensível progresso em vários ramos de nossas indústrias transformadoras.
Cresceu consideravelmente a nossa produção em quantidade e valor, nas seguintes atividades: tecidos, artefatos de borracha, ferro gusa, ferro laminado, aço, artefatos de ferro e aço, maquinários em geral, produtos farmacêuticos, louças e vidros, seda, lâmpadas e aparelhos elétricos, tintas e vernizes, aparelhos sanitários.
O cômputo da produção industrial, do início da guerra até hoje, demonstra, porém, que poucas foram as indústrias básicas criadas nesse período pela iniciativa particular. Registram-se apenas, nesse setor, alguns valiosos cometimentos promovidos pelo governo federal, e ainda em andamento.
Verificou-se o aumento do valor da produção industrial, principalmente pela alta dos preços de custo e de venda dos artigos produzidos.
A falta de combustíveis, a deficiência de transportes, a ausência de indústrias básicas fundamentais, as dificuldades de técnicos e de mão-de-obra apropriada, impediram um maior surto industrial.
É impressionante, porém, a estagnação que se observa em muitas das atividades primárias, principalmente em relação à agricultura de alimentação.
Os artigos alimentícios há dez anos que se mantêm numa produção total em torno de 18,5 milhões de toneladas. Com o aumento da população, com as exportações realizadas e com as dificuldades de transportes, houve, de fato, uma apreciável diminuição na produção virtual da alimentação, o que explica, em parte, a carestia com que nos defrontamos em relação aos gêneros alimentares.
A expansão industrial e as especulações comerciais estimuladas pela inflação concorreram para o crescimento de nossas populações urbanas, em detrimento das zonas rurais.
As indústrias extrativas de materiais estratégicos e a agricultura de produtos ricos, tais como algodão, menta, seda natural atraíram os braços disponíveis da lavoura, em prejuízo da produção dos artigos de primeira necessidade.
Contribuíram, ainda, para desestimular esse ramo da agricultura, a carência de transportes e os tabelamentos.
Os lucros auferidos com as exportações a altos preços, e com a intensificação e valorização da produção industrial, têm sido investidos, de preferência, em aplicações urbanas.
O considerável aumento do meio circulante agravou a elevação dos preços e estamos a braços com um encarecimento de vida que se acentua continuamente.
Nas grandes cidades, as construções existentes – sobretudo as que se destinam aos operários e classes menos favorecidas – são insuficientes para o abrigo das suas atuais populações.
Apesar da alta dos salários e dos lucros realizados graças a todas essas circunstâncias, a renda nacional, em realidade, não aumentou nos últimos anos.
Os saldos de divisas disponíveis no estrangeiro representam valores que não puderam ser transformados em artigos necessários ao mercado nacional quer como bens de produção, quer como bens de consumo. Traduzem assim, em verdade, parte de uma virtual diminuição da renda nacional.
PÓS-GUERRA
Um levantamento feito em 1943, nos Estados Unidos, demonstrou que 137 importantes organizações, governamentais e privadas, afora muitas outras de caráter regional, dedicavam-se às pesquisas e ao esclarecimento do público, quanto aos problemas que aquele grande país deverá enfrentar no período do pós-guerra.
Cerca de um terço dessas organizações está concentrando a sua maior atenção nas questões internacionais. Preocupam-se, outras, com os regimes das empresas industriais e financeiras.
Abrangem ainda, em seus estudos, a agricultura, problemas de consumo e de segurança, a engenharia e as construções, problemas judaicos, questões trabalhistas e legislativas, obras públicas e transportes.
O inquérito, na observação de Evan Clark, prova que atualmente está se processando um esforço muito maior, do que na guerra passada, para o preparo e fixação de políticas construtivas, que melhor enfrentem e solucionem os problemas do após-guerra.
“E, desta vez, em contraste violento com a última guerra, todos os interesses da nação – capital, trabalho, agricultura e consumidor – parecem”, diz ele, concordar com um objetivo máximo a ser alcançado na paz: o chamado “full employment” [pleno emprego].
Este objetivo traduz uma quase universal aspiração: a máxima utilização, nos tempos de paz, da capacidade produtiva nacional e a redução, ao mínimo, do desemprego, para todos os que, sendo aptos, desejam trabalhar.
Em relação ao Brasil, o período de 1939-1943 veio salientar todas as principais fraquezas de nossa estruturação econômica.
O movimento para a outorga, a todos os homens, de direitos econômicos essenciais, mais acentuara, depois da guerra, a insuficiência da nossa renda nacional.
Toda a nossa evolução tem, portanto, que ser orientada no sentido do fortalecimento da nossa economia e com esse propósito a ela se devem subordinar, a meu ver, as normas de nossa política agrária, industrial e comercial.
PADRÕES DE VIDA
Relatando, no Conselho Federal do Comércio Exterior, em 27 de setembro de 1937, os resultados do inquérito efetuado, por ordem do sr. Presidente da República, em torno das possibilidades da expansão industrial do Brasil, declarei, pondo em relevo o baixo índice de consumo médio do brasileiro, que, então, como hoje, esse índice, era, no mínimo, 25 vezes menor que o do norte-americano: “Tendo em apreço as condições especialíssimas do país, com vastas zonas ainda na fase da economia de consumo e, considerando os índices das regiões mais prósperas, verificamos que se faz mister, pelo menos, triplicar o nosso consumo, para que se alcance um teor médio de vida, compatível com a ‘dignidade do homem’, na sugestiva expressão de nossa carta constitucional”.
Converti, então, os números do consumo brasileiro e norte-americano em libras-ouro, para que nos puséssemos a coberto, na determinação dos valores e na média do possível, das flutuações do poder aquisitivo da moeda.
As considerações que então expendi permanecem de pé e, ao câmbio atual, guardada a mesma paridade, necessitaríamos, pelos cálculos de então, de um acréscimo de 80 bilhões de cruzeiros na renda nacional, que ainda assim seria cerca de sete vezes inferior, por habitante, à norte-americana.
No entanto, o valor relativo de nossa renda nacional, admitindo-se os coeficientes de ponderação, variáveis em harmonia com o poder aquisitivo da moeda, está estacionário ou vem mesmo, nos últimos anos, decaindo.
O consumo médio de um paulista é três vezes superior ao do brasileiro em geral. É, porém, de salientar que o Estado de São Paulo possui, até hoje, grandes regiões empobrecidas e ainda não alcançou um adequado nível de progresso material.
RENDA NACIONAL
Considerando o que se observa, presentemente, na República Argentina, no Canadá e em outras regiões de maior progresso material que o do Brasil, e, ainda, o que sucede nas regiões mais adiantadas do país, levando-se em conta o custo da vida, a necessidade da formação de capitais e as novas condições criadas pela guerra, não é exagerado concluir que necessitaríamos, assim, de uma renda nacional cerca de quatro vezes mais elevada do que a atual, ou seja, de 160 bilhões de cruzeiros. Não se pode, infelizmente, transpor, de chofre, uma diferença tão vultosa.
A produção para o mercado interno está, bem o sabemos, condicionada às necessidades do consumo; estas variam de acordo com a produtividade e com o estágio de educação das populações. A produtividade é função do nosso aparelhamento econômico e eficiência técnica. A educação das populações, por sua vez, depende dos recursos disponíveis para o seu custeio.
Não é possível, tampouco, alcançar, com novas exportações, o substancial enriquecimento indispensável.
Não podemos, porém, nos quedar indiferentes ante esse vital problema brasileiro: a quadruplicação da renda nacional, dentro do menor prazo possível.
Preliminarmente, para resolvê-lo temos que decidir se poderíamos atingir essa finalidade pelos meios clássicos de apressar a evolução econômica, estimulando pelos processos normais as iniciativas privadas, as várias fontes produtoras e o mercado interno, ou se deveríamos lançar mão de novos métodos, utilizando-nos, em gigantesco esforço, de uma verdadeira mobilização nacional numa guerra ao pauperismo para elevar rapidamente o nosso padrão de vida.
As críticas, imparciais e objetivas, que tivemos oportunidade de citar e as considerações já feitas demonstram ser impossível satisfazer esse nosso razoável anseio com a simples aplicação dos processos clássicos.
A prevalecer o lento ritmo observado em nosso progresso material, estaríamos irremediavelmente condenados, em futuro próximo, a profundas intranquilidades sociais.
Vulgarizam-se, cada vez mais, as noções de conforto, e as populações subalimentadas e empobrecidas do país aspiram, legitimamente, a melhor alimentação, habitações apropriadas e vestuário conveniente.
A nossa atual estruturação econômica não conseguiria proporcionar, ao povo em geral, esses elementos fundamentais do novo direito econômico.
PLANIFICAÇÃO ECONÔMICA
Impõe-se, assim, a planificação da economia brasileira em moldes capazes de proporcionar os meios adequados para satisfazer as necessidades essenciais de nossas populações e prover o país de uma estruturação econômica e social, forte e estável, fornecendo à nação os recursos indispensáveis a sua segurança e a sua colocação em lugar condigno na esfera internacional.
A ciência e a técnica modernas fornecem seguros elementos para o delineamento dessa planificação. Haja vista o que se fez na Rússia e na Turquia, quanto ao seu desenvolvimento material; considerem-se as planificações levadas a efeito pelos Estados Unidos, pela Inglaterra e por outros países em luta, para organizar as suas produções, dentro de um programa de guerra total.
Graças aos numerosos inquéritos aqui realizados, possuímos hoje os elementos essenciais à elaboração de um tal programa.
Os Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Economia e as conclusões ali votadas oferecem os inequívocos depoimentos das classes produtoras sobre os seus elevados desígnios de colaborar para o progresso do país.
A parte nucleal de um programa dessa natureza, visando à elevação da renda a um nível suficiente para atender aos imperativos da nacionalidade, tem que ser constituída pela industrialização. Essa industrialização não se separa, porém, da intensificação e do aperfeiçoamento da nossa produção agrícola, a que ela está visceralmente vinculada.
De fato, em um país como o nosso, serão as indústrias mais intimamente ligadas às atividades extrativas e agropecuárias as que usufruirão as mais favoráveis condições de estabilidade e desenvolvimento.
Dependerá ainda essa industrialização da intensificação do aperfeiçoamento dos transportes e dos processos de distribuição e comércio.
A planificação do fortalecimento econômico nacional deve, assim abranger por igual o trato dos problemas industriais, agrícolas e comerciais, como o dos sociais e econômicos, de ordem geral.
Dentro das considerações já expendidas, proporíamos, como objetivo primordial, uma renda nacional superior a 200 bilhões de cruzeiros, na base do poder aquisitivo da moeda em 1942 e a ser alcançada dentro de um prazo de 10 a 15 anos. Desenvolver-se-ia o programa em planos quinquenais contínua e cuidadosamente revistos, cuja execução obedeceria aos imperativos de uma verdadeira guerra econômica contra o pauperismo.
Observadas as atuais condições de rentabilidade em investimentos dessa natureza e tendo em vista os valores empenhados em nosso atual aparelhamento econômico, não será difícil avaliar em cerca de 100 bilhões de cruzeiros o montante mínimo necessário para o financiamento desse programa.
As maiores verbas da planificação seriam, sem dúvida, utilizadas na eletrificação do país, na mobilização de suas várias fontes de combustíveis e na organização de seus equipamentos de transporte.
Abrangeria o programa a criação de moderna agricultura de alimentação e a promoção dos meios apropriados à intensificação da nossa produção agrícola em geral.
Seriam criadas indústrias-chave, metalúrgicas e químicas, capazes de garantir uma relativa autossuficiência ao nosso parque industrial e a sua necessária sobrevivência na competição internacional.
Toda uma série de providências correlatas deveria ser adotada; a montagem de novas escolas de engenharia, a vulgarização de institutos de pesquisas tecnológicas, industriais e agrícolas; a intensificação do ensino profissional.
Impõe-se, da mesma forma, a criação de bancos industriais e outros estabelecimentos de financiamento.
Uma imigração selecionada e abundante de técnicos e operários eficientes cooperaria, em larga escala, para prover as diversas atividades, assim como para um mais rápido fortalecimento de nosso mercado interno, pelo alto padrão de consumo a que estariam habituados esses imigrantes.
QUESTÕES BÁSICAS
Para o início do financiamento de um tal programa, poderia o Brasil empenhar pelo menos 50% de suas atuais disponibilidades no estrangeiro. Evitar-se-ia, dessa forma, uma deflação, tão prejudicial quanto a inflação a que ora assistimos.
Intensificando a produção, concorreríamos para diminuir os efeitos das emissões já realizadas e para conter as atuais fontes inflacionistas.
O grau de intervencionismo do Estado deveria ser estudado com as várias entidades de classe para que, dentro do preceito constitucional, fosse utilizada, ao máximo, a iniciativa privada e não se prejudicassem as atividades já em funcionamento no país, com a instalação de novas iniciativas concorrentes. Proporcionar-se-iam, ao mesmo tempo, os meios indispensáveis à renovação do aparelhamento já existente.
Caso adotada a planificação intensiva de nossa economia, não será possível a permanência, por um certo prazo, das atuais normas de política comercial.
Não seria concebível que, enquanto o país desenvolvesse um formidável esforço no sentido de montar o seu equipamento econômico, fosse ele, em pleno período construtivo, perturbado pela concorrência da produção em massa, de origem alienígena.
Ainda aí poderiam ser observados os meios de defesa utilizados na Rússia e na Turquia, durante a sua reconstrução econômica.
CONCLUSÕES
Do exposto, oferecemos ao exame deste Egrégio Conselho as seguintes conclusões:
I – O Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial reconhece que a evolução econômica do Brasil vem se processando em ritmo absolutamente insuficiente para as necessidades de suas populações.
II – A renda nacional, atualmente de cerca de 40 bilhões de cruzeiros, deverá ser quadruplicada dentro do menor prazo possível, a fim de que possa ser proporcionado às populações um razoável padrão de vida mínimo.
III – Devido à nossa falta de aparelhamento econômico e às condições em que se apresentam os nossos recursos naturais, a renda nacional está praticamente estacionária, não existindo possibilidade, com a simples iniciativa privada, de fazê-la crescer, com rapidez, ao nível indispensável para assegurar um justo equilíbrio econômico e social.
IV – Essa insuficiência, em vários setores da iniciativa privada, tem sido reconhecida pelo governo federal que, direta ou indiretamente – como nos casos do aço, dos álcalis, do álcool anidro, do petróleo, da celulose, do alumínio e da produção de material bélico –, tem promovido a fixação de importantes atividades no país.
V – Dadas todas essas circunstâncias, é aconselhável a planificação de uma nova estruturação econômica, de forma a serem criadas, dentro de determinado período, a produtividade e as riquezas necessárias para alcançarmos uma suficiente renda nacional.
VI – Essa planificação, organizada com a cooperação das classes produtoras, deverá prever a tonificação necessária a ser dispensada a todo o nosso aparelhamento de ensino, ao sistema de pesquisas tecnológicas à formação profissional, à imigração selecionada, à vulgarização do uso da energia motora e ao grande incremento de nossas atividades agrícolas, industriais e comerciais.
VII – O seu financiamento será negociado dentro de novos moldes de cooperação econômica, de forma que, inicialmente, não se supercapitalizem os investimentos por despesas meramente financeiras, devendo as amortizações ser condicionadas ao aumento da produtividade resultante da reorganização econômica do país.
VIII – Durante o período em que for executada a planificação econômica, deverão ser adotadas normas de política comercial que assegurem o êxito dos cometimentos previstos.
Caso estas conclusões sejam adotadas pelo Conselho e mereçam a aprovação do governo da República, caber-nos-á, assim como aos demais conselhos técnicos, uma imensa tarefa na apreciação das várias medidas necessárias à organização e execução da planificação acima esboçada com o alto propósito de assegurar ao Brasil a grandeza a que faz jus.
Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1944.
[Publicado em HORA DO POVO, nº 2929 e nº 2930, 21-26/01/2011 – texto revisto]
3
A primeira proposta de Eugênio Gudin, contrapondo-se ao parecer de Roberto Simonsen – que publicamos condensadamente em nossas duas edições anteriores – é a “redução do volume de obras e investimentos do governo federal ou por ele patrocinados” (cf. rel. de Gudin à Comissão de Planejamento Econômico, março/1945, in “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, 3ª ed., Ipea, 2010, pág. 87, grifo nosso).
O pretexto é o mesmo de hoje: “estancar a inflação”. O fato do país, na época, estar em guerra, inclusive com tropas no front italiano – e, portanto, a inflação ter origem externa – não é algo que Gudin leve em consideração, apesar de, nada menos, se tratar da II Guerra Mundial.
A guerra começara em setembro de 1939, ano em que a taxa de inflação no Brasil, medida pelo Índice de Custo de Vida, fora de apenas 2,7%. Desde 1936, a inflação estava em queda. Seu aumento, em seguida, correspondia a uma situação completamente anormal, isto é, à existência de uma guerra mundial – 1940: 5%; 1941: 10,9%, 1942: 12,1%; 1943: 15%; 1944: 27,3% (cf. Quadro I in Alberto Passos Guimarães, “Inflação e Monopólio no Brasil”, 1ª ed., Civ. Bras., 1963, pág. 10).
Evidentemente, o Brasil não era um caso único. Nos EUA, que, como nós, não entraram na guerra imediatamente, ela também se acelerara depois de 1939 – em 1946, um ano após o término da II Guerra Mundial, ainda estaria em 18,13%, o que, aliás, era um dos espantalhos que a oposição republicana, assessorada por Friedman e outros futuros “neoliberais”, agitavam contra o governo Truman.
As demais propostas de Gudin implicavam no aumento dos juros pela restrição monetária e de crédito; na canalização de recursos da Previdência para a especulação com títulos; no fornecimento aos bancos privados de “letras do Tesouro” no redesconto (tornando-os credores, ao invés de devedores, como eram até então, do Estado); no estímulo às importações inclusive de produtos que o país já fabricava (“gradativa aproximação das taxas cambiais ao nível de paridade do poder de compra do cruzeiro e das moedas estrangeiras, acabando-se com o regime de licença prévia”); no fim do controle cambial sobre o lastro da moeda (“liberdade de exportação do ouro de produção nacional”); e, enfim, “que se dê ao capital estrangeiro (…) favorável acolhimento e igualdade de tratamento em relação ao capital nacional”, “que se suprimam quaisquer restrições ou impostos que incidam sobre a remessa de lucros, juros ou dividendos de capitais estrangeiros investidos no país”.
Se ao leitor tudo isso se parece com algo que já viu (ou ouviu) mais recentemente, pode estar seguro: o relatório de Gudin, muito antes de existir a palavra “neoliberalismo”, ou desta se tornar corriqueira, reúne toda a retórica econômica – e não era apenas retórica – entreguista, antinacional, antipopular, e, por consequência, antidemocrática que ouvimos desde 1990 e ainda hoje. Sobre o último aspecto, Gudin apresenta-se sempre como uma vestal da liberdade, acusando seus oponentes de inimigos da democracia. Mas, diz ele, que seria um fero apoiador do golpe de 64, “ninguém nega” os méritos da “ditadura que se substitui ao caos” (cf. “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, ed. cit., pág. 72).
Também estão no relatório o famigerado “estado indutor” dos tucanos (“… a função do Estado liberal é, como dizem os ingleses, ‘a de estabelecer as regras do jogo, mas não a de jogar’”) e… a privatização das estatais, que ele não se atreve – porque então seria um escândalo – a declarar-se a favor de abri-las totalmente ao capital estrangeiro (“deveríamos tratar de vender ao público as ações de propriedade do governo, permitindo ao capital estrangeiro uma participação de 30% ou 40%”).
Hoje, quando aparecem gênios apregoando que para aumentar a taxa de investimento (formação bruta de capital fixo/PIB) é preciso diminuir (?!) os investimentos públicos, nada há de novo sob o sol. Gudin já pronunciara essa pérola de sabedoria em 1945 – como, aliás, em 1930, em 1954, em 1964, e, provavelmente, apesar desse mandamento ter-se mostrado sempre uma fraude, em todos os anos e dias até 1986, quando morreu.
Uma das características da política econômica reacionária – ou seja, antinacional – é que ela não muda, é sempre a mesma, independente das circunstâncias, não importa o patamar que a economia tenha atingido ou que fase histórica esteja vivendo o país. Que diferença há, exceto o penteado, entre Gudin, Roberto Campos ou Gustavo Franco?
Essa política, por sinal, nada tem de anti-inflacionária. Pelo contrário, ela deixava o país, como hoje, à mercê da especulação externa, com os preços determinados a partir de fora. Naturalmente, para compensar tal problema, era preconizado o aumento dos juros – com o favorecimento dos que especulam com a dívida pública. E para que os juros, ao encarecer os custos, não aumentassem também a inflação, suas taxas teriam que ser altas o suficiente para destruir ou paralisar, pelo menos parcialmente, o parque, as forças e os investimentos produtivos.
Porém, a inflação está aqui mais ou menos como Pilatos naquela oração. Tanto assim que os remédios recomendados contra ela eram, essencialmente, inflacionários. O essencial para Gudin & cia. era que o Estado não emitisse moeda, ficando dependente dos bancos para obter recursos. Ao mesmo tempo, era preciso impedir a desvalorização das dívidas de pessoas e empresas para que os credores – os bancos – não tivessem diminuídos os seus lucros reais. Daí, já em 1945, Gudin brandia a inflação como principal problema do país. A quebradeira que provocou como ministro da Fazenda do governo Café Filho seria tão ameaçadora que provocou sua saída do Ministério – acompanhado de seu velho parceiro Octávio Gouveia de Bulhões, que nomeara para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc).
CIÊNCIA
Não precisamos defender Roberto Simonsen do ataque que Eugênio Gudin dirigiu ao seu parecer. Ele mesmo se encarregou da tarefa – e, nas próximas edições, o leitor poderá tomar conhecimento, através de suas próprias palavras, de um dos documentos mais importantes da História do país. Existe apenas um ponto, ainda hoje envolto em confusão, que merece maior abordagem, o que faremos mais à frente – aquele que se refere às estatísticas do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em especial ao cálculo e ao conceito de “renda nacional”.
Porém, algumas colocações posteriores à polêmica, que subsistem ainda hoje, nos obrigam a uma análise um pouco mais detalhada do relatório de Gudin.
Em primeiro lugar, uma observação sobre o fundo teórico da discussão.
Tornou-se quase lugar-comum a afirmação de que, apesar de Simonsen ter vencido a discussão naquilo que importa – o caminho que o país seguiria – “seus conhecimentos de economia como ciência eram extremamente precários, o que deu a Gudin, em todas as fases do debate, uma grande superioridade ‘técnica’” (cf. Doellinger, em sua introdução à primeira edição de “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, ed. cit., pág. 30).
Mais ou menos o mesmo é dito, após uma impecável apresentação do debate e da posição de cada contendor, pelos professores Aloísio Teixeira e Denise Lobato Gentil: “De um ponto de vista estrito da ciência econômica, Gudin estava mais preparado que Roberto Simonsen, pois conhecia as teorias convencionais, dominantes à época” (cf. “O debate em perspectiva histórica” in Aloísio Teixeira, Gilberto Maringoni e Denise Lobato Gentil, “Desenvolvimento – O debate pioneiro de 1944-1945”, Ipea, 2010, pág. 23).
Resta saber se essas “teorias convencionais” tinham (ou têm) algo a ver com ciência econômica. Embora, no caso desses autores, para que o leitor não tenha uma impressão distorcida de sua posição, é justo também frisar que eles dizem que:
“As limitações da obra de Gudin como fonte de inspiração para ajudar na tarefa de superação do subdesenvolvimento eram grandes e óbvias. Gudin estava preocupado em mostrar as virtudes e a eficiência da ordem gerada pelo livre mercado, quando era necessário revolucionar o modo como a sociedade brasileira se organizava para produzir e distribuir riqueza. Simonsen concebeu sua teoria num momento histórico singular — o inicio do processo de industrialização da economia brasileira, no período que se seguiu à Grande Depressão e à Revolução de 1930 — quando não havia uma explicação coerente para a profundidade e extensão do subdesenvolvimento; o próprio conceito sequer havia sido formulado. Ele não apenas ofereceu uma interpretação para os fatos como procurou mostrar a inconsistência da teoria liberal, adotada por Gudin, apontando a falta de realismo de suas hipóteses e a inadequação de seus instrumentos de política econômica para enfrentar os problemas brasileiros” (Aloísio Teixeira e Denise Lobato Gentil , op. cit., págs. 22/23, grifo nosso).
Portanto, estranha era a “ciência” econômica de Gudin, uma “ciência” inconsistente, inadequada para tratar a realidade – aliás, que fazia questão de ignorá-la, em completa contradição com ela. Como observam os autores, a premissa de Gudin é que a economia brasileira em 1945 já atingiu o “pleno emprego” e, mesmo, o “hiperemprego” – em outras palavras, haveria um descomunal excesso de emprego no Brasil. A partir disso, Gudin conclui que o aumento da produção industrial nacional só teria como resultado o aumento da inflação.
Aqui, é preciso dizer que ele também afirmava que o Brasil estava numa situação de “hiperinvestimento” – capital excessivo investido em bens de produção (aço, máquinas e equipamentos) em detrimento dos bens de consumo – numa época em que, com exceção de algumas iniciativas isoladas, a indústria pesada do país era constituída somente pela recém-construída Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), coadjuvada pelas também estatais Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e Companhia Nacional de Álcalis (CNA).
Não era por razões teóricas que Gudin sacou seu “hiperemprego” e “hiperinvestimento”. Logo depois de mencionar essas duas ficções, ele esclarece seu objetivo: “Importa corrigir, quanto antes, o grave desequilíbrio de nossa economia, reduzindo o nível de nossas atividades no setor de investimentos (…), aguardando que o término da guerra nos permita obter novos elementos de produção, que o nosso tráfego marítimo seja coadjuvado pela navegação estrangeira e por novos navios, que o carvão e a gasolina importados aliviem a pressão sobre nossas estradas de ferro (…). E é de esperar que então cesse também o fluxo ininterrupto das emissões de papel moeda, causado pela carência das importações” (op. cit., pág. 94).
Generalizando a observação de uma autora, a especialidade de Gudin não era a teoria econômica, mas “transformar o seu interesse particular em opção universal para o país” (v. Maria Angélica Borges, “Eugênio Gudin: capitalismo e neoliberalismo”, Educ, 1996, pág. 208).
Nisso, ele, já em 1945, não se distingue dos neoliberais que pulularam por aqui a partir da década de 90. Ao contrário dos chamados economistas “neoclássicos” – por exemplo, Léon Walras ou Alfred Marshall – que procuravam demonstrar, inclusive matematicamente, a sua teoria de que a oferta e a procura sempre entravam em equilíbrio, ou do famoso Say, para quem os produtos sempre criavam procura para outros produtos – portanto, as crises de superprodução não existem – os neoliberais não têm essa ilusão, nem procuram demonstrar coisa alguma.
Eles não acham que o mercado é o regulador perfeito da economia – ou da Humanidade. O próprio corneteiro do neoliberalismo, Friedrich von Hayek, havia contestado os “neoclássicos” nesse ponto, já em 1937 – e Gudin, que cita Hayek em seu relatório, repete a mesma coisa.
Então, se é assim, de onde vem a fé dos neoliberais no mercado?
Primeiro, da fé propriamente dita, embora pervertida. Trata-se mais de uma religião do que de uma teoria econômica – a crença no extraordinário princípio filosófico (o próprio Hayek admitiu que não se trata de um princípio econômico) de que tudo o que é espontâneo é melhor do que qualquer coisa que seja consciente. Segundo eles, qualquer planejamento é feito por uma minoria, portanto, conduziria à tirania. O fato da economia “espontânea” ser o capitalismo monopolista, ou seja, o domínio de meia dúzia de monopolistas que manietam ditatorialmente o mercado, não abala essa crença sectária, pois não se trata de uma questão de lógica, mas de dogma – aliás, dos mais cínicos: ao visitar a meca do neoliberalismo no início dos anos 80 (o Chile sob a ditadura de Pinochet), Hayek declarou: “Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal do que um governo democrático carente de liberalismo” (entrevista a El Mercurio, 12/04/1981, págs. D8/D9).
Além disso, e provavelmente muito mais importante, segundo os neoliberais, o mercado tem a virtude de eliminar os incapazes e premiar os mais capazes – isto é, os mais capazes de se aproveitar do bem comum e até de bens que não são comuns, mas são alheios. Naturalmente, entre os “mais capazes”, estão eles mesmos, e com destaque.
Se o leitor pensa que nós estamos exagerando, pedimos apenas que se lembre do que aconteceu nos últimos anos nos EUA – inclusive com alguns portadores do Prêmio Nobel de economia – ou aqui mesmo, com aquela trupe tucana de professores de economia que, do dia para a noite, transformaram-se em bilionários. Um dos pós-graduandos em economia de maior destaque no Massachusetts Institute of Technology (MIT), por falar nisso, chama-se Daniel Dantas.
JARGÃO
O trecho de Gudin que citamos acima é suficientemente esclarecedor: sua questão, com a II Guerra Mundial prestes a terminar, era que o Brasil não continuasse a desenvolver uma economia independente – sobretudo dos EUA, que despontava como a nova potência hegemônica do campo imperialista. Por isso, diz ele, tínhamos que ficar “aguardando que o término da guerra nos permita obter novos elementos de produção”.
Que as suas premissas (“hiperemprego” e “hiperinvestimento”) e a sua conclusão (a inevitabilidade do aumento da inflação, se a produção industrial crescesse) fossem manifestamente falsas, não era algo que lhe causasse embaraços, nem fazer com que as revisse. O que importava a ele não era a verdade, não era a “ciência”, mas chegar ao resultado prático: o Brasil devia continuar importando produtos industriais da Inglaterra e dos EUA, ao invés de desenvolver sua indústria própria e fabricá-los.
Com todo respeito aos autores que mencionamos, em nossa opinião, não devemos confundir ciência com jargão ideológico – nesse caso, um jargão que Gudin repetiria, sem acréscimos ou subtrações, durante mais de 50 anos, em cada um de seus numerosos (e, ao fim, tediosos) artigos. Aliás, exceto esse panfletário propagandismo, suas únicas contribuições dignas de nota foram, quando ministro da Fazenda de Café Filho, uma recessão e a famigerada Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), permitindo que as empresas estrangeiras, sem qualquer cobertura cambial, fizessem seus “investimentos” no país sob a forma de transferência direta de máquinas usadas, que haviam se tornado tecnologicamente obsoletas em suas matrizes e países de origem.
Nem mesmo a ditadura que apoiou em 1964 conseguiu suportá-lo – depois do desastre, no governo Castello Branco, que foi a gestão de seu principal discípulo, Roberto Campos, no Ministério do Planejamento, e do seu principal parceiro, Bulhões, na Fazenda, a ditadura preferiu recorrer a gurus econômicos menos alucinados…
Roberto Simonsen, do ponto de vista teórico, apesar do foco do debate ser a política econômica (isto é, como desenvolver – ou não – as forças produtivas do país), vai além, abordando o fundamento de ambas as posições, ou seja, entrando diretamente no campo da economia política (o estudo das relações de produção). Nesse terreno, ao nosso ver, expõe a mediocridade do oponente. Por exemplo:
“Para S. Sª, o homo economicus da escola individualista é o que deve imperar nos processos econômicos e sociais de hoje. Não compreendeu que, pela contínua renovação da humanidade, pela transformação profunda por que passaram os povos, com os crescimentos demográficos, com os processos da ciência e da técnica e sob a influência dos ambientes geográficos, quem agora quiser compreender a possibilidade da existência de um desenvolvimento pacífico mundial, tem que substituir o egoísta homo economicus pelo moderno ‘homem social’ que antepõe aos seus próprios os interesses da coletividade” (cf. “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, ed. cit., pág. 154).
E, logo adiante, aborda a questão sob o ângulo da história das ideias econômicas:
“Acreditava-se no século XIX que a riqueza da comunidade era igual à soma total do bem-estar material dos indivíduos e que assim cada um, desejando melhorar a sua própria condição econômica, contribuía automaticamente para a riqueza da comunidade em geral. Acreditava-se, ainda, que a atividade econômica era autorreguladora e que a iniciativa particular, no regime da concorrência dos interesses individuais, era controlada pelo jogo desses próprios interesses. Desnecessário era, portanto, o controle governamental no regime dos negócios. Mas a devastação das riquezas naturais, a ausência de defesa em relação a múltiplos fenômenos meteorológicos, as sucessivas crises econômicas, a existência da miséria em meio à abundância, a crescente concentração de riquezas em mãos de um pequeno número, a exploração do homem pelo homem, toda uma série de imensos problemas criados pelas grandes aglomerações urbanas, a profunda diferenciação na evolução entre as nações ricas e as nações pobres, a impossibilidade de o sistema de preços refletir, num dado momento, as condições prováveis dos mercados futuros tornaram evidente a insuficiência do primitivo automatismo social e econômico, admitido pelos economistas clássicos. Em consequência surgem, cada vez com maior frequência, os intervencionismos de Estado, ansiando por corrigir numerosas compressões, injustiças sociais e sofrimentos geradores de crises e guerras. Mas enquanto as empresas particulares gastam largas somas em pesquisas, em estudos de organização, procurando pressentir as necessidades das populações, planejando o seu desenvolvimento e a conquista de mercados, nega-se, por simples amor a pretensos dogmas e doutrinas, o direito ao Estado de perquirir sobre os aspectos econômicos e sociais da vida comum, para habilitá-lo, num planejamento adequado, a orientar a sua evolução, dentro de um processo que aspire evitar, tanto quanto possível, a eclosão de atritos e de crises de toda ordem” (op. cit., págs 154/155).
Isso foi escrito em 1945 pelo fundador – e presidente durante cinco mandatos – da Fiesp!
Não é preciso dizer que todo o desdobramento econômico posterior, não somente no Brasil, mas no mundo – inclusive e sobretudo a atual crise – confirmou o ponto de vista de Roberto Simonsen.
[Publicado em HORA DO POVO, nº 2931, 28/01/2011 – texto revisto]
4
Hoje, com a distância de mais de seis décadas, parecem algo cômicos – e realmente seriam, se não fosse o sofrimento por atacado que essa pregação implicava – os métodos de Gudin travar polêmica.
Roberto Simonsen apontou os recursos francamente desonestos – o principal, certamente, é a falsificação do que foi dito (e escrito) pelo oponente – ou rocambolescos (p. ex., extensas arengas sobre questões que não estão em foco) e observou que a mais constante “prova de autoridade” de Gudin é constituída por citações de si mesmo. Realmente, Gudin é a autoridade em economia mais citada por Gudin.
Além disso, ele convoca “testemunhas” sem nenhum parentesco ideológico com a sua posição – aliás, em completa oposição a ela – para, supostamente, apoiá-la.
Ao leitor de hoje parecerá incrível que Stalin seja citado quatro vezes para “provar” isto ou aquilo – por parte do mesmo sujeito que descreveu o golpe de 64 como uma “reação do povo brasileiro e de suas forças armadas contra a tentativa perpetrada por um conjunto comuno-anarquista que visava levar o país ao caos e atrelá-lo ao grupo de países comandados pelo marxismo”.
Um pouco menos aberrante, mas quase tanto, parece ao leitor atual as suas menções hagiológicas a John Maynard Keynes – um autor que ele, em verdade, detestava, e com bastante razão: Keynes era o oposto, na economia política não-marxista, dos ídolos americanos e ingleses de Gudin.
Naturalmente, em 1945, Stalin e Keynes estavam no auge do prestígio até no jornal em que Gudin era diretor. Logo, que se danassem os escrúpulos. Se é que havia algum para se danar.
Característico é o seguinte trecho, em que Gudin pretende combater a própria ideia de planificação econômica:
“Stalin estava, pois, coberto de razão, quando, em entrevista concedida ao famoso escritor inglês H. G. Wells, dizia-lhe, a propósito do New Deal americano, que é preciso saber-se o que se quer; ou economia liberal, respeito ao capital e incentivo a sua aplicação, ou comunismo, capitalismo de Estado” (cf. Gudin, “Rumos de política econômica”, in “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, 3ª ed., Ipea, 2010, págs. 69/70).
Deixemos de lado a falsificação que, por mágica ou alquímica transmutação, tornou, subitamente, socialismo (aliás, “comunismo”) sinônimo de “capitalismo de Estado”. No limiar da Guerra Fria e do macartismo, Gudin quer chamar de comunista a qualquer um – mesmo um grande empresário e presidente da Fiesp – que seja a favor de uma economia brasileira independente, vale dizer, de um país desenvolvido. Como Roberto Simonsen observou, Lenin, muito antes, quando formulou a “Nova Política Econômica” (NEP), já diferenciara socialismo de “capitalismo de Estado”. Resta acrescentar que Stalin, ao conversar com o escritor inglês, também não confunde um e outro – o que fica na conta de Gudin.
PRINCÍPIO
Na entrevista com H. G. Wells, em 1934, Stalin estava rebatendo a seguinte afirmação de seu interlocutor: “Parece-me que o que está acontecendo nos Estados Unidos é uma profunda reorganização, a criação de uma economia planificada, isto é, socialista” (grifo nosso; a frase original de Wells foi: “It seems to me that what is taking place in the United States is a profound reorganisation, the creation of planned, that is, socialist, economy”).
É nesse sentido – o de planificação socialista da economia – que Stalin diz que “nem haverá planificação” porque “os Estados Unidos buscam propósito diverso do que buscamos na U.R.S.S. Os norte-americanos (…) estão tratando de reduzir ao mínimo a ruína, as perdas causadas pelo sistema econômico existente. (…) Embora os americanos (…) atinjam parcialmente o seu propósito, quer dizer, reduzam ao mínimo tais dificuldades, não destruirão as raízes da anarquia que é inerente ao sistema capitalista. Estão preservando o sistema econômico que deve conduzir inevitavelmente – e não pode senão conduzir – à anarquia na produção. De modo que, na melhor das hipóteses, o que atingirem será, não a reorganização da sociedade, não a abolição do velho sistema social que engendra a anarquia e as crises, mas a limitação de algumas de suas características negativas, certa restrição aos seus excessos” (grifos nossos).
Stalin referia-se, portanto, às limitações da planificação numa economia capitalista – e, mais: numa economia capitalista central, isto é, no capitalismo monopolista. É nesse sentido que ele diz que não haverá planificação do conjunto da economia, se ela permanece dominada por monopólios financeiros.
No que tem, aliás, toda razão. Tanto assim que a luta de Roosevelt e demais defensores do “New Deal” esteve sempre dirigida contra esses monopólios – que, derrotados nas eleições para o governo e o Congresso, usaram a incensada Corte Suprema como último (e bem sucedido) refúgio. O caso da Alcoa, com 100% do mercado de alumínio dos EUA, monopólio que o governo Roosevelt, em 1938, não conseguiu desmontar devido a querelas judiciais, é bem conhecido, e está longe de ser o único. A propósito, de passagem, uma observação: o maior defensor do monopólio privado do alumínio, Alan Greenspan (para quem, literalmente, “a Alcoa está sendo condenada por ser demasiado bem sucedida, demasiado eficiente e demasiado boa em competir”), seria o presidente do Fed (o banco central dos EUA) que faria o país imergir na mais grave crise desde 1929.
Porém, antes, já em 1935, a Corte Suprema considerou inconstitucional o National Industrial Recovery Act (NIRA), proposta do governo aprovada pelo Congresso (16 de junho de 1933), que concedia poderes ao presidente para garantir a “justa competição” (fair competition) nos vários ramos da economia. Como escreveu Roberto Simonsen, o NIRA tinha “o intuito de proporcionar trabalho aos desempregados, incrementar o poder aquisitivo das massas, estabelecer as relações industriais e abolir a concorrência desleal, mediante atos de planejamento industrial” (cf. “A Controvérsia…”, ed. cit., pág. 157).
Naturalmente, foi em nome do “livre mercado” que o NIRA foi estigmatizado pela imprensa – e rejeitado pela Corte Suprema. Ainda hoje existe vasta literatura propagandística que atribui a Roosevelt, com essa lei, a intenção de criar… cartéis e monopólios. Como se, na economia norte-americana, eles precisassem ser “criados”.
Nada do que foi dito a Wells tem a ver com a impossibilidade de outra coisa que não seja “economia liberal ou comunismo”. Stalin, ao contrário, afirma que é possível a restrição de “algumas características negativas” do capitalismo, de “reduzir ao mínimo a ruína, as perdas causadas pelo sistema econômico existente”, etc., e mais: “teoricamente não está excluída a possibilidade de se caminhar gradualmente, passo a passo, sob as condições do capitalismo, até a meta pelo senhor chamada socialismo no sentido anglo-saxão da palavra. Mas que “socialismo” será esse? Na melhor das hipóteses, será um freio aos representantes mais obstinados do lucro capitalista, certo reforçamento do princípio regulador na economia nacional. Tudo isso está muito bem” (grifos nossos).
Portanto, a conclusão de que somente é possível “economia liberal ou comunismo” é somente de Gudin, pois “economia liberal” é exatamente a ausência de qualquer “princípio regulador na economia nacional”, isto é, a supressão dos limites aos monopólios financeiro-industriais – que alguns cobrem com a falsa expressão “livre mercado”, hoje mais inútil do que as folhas de parreira após a expulsão do Paraíso.
E, se era possível “certo reforçamento do princípio regulador na economia nacional” dos EUA, mais ainda na economia de um país como o Brasil, que precisava, e ainda precisa, acelerar seu desenvolvimento – e onde os monopólios são, fundamentalmente, externos.
Há ainda outra citação de Stalin: a crítica severa, no XVII Congresso do PCUS (1934), aos elementos burocratizados na direção das indústrias soviéticas. Disso, Gudin conclui que toda intervenção estatal na produção leva ao domínio da burocracia (como se os bancos e multinacionais não fossem, exatamente, gigantescas e cancerosas burocracias, impunes a qualquer crítica e sem controle da coletividade, sobretudo se comparados a estatais, como, hoje, a Petrobrás, ou, na época, a CSN – temendo um direto no ponto fraco, Gudin tenta fechar a guarda, chamando esta empresa de “exceção”).
MODELO
Resumindo: o parecer de Roberto Simonsen propunha uma política econômica para que o Brasil superasse o atraso em relação aos países desenvolvidos. Gudin afirma que essa política não somente é desnecessária, mas nociva e fantasiosa – pois, chegar no nível dos países desenvolvidos, com a quadruplicação da renda nacional, “é mais propriamente matéria literária”, ou seja, ficção, no melhor dos casos, utopia (Gudin, op. cit., págs. 64/65).
Sob a forma de uma não-política, de um “deixar-fazer” (“laissez-faire”), ele propõe outra política econômica, que resume com as seguintes palavras: “Acredito muito mais na análise das deficiências, das deformações e dos erros praticados em cada um dos setores da economia e no estudo da maneira de corrigi-los” (op. cit., pág. 60).
Naturalmente, ninguém pode ser contra a análise das “deficiências, deformações e erros” e muito menos contra o “estudo” de como sanar esses problemas.
Entretanto, as “deficiências”, “deformações” e “erros” que Gudin quer “corrigir” são, sucintamente, como notou Roberto Simonsen, toda a política econômica do governo Getúlio, todo o modelo econômico construído após a Revolução de 30.
O que era esse modelo, edificado em meio à pior crise que o capitalismo passara até então?
Ainda que incompleto, um bom resumo – porque bastante curto – é fornecido pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso, em sua apresentação da polêmica:
“O novo modelo foi emergindo através da mudança de preços relativos, as elevações de tarifas de exportações (em favor da indústria) e os controles cambiais. Resultado: o produto industrial voltou a crescer em 1931. E o PIB, em 1932. De 1932 a 1939, a taxa média de crescimento da indústria foi de 10%. Enquanto isso, nos EUA, o PIB em 1939 ainda não havia voltado ao nível de 1929” (Velloso, in “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, ed. cit., pág. 13).
Evidentemente, esse modelo era baseado em pesados investimentos públicos, que, como sempre aconteceu na história do país, “puxaram” os investimentos privados.
Diante disso, Gudin propõe o que, aparentemente, é uma volta à República Velha. No entanto, não é a agricultura, mas o capital estrangeiro, que ele quer favorecer. A agricultura entrou em sua política porque, se o interesse do capital estrangeiro à época era dominar o nosso mercado através de produtos fabricados no exterior, Gudin tem de concluir que a indústria não é remédio para a pobreza do povo. No entanto, não pode dizer que não há remédio para a pobreza. Tal afirmação, como outras, repetidas privadamente pelos futuros próceres da UDN, não era politicamente sustentável em público – algo que seu primeiro candidato a presidente, Eduardo Gomes, aprenderia com a derrota para o candidato dos “marmiteiros”. Gudin era mais esperto, ou mais desonesto: basta “aumentar a produtividade” da agricultura para que a pobreza desapareça do país…
Segundo diz, em vez de nos preocuparmos em industrializar o país, “precisamos é de aumentar nossa produtividade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente, isto é, capacidade para exportar” (op. cit, pág. 106, grifo nosso).
O mercado interno não tem função nesse enunciado, pois “produzir vantajosamente” é a mesma coisa que “capacidade para exportar”. O combate à pobreza de Gudin nada tem a ver com a expansão do mercado interno – portanto, é, precisamente, a eternização da pobreza.
Para completar, nem na agricultura, segundo sua opinião, nós temos alguma chance, pois, logo seguida, diz ele: “não se pode dizer que a natureza tenha sido especialmente generosa para conosco em suas dádivas de terras férteis e planas” (idem).
Não vamos fazer comentários, porque são desnecessários, sobre esse profundo conhecimento geográfico. Mas, resumamos a sua conclusão:
Não podemos ser um país industrial porque nos falta capacidade. E, na agricultura, a natureza nos foi ingrata. Assim, nada nos resta, exceto ser um apêndice de povos e nações mais favorecidas – antes (ou até) que eles nos rejeitem. A outra solução, supomos, é emigrar para outro país…
Hoje, não é preciso mais demonstrar que os países agrícolas são mais pobres do que os países industriais, ou que as relações de troca comercial entre uns e outros são, via de regra, relações de espoliação em favor dos segundos. Também em 1945 já não era preciso demonstrar o que é, apenas, um fato. Desde o Tratado de Methuen, assinado no longínquo ano de 1703, em que Portugal desistia de uma indústria própria, trocando vinho pelos tecidos ingleses, tal constatação era um lugar-comum.
Certamente, as consequências desse tratado não impediram David Ricardo, mais de um século depois, de apresentar como prova de sua teoria das “vantagens comparativas”, exatamente a relação comercial entre Portugal e Inglaterra – mas Ricardo, que era, privadamente, um especulador financeiro inglês nascido em uma família judaica expulsa de Portugal, tinha motivos para ver a realidade de uma determinada forma.
O ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso lembra um fato importante:
“[nos EUA] A ênfase na industrialização, como é sabido, nasceu da iniciativa do Secretário da Fazenda, Alexander Hamilton, com seu Report on Manufactures, de 1791, à base do argumento da ‘indústria nascente’. E a sua viabilização veio com o Tariff Act de 1816. A opção brasileira foi feita na altura da Independência: reafirmação do modelo de agricultura de exportação à base da escravidão, em grandes propriedades. Opção, aliás, reafirmada em 1850, pelo Conselho de Estado, que assessorava o Imperador. (…) Opções dessa magnitude têm consequências. No caso, a principal foi o salto verificado no hiato de renda per capita entre os dois países: em 1820, a renda per capita dos EUA correspondia a uma relação de 1,9 para 1 em relação à brasileira; em 1914, 6/7 para 1” (op. cit., pág. 12, grifo nosso).
Nesse caso, Gudin não achava que aquilo que servia para os EUA poderia servir para o Brasil. Pelo contrário.
Aqui, é preciso notar que Gudin não defendia qualquer capital estrangeiro. Muitos anos depois de seu relatório, no governo Juscelino, ele empreenderia uma campanha na imprensa contra a instalação de montadoras automobilísticas europeias no Brasil. Sua argumentação pode ser resumida rapidamente: era mais barato continuar importando carros – e o leitor pode adivinhar de onde (cf. o seu livro “Inflação, importação e exportação, café, crédito, desenvolvimento, industrialização”, Agir, 1959).
RAÍZES
A ideologia de Gudin em 1945 (ou em 1986, quando morreu) não era qualitativamente diferente daquela exposta em 1897 – isto é, cinco décadas antes – pelo promotor da maior devastação econômica que já houve no país até Fernando Henrique, o ministro da Fazenda do governo Campos Sales, Joaquim Murtinho:
“A indústria não constitui fim a que se deve procurar atingir à custa de todos os sacrifícios. Limitemos paciente e corajosamente a expansão manufatureira à pequenez dos nossos recursos econômicos e restrinjamos a ação governamental ao que ela pode oferecer de mais útil e salutar ao desenvolvimento industrial de nossa pátria: a Ordem por meio da Liberdade, mantendo a paz a todo transe e fazendo desaparecer todas as peias regulamentares que entorpecem os movimentos da atividade individual. (…) Não podemos, como muitos aspiram, tomar os Estados Unidos da América do Norte como tipo para nosso desenvolvimento industrial, por não termos as aptidões superiores de sua raça, força que representa o papel principal no progresso industrial desse grande país” (grifo nosso).
Gudin, em 1945, não fala na inaptidão da nossa raça – depois das mudanças efetuadas pelo governo Getúlio, e ao fim da guerra contra os nazistas, o racismo público e despudorado não era mais tolerável. Mas que explicação ele teria para a nossa suposta “incapacidade” em qualquer outra atividade econômica que não fosse a agricultura? Que maldição haveria sobre o povo brasileiro que o tornava incapaz para os empreendimentos industriais?
Em Gudin, tanto quanto em Murtinho, a histeria contra a industrialização e o desenvolvimento nacionais era secundária ao seu servilismo em relação aos países capitalistas centrais.
Assim, atacando o parecer de Roberto Simonsen ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), ele escreve uma frase que teria descendência: “Todos que, no Brasil e alhures, quiserem compreender qualquer coisa da conjuntura econômica, precisam se compenetrar deste postulado: ‘Estados Unidos bem, o mundo bem; Estados Unidos mal, o mundo mal’” (cf. “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, ed. cit., pág. 67).
Reparemos que, segundo Gudin, isso era um postulado – uma proposição que, para ser verdadeira, não precisa ser demonstrada.
5
O texto que começamos a publicar hoje é a condensação da resposta de Roberto Simonsen ao ataque de Eugênio Gudin – analisado em nossa última edição – diante do parecer ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial
ROBERTO SIMONSEN
Em março de 1944, o senhor Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio formulou, no Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, uma indicação no sentido de que se investigasse se a nossa evolução econômica já havia estabelecido os princípios fundamentais que devem orientar o desenvolvimento industrial e comercial do Brasil, dando-me a honra de ser designado relator.
Os elementos que alinhei nesse parecer, inclusive a observação a que dei realce especial, sobre a diminuição relativa da produção de gêneros alimentícios, têm sido largamente comentados e aproveitados em estudos e críticas de toda espécie, que surgiram após a sua publicação.
Todos os índices disponíveis sobre a evolução econômica demonstram a lentidão do ritmo de nosso progresso em relação aos povos que, nos últimos 150 anos, vêm se colocando na vanguarda da civilização, sendo, sem dúvida, alarmantes as características de pobreza que afligem grandes zonas de nossa pátria.
Mostrei que necessitamos pelo menos quadruplicar, dentro do menor prazo possível, a renda nacional, para que possamos atingir um padrão de vida que apenas se aproxime daquele que usufruem alguns povos que têm vida bem mais modesta do que as nações supercapitalizadas.
Faço transcrever em anexo, na íntegra, esse parecer, para que os senhores conselheiros possam ter exato conhecimento da exposição, em que procurei, seguindo um método rigorosamente científico, partir da coleta de um conjunto de dados, passando, em seguida, à sua análise objetiva, para oferecer, afinal, uma solução ao problema, dentro dos recursos que os modernos aparelhamentos técnicos, econômicos e políticos oferecem hoje aos povos que querem progredir.
Desenvolveu-se o preparo desse projeto em sessões sucessivas do Conselho, dando lugar a um notável relatório final, que – redigido a 10 de outubro de 1944 por uma comissão de que participaram os senhores Euvaldo Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria; João Daudt d’Oliveira, presidente da Federação das Associações Comerciais do Brasil e da Associação Comercial do Rio de Janeiro; Heitor Grillo, destacado técnico brasileiro em assuntos agrícolas, e San Thiago Dantas, erudito cultor das letras jurídicas – foi subscrito pela totalidade dos membros do Conselho.
PLANIFICAÇÃO
Além dos elementos aí referidos sobre o pauperismo brasileiro, a nossa história econômica apresenta uma série de ensinamentos que não podem ser desprezados.
Na apreciação das evoluções verificadas em vários países impõem-se, cada vez mais, a nossa consideração, as profundas diferenciações existentes entre as estruturas econômicas e sociais das nações consideradas ricas e das que se encontram em pronunciado atraso.
As mesmas instituições políticas, sociais e econômicas aplicadas a vários povos produzem resultados diferentes, em razão das desigualdades de adiantamento do fator homem, da existência e valor dos aparelhamentos produtores e da situação geográfica.
Na era vitoriana, se registrou um notável progresso europeu e norte-americano, e enquanto nas nações que lideraram esse surto o comércio cresceu sete vezes mais do que as suas populações, no Brasil verificou-se um impressionante paralelismo entre esses dois fatores.
Temos ainda que solver problemas básicos no campo das atividades agrícolas, industriais e comerciais, bem como no que concerne ao aperfeiçoamento do nosso fator humano. Tomado o país em conjunto, vivemos em estado de permanente pauperismo.
Nas nações supercapitalizadas, o crescimento econômico gerou questões de outra natureza, mas também de extrema gravidade, muitas das quais são postas em evidência pelo estudo dos chamados ciclos econômicos e pelo excesso de desemprego que se verificou nas últimas décadas. A guerra veio absorver esse desemprego, mas ele se apresentará novamente em futuro próximo, e cada vez mais ameaçador, exigindo soluções que ponham a salvo tradicionais instituições políticas, sociais e econômicas dos países vitoriosos.
Essas soluções demandam a ação intervencionista do Estado, quer no interior do país, através de uma adequada política monetária, social, de obras públicas e de toda uma série de medidas de ordem técnica, quer no ambiente internacional, pela obtenção de mercados que possam manter o ritmo do trabalho em nível conveniente.
O planejamento adotado nos países em guerra tem que ser substituído por outro que permita um razoável reajustamento às solicitações da paz. Se não forem tomadas a tempo as necessárias providências, verificar-se-ão, dentro em pouco, inevitáveis crises de proporções assustadoras.
Na Rússia desenvolveu-se, como em nenhuma outra região, a técnica do planejamento econômico, com caráter nacional. Foi a adoção anterior dessa técnica que facilitou a extraordinária resistência que a nação soviética pode oferecer às invasões de Hitler.
É de se acentuar que o sistema de governo, a coletivização da propriedade e o planejamento econômico desse país são três coisas diferentes, historicamente entrelaçadas, mas que não têm lógica ou praticamente, dependência uma das outras.
A Rússia soviética fará, com maiores facilidades que outras nações, a transição da economia de guerra para a da paz, não porque tenha um governo ditatorial, ou porque todas as suas indústrias são propriedade do Estado, mas em virtude da sua maior experiência no planejamento econômico.
Essa superioridade da União Soviética concorre para perturbar, seriamente, a opinião mundial, porque o grande público não poderá distinguir claramente entre a sua forma de governo e a sua técnica de planejamento, daí decorrendo, para as massas, a impressão de que só o comunismo será capaz de salvar o mundo de um colapso econômico.
O planejamento econômico russo, no entanto, se firmou em grande parte nos ensinamentos, na técnica e nos aparelhamentos dos países capitalistas.
ESTADO
No Brasil, a fraqueza e a instabilidade econômicas nos levaram à adoção de uma série de planejamentos parciais e intervencionismos de Estado, sempre reclamados pelos produtores em dificuldades e, quase sempre, mais tarde, por estes mesmos, condenados. Desde a nossa independência até há pouco vivíamos praticamente no regime da monocultura.
Ora, não é possível assemelhar a estrutura econômica de países fortemente aparelhados e de produção diversificada industrial e agrícola, com a dos que exploram poucos produtos e, ainda estes, de natureza “colonial”. Essa é uma das causas da nossa permanente insuficiência e insegurança econômicas.
No dia em que os nossos homens públicos tiverem sob suas vistas uma carta discriminativa dos padrões de vida das diversas regiões; um programa definido para o aproveitamento eficiente de nossas principais reservas naturais e para a melhoria da produtividade do nosso homem; a enumeração das medidas de ordem econômica, social e técnica, que propiciem um rápido e substancial aumento da renda nacional; o estudo da conveniente localização de consideráveis massas de imigrantes e da redistribuição de nossas populações, de acordo com os recursos econômicos disponíveis ou a desenvolver nas diferentes regiões; os delineamentos, em suma, do planejamento de uma verdadeira revolução econômica, capaz de modificar radicalmente os índices de nosso pauperismo – nesse dia será possível a união sagrada de todos os brasileiros para a solução dos principais problemas da nacionalidade.
A INICIATIVA PRIVADA
O planejamento representa uma coordenação de esforços para um determinado fim.
Se a renda nacional é baixíssima, se os níveis de vida, em grandes zonas, são miseráveis, se possuímos recursos naturais de monta e extensos espaços de terra não aproveitados, se a técnica e a ciência modernas oferecem os instrumentos essenciais para, dentro de um planejamento racional, corrigir esse estado de atraso, por que não adotá-lo? É um erro supor que o conceito de planejamento se prenda, obrigatoriamente, a escolas políticas ou econômicas antidemocráticas.
O Estado liberal vem planejando, de há muito e progressivamente. Se a expressão é nova, a realidade é velha. O planejamento apresenta-se, hoje, como técnica de maior vulto, porque os problemas se tornaram muito complexos e enormes têm sido os progressos verificados nas ciências econômicas, sociais e na tecnologia em geral.
Sendo atualmente possível, com precisão muito maior, a determinação da interrelação dos fenômenos e as relações de causa e efeito, é natural que o avanço dos meios de previsão tenha facilitado o surto do planejamento. Não há, pois, uma “mística do plano”, mas sim um desenvolvimento lógico de um poderoso instrumento de ação econômica e social, capaz de agir, eficientemente, em relação aos gravíssimos problemas da hora presente. Infelizmente, esse instrumento ainda não foi compreendido pelos “saudosistas” que só querem enxergar os “encantos” do século passado, que, aliás, só puderam ser apreciados em algumas privilegiadas nações, e mesmo nestas não foram usufruídos por boa parte de suas populações.
O planejamento econômico é uma técnica e não uma forma de governo. Não exclui os empreendimentos particulares. Pelo contrário. Cria um ambiente de segurança de tal ordem que facilita o melhor e mais eficiente aproveitamento da iniciativa privada, que está intimamente ligada ao conceito da propriedade.
Nos países em que existe o sufrágio universal e onde a maioria dos votantes não é proprietária, a propriedade privada só se manterá em sua plenitude enquanto essa maioria estiver convencida de que o exercício desse direito representa o verdadeiro interesse da sociedade em conjunto.
O planejamento econômico, sendo uma grande arma contra a instabilidade econômica, concorre para assegurar a sobrevivência das instituições políticas, das médias e pequenas empresas, propicia maiores facilidades para o controle e combate aos trustes e proporciona a melhor utilização da propriedade privada em beneficio da coletividade.
CLASSES PRODUTORAS
O planejamento que o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial propôs para o Brasil (…) não visa alcançar uma estabilidade econômica, que importaria na manutenção do nosso estado de pobreza, mas objetiva, isso sim, a própria reestruturação econômica do país.
Aproveita os ensinamentos oferecidos pelos planejamentos econômicos dos Estados Unidos e Grã-Bretanha durante a guerra e pela técnica do planejamento russo, conciliando-os com as tendências e realidades brasileiras.
Seria, em muito maior amplitude e escala, um verdadeiro desdobramento do que o TVA [Tennessee Valley Authority] fez nos Estados Unidos para o vale do Tennessee ou o que a Liga das Nações projetou para a recolonização da Macedônia.
[O Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial] sugeriu, para esse fim, a criação da Junta de Planificação que seria composta, em boa parte, de elementos eleitos pelas classes produtoras e liberais, visando, com isso, plasmar no plano elaborado a maior representação do pensamento do país, com o útil objetivo de despertar na opinião pública o espírito de cooperação indispensável à sua execução.
Todas essas circunstâncias foram devidamente apreciadas no Congresso Brasileiro de Indústria e na Conferência das Classes Produtoras de Teresópolis.
Naquele Congresso foram votadas 113 conclusões referentes aos vários aspectos do planejamento.
Na enunciação dos objetivos básicos da Conferência de Teresópolis estão mencionados, por ordem de importância, o combate ao pauperismo, o aumento da renda nacional, o desenvolvimento das nossas forças econômicas, a implantação da democracia econômica e a obtenção da justiça social – objetivos que devem ser alcançados, com indispensável rapidez, através de um largo planejamento. Sem uma verdadeira revolução econômica, assim delineada e levada a efeito, não poderemos evitar, em futuro talvez próximo, dias sombrios para a ordem e a segurança do país e das suas instituições.
Um programa por essa forma elaborado em suas grandes linhas, com altas finalidades construtivas e patrióticas, poderia ser mal interpretado ou desvirtuado por quem o apreciasse com elementar imparcialidade?
GUDIN
Recebendo os estudos sobre a planificação econômica brasileira, organizados pelo Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, encaminhou-os o senhor Presidente da República à Comissão de Planejamento Econômico, e houve por bem o presidente desta Comissão nomear relator do processo o conhecido publicista sr. Eugênio Gudin, professor de Finanças da Faculdade de Ciências Econômicas do Rio de Janeiro.
O sr. Gudin redigiu e divulgou o seu relatório sob o título Rumos de Política Econômica. Esse trabalho foi reeditado, em publicação oficial da Comissão de Planejamento Econômico. Nele, o relator, mostrando-se filiado ao liberalismo econômico, não se cingiu a uma mera crítica doutrinária, combatendo o projeto por negar a necessidade do intervencionismo no campo econômico para incrementar o progresso do país ou por acreditar não obstante toda a experiência do passado – que a simples iniciativa privada, dentro de um processo natural de evolução, seria suficiente para a solução de todos os problemas econômicos e sociais que nos afligem. Não, S. Sª vai além; fazendo um articulado apaixonado contra os trabalhos elaborados pelo Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, agride insolitamente o modesto autor do primeiro parecer e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, referindo-se acerbamente aos estudos do Conselho.
Não se deteve, porém, aí o “liberalismo” de suas expansões. Nada escapou as suas iras. É possível que se tenha sentido atingido pelos conceitos emitidos nesta Comissão, no ato de sua inauguração, pelo senhor doutor Getúlio Vargas:
“Só as mentalidades impermeáveis aos ensinamentos dos fatos podem acreditar ainda na validade dos princípios do laissez-faire econômico e nos seus corolários políticos. O livre jogo das forças sociais, no estágio de evolução a que atingimos, é a anarquia pura e simples. Esta verdade, cabalmente confirmada pelas imposições da guerra às grandes potências mundiais, torna-se de maior evidência em relação aos povos como o nosso, em plena fase de crescimento e expansão. País novo, no sentido da apropriação dos recursos naturais e sua valorização, o Brasil reclama disciplina e método em todas as atividades criadoras de riqueza.”
É possível, ainda, que S. Sª guarde contra alguns de seus colegas desta Comissão um velho ressentimento, oriundo dos debates verificados no Primeiro Congresso Brasileiro de Economia. É ainda possível que conserve certo azedume contra os diretores das indústrias nacionais, que com ele, ou com as empresas que representava, terçaram armas muitas vezes junto à Comissão de Similares, pela aversão dessas empresas em se utilizarem de produtos de fabricação brasileira.
Mas tudo isso não justifica a paixão demonstrada em seu trabalho pelo relator, quer agredindo instituições, individualidades e associações de classe, quer levando o seu “liberalismo” ao ponto de transcrever vários trechos do meu parecer em desacordo com o original, e praticando, pela obliteração dos sentidos a que todo estado de paixão conduz, erros elementares e imperdoáveis em assuntos em que deveria ser consumado mestre.
6
Continuando a publicação da resposta de Roberto Simonsen a Eugênio Gudin, avisamos ao leitor que não reproduzimos toda a argumentação do autor sobre a questão da “renda nacional”. Na época, Simonsen deteve-se extensamente no assunto, porque seu contendor ocupara boa parte de seu relatório com a tentativa de desqualificá-lo como ignorante quanto ao conceito e ao cálculo da renda nacional.
Hoje, não é mais necessário abordar tão longamente o problema. A primeira razão é que as estatísticas atuais – devido, aliás, ao Estado brasileiro, isto é, ao IBGE – são razoavelmente aceitas por todos. Em geral, considera-se “renda nacional bruta” como equivalente ao Produto Nacional Bruto (PNB – a grosso modo, o PNB é o PIB menos os recursos que são enviados para fora do país, pois estes, certamente, fazem parte da renda de outros países).
Há necessidade de observar que em 1945 o conceito de PIB (e, portanto, o de PNB) não era tão corriqueiro quanto hoje. Como John Kenneth Galbraith relata em seu “Pensamento Econômico em Perspectiva”, somente na segunda metade da década de 30 os economistas norte-americanos que assessoravam Roosevelt (como o próprio Galbraith) começaram a usar o conceito – e a calcular seu resultado numérico – para obter uma estimativa mais geral sobre o crescimento ou a retração econômicas.
Mesmo assim, nas décadas posteriores, o uso desse tipo de cálculo jamais foi um consenso. Por exemplo, os países socialistas usavam outro conceito, o de “renda nacional produzida”, equivalente ao que a ONU chamou de Produto Material Líquido (PML). A diferença é que o PML (ao contrário do PIB e do PNB) incluía estritamente a produção de bens materiais, excluindo o setor de serviços, onde, nas economias ocidentais, a especulação rotineiramente distorce a estimativa geral da economia (vide os anos que precederam a atual crise).
Quanto ao Brasil, que evidentemente não era uma economia socialista, não está errada, do ponto de vista conceitual, a definição de Roberto Simonsen, aprovada pelo Primeiro Congresso Brasileiro da Indústria:
“A renda nacional é a quantidade total dos bens e serviços produzidos pelas atividades econômicas da população de um país dentro de um ano. Pode ser avaliada, aproximadamente, em termos monetários, pelas estatísticas dos diferentes elementos que concorrem para essa produção. Pode, ainda, ser apreciada pelo total de salários, ordenados, rendas, lucros e juros recebidos pela população, como resultado das suas atividades produtoras. Pode, finalmente, ser avaliada por processos indiretos, baseados na observação de uma série de fenômenos ligados à produção e ao consumo. Enquanto Marshall prefere o conceito da renda nacional derivado da produção, Fisher considera mais razoável calculá-la pela capacidade de consumo da população. De qualquer forma, é da renda nacional que se retiram os recursos para assegurar o bem-estar das populações”.
Porém, a principal razão porque não reproduzimos toda a argumentação de Simonsen sobre a “renda nacional” consiste em que o motivo de seu adversário para torná-la um cavalo de batalha é meramente difamatório – passar seu oponente como ignorante.
Gudin, aliás, tem plena consciência disso – em meio a mais de uma dezena de parágrafos desqualificando o conhecimento de Simonsen e dos técnicos do Ministério do Trabalho sobre a questão, ele, preventivamente, introduziu o seguinte: “O fato de estarem seus cálculos, bem como sua noção de ‘renda nacional’ inteiramente fora da realidade, se bem que merecedor de reparos, não tem maior importância para o problema geral em apreço” (Gudin, “Rumos de Política Econômica”, in “A controvérsia do planejamento na economia brasileira”, 3ª ed., Ipea, 2010, pág. 60, grifo nosso).
Se não tem “maior” importância – e, na verdade, não tem importância alguma – por que ele, Gudin, gasta tantos parágrafos nessa questão? E por que introduziu o parágrafo que acabamos de citar?
Simplesmente porque, se tivesse razão, o argumento favoreceria o seu oponente.
Realmente, se a renda nacional de 40 bilhões de cruzeiros, referida por Roberto Simonsen, demandava sua quadruplicação para que chegássemos no mesmo nível dos países desenvolvidos, mais ainda se essa renda fosse menor – o que claramente é a opinião de Gudin, que, por sinal, apesar de dizer que a economia brasileira sofre (?!) por “hiperinvestimento” e “hiperemprego”, não contesta a avaliação geral de Simonsen. Literalmente, ele diz: “As considerações desenvolvidas pelo conselheiro Roberto Simonsen, em seu relatório, no tocante à debilidade de nossa economia e ao pauperismo de nossas populações (…) são irrefutáveis.”).
Apesar disso, argumenta que é impossível a quadruplicação da renda nacional – observemos que em 1945 a renda nacional per capita da Argentina (para evitar comparações com países ainda destruídos pela guerra) era três vezes a nossa.
A discussão que Gudin quer provocar (e, temos de reconhecer que conseguiu), supostamente sobre a renda nacional, é um recurso desonesto.
Se o leitor quiser consultar a íntegra dos documentos, todos estão no excelente volume já citado por nós: “A controvérsia do planejamento na economia brasileira”, 3ª edição, Ipea, 2010. (C.L.)
ROBERTO SIMONSEN
Ao senhor Ministro da Fazenda, [Gudin] prodigaliza “amáveis” referências. (…) De que linguagem diferente usava, no entanto, o sr. Gudin, em relação ao senhor Ministro da Fazenda, quando, em maio do ano passado, escrevia artigos como aquele célebre “Discurso que não farei…”.
Mas S. Sª redigiu seu relatório em fevereiro e março últimos, em plena eclosão da campanha democrática desencadeada no país, prejudicada pela demagogia estéril e pelas seduções de uma fácil e enganadora popularidade; e quis, naturalmente, acompanhar a moda…
Ataca de rijo o senhor Ministro do Trabalho quando, em relação ao cálculo da renda nacional, declara “uma leviandade chamar-se a isso de renda nacional”. Esse isso pejorativo é o índice do Ministério.
Continua (…) analisando os “erros elementares do cálculo do Ministério do Trabalho” e o “grave equívoco” que, sem razão, atribui ao mesmo, como veremos adiante.
Essas agressões não passaram sem o justo revide por parte do erudito sr. Oswaldo da Costa Miranda, diretor do Serviço de Estatística da Previdência e Trabalho, que teve, a propósito, expressiva troca de correspondência com o relator.
A política econômica do Presidente Roosevelt merece do relator expressões como estas: “fracassado New Deal”, “o ranço do New Deal”.
ANTI-INDUSTRIALIZAÇÃO
E os ataques à indústria nacional? Contra o nosso parque manufatureiro o relator despejou toda a sua zangada sabedoria. Realça a seu modo a “proteção paternalística do Estado aos interesses dos atuais industriais” e previne – não sabemos se ao governo que tanto atacou, ou aos particulares – contra a má fé das “repetidas alegações de dumpings, partidas de nossas associações industriais”. Acredita – endossando um artigo do Economic Journal – que “a indústria procura estabelecer-se como uma corporação do Estado, responsável perante o Estado, mas autônoma na esfera de sua responsabilidade” e que necessitamos “menos de Federação de Indústrias e mais produção de operário-hora”. É partidário convicto da agricultura, mostrando não compreender, no seu alto, verdadeiro sentido, o crucial entrosamento das duas atividades – rural e industrial.
Julga um princípio errado supor-se que os países industrializados são ricos e os de economia agrícola ou extrativa são pobres. Industrialização para o Brasil é balela. Nega que exista uma só indústria nacional que tenha atingido o “grau de maturidade capaz, se não de exportar, ao menos de dispensar a proteção para o mercado interno”. “Precisamos é de aumentar a nossa produtividade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente, isto é, capacidade para exportar”. Desconhecer o nosso parque industrial e fazer do brasileiro um juízo pouco lisonjeiro é desconhecer que exportamos produtos industriais e que vários desses produtos têm sido bem recebidos no estrangeiro. É atacar a indústria nacional pelo simples prazer de criticar, pelo desejo de ver o Brasil um eterno dependente de outros povos.
Mas a artilharia grossa do relator está principalmente concentrada contra os “forjadores de planos”; é contra eles que S. Sª alinha toda a sua formidável erudição… O fogo de barragem que quer criar é praticamente intransponível para nós outros, pobres mortais, simples amadores em matéria de estudos econômicos, que, não conhecendo – na opinião do autor – Robertson, Hansen e Haberler, estamos, por certo, condenados ao extermínio.
Os senhores membros da Comissão de Planejamento Econômico atentem bem para esta situação e recordem-se, a propósito, da célebre lenda dos tecelões do rei… Ou acreditam nas tiradas do Relator, ou são positivamente amadores em economia…
“O rei está nu”, será, porém, o grito de consciência de todos aqueles que, sem espírito preconcebido, se derem ao trabalho de estudar o seu volumoso relatório.
S. Sª, à p. 75 faz, por assim dizer, uma defesa antecipada contra “qualquer desejo de exibição idiota de erudição”. É o sr. Gudin referindo-se ao sr. Gudin. Pode crer, entretanto, que ninguém chegaria a fazer tal suposição. Mas há de nos desculpar um ligeiro reparo. O autor mais frequentemente citado em seu trabalho é ele próprio. Cita-se, recita e excita-se continuamente com essas autorreferências, seguindo um ramo ascendente num ciclo que não é, positivamente, o econômico.
RENDA NACIONAL
O Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, composto de representantes das entidades máximas da indústria e do comércio; de expoentes culturais do alto funcionalismo federal nos setores da agricultura, fazenda, estradas de ferro e imigração; de respeitáveis técnicos e especialistas em vários ramos da atividade nacional, é tratado por S. S.ª com a maior irreverência, como se fosse constituído por um conjunto de ignorantes, capaz de praticar ou endossar uma suposta série de monstruosidades que enumera.
Na ânsia de procurar desmoralizar os trabalhos desse Conselho, o relator lança mão do processo pouco recomendável de me atribuir conceitos e definições que não são meus, de fazer largas transcrições truncadas e de desvirtuar expressões que nunca poderiam ser deturpadas. Tudo isso, para procurar corrigir o que, de fato, não está errado, mas que foi alterado, ao talante de sua volúpia demolidora.
Ora, o relator procurou, no extenso processo do Conselho, destacar, isoladamente, expressões contidas em discussões taquigrafadas, para, destarte, estabelecer confusão entre conceito de renda e índice da renda nacional.
A tese que apresentei ao Primeiro Congresso Brasileiro da Indústria, onde compareceram as maiores entidades representativas das classes produtoras do país e um elevado número de nossas mais brilhantes expressões culturais, foi, por esse certame, unanimemente aprovada. Aliás, esse trabalho foi também remetido à Comissão de Planejamento Econômico.
Elogiei, em uma das sessões do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, o estudo do Serviço de Estatística da Previdência e Trabalho, por ter apresentado, oficialmente, um dado realmente valioso sobre a renda nacional, a servir de elemento comparativo para outros cálculos semelhantes, que seriam feitos na mesma base, para os anos subsequentes, propiciando, assim, uma noção segura da evolução sucessiva dessa renda, em vários anos. É claro que, conhecendo o processo do cálculo dessa renda, adotado pelo Ministério – aliás, aproximado, como são quase todos os processos para essa determinação – nunca poderia dar ao resultado alcançado o sentido de precisamente exato, como me quer atribuir o relator. Ali estão as expressões enunciadas no início do meu parecer sobre a Planificação da economia brasileira: “admitindo como conceito da renda a capacidade de consumo total das populações. Encontrou cerca de 40 bilhões de cruzeiros…”.
Aliás, esse valor não está longe do que foi determinado, por outros meios, em janeiro de 1944, pela Seção de Estudos Econômicos do Ministério da Fazenda. Assemelha-se, ainda, aos dados que eu mesmo encontrei e que mencionei na conferência pública que fiz, em novembro de 1943, no salão da Holerite, na Capital da República.
Essa avaliação aproxima-se também da que foi estimada em junho de 1944, nos estudos procedidos pelo Instituto de Economia da Associação Comercial do Rio de Janeiro, de que faz parte, como eu, o sr. Eugênio Gudin.
Índices de certo modo grosseiros são constantemente adotados em estudos econômicos para a comparação de níveis de vida ou de rendimentos nacionais. Comissões de economistas norte-americanos tomaram para a comparação de níveis de vida em várias zonas de seu país, depois da crise de 1929, expressões algébricas em que figuravam, como elementos determinativos, o número de contribuintes do imposto de renda, mais o número de rádios e de telefones existentes em cada região.
Concorda S. Sª com as minhas verificações sobre o pauperismo brasileiro. Se aceitarmos como atestado desse pauperismo uma renda calculada por um determinado processo, é claro que, com os novos elementos que surgem a cada ano, poderemos acompanhar a flutuação da renda nacional. Tínhamos que tomar um certo valor como ponto de partida, pouco importando que fosse apenas uma aproximação; continuaria exprimindo sempre um índice de extrema pobreza e poderia ser facilmente comparado às variações verificadas em qualquer época, com dados calculados pela mesma forma, enquanto a estrutura geral da nossa economia não sofresse modificações fundamentais. Isso é de uma evidência meridiana e está mesmo ao alcance de qualquer estudante de economia.
O relator mostra uma grande preocupação em descobrir uma “série” de “erros primários” no cômputo da renda nacional feito pelo Ministério do Trabalho. Mas ele próprio reconhece que não se poderá, no momento, avaliar rigorosamente essa renda, tanto que propõe seja concedida uma verba suficiente ao IBGE para contratar técnicos e fazer os levantamentos necessários.
O Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, em sua totalidade, sabia que o Serviço de Estatística da Previdência e Trabalho havia lançado mão de um processo estimativo, mas um dos poucos possíveis à vista dos elementos existentes para o cálculo da renda nacional. Em sua longa exposição, esse Departamento precisou minuciosamente os seus cálculos e a natureza do método adotado, sem nunca ter tido a pretensão de chegar a qualquer resultado que não fosse “aproximado”. Tratou-se, porém, de uma tentativa leal e corajosa, tecnicamente bem lançada e que merece, a meu ver, ser divulgada para a apreciação dos interessados.
O sr. Oswaldo da Costa Miranda pulverizou, com fino espírito, a infeliz arremetida do relator contra o Serviço de Estatística da Previdência e Trabalho, mostrando, de forma evidente, que S. Sª não compreendeu o verdadeiro conceito da renda nacional. O erro não está nem com o sr. Josiah Stamp, nem tampouco com o Serviço de Estatística da Previdência e Trabalho, mas é companheiro inseparável do apaixonado relator.
Mas, à página 20, declara cautelosamente S.Sa: “O fato de estarem seus cálculos, bem como sua noção de ‘renda nacional’ inteiramente fora da realidade, se bem que merecedor de reparos, não tem maior importância para o problema geral em apreço”.
7
Enquanto as empresas particulares gastam largas somas em pesquisas, em estudos de organização, procurando pressentir as necessidades das populações, planejando o seu desenvolvimento e a conquista de mercados, nega-se, por simples amor a pretensos dogmas e doutrinas, o direito ao Estado de perquirir sobre os aspectos econômicos e sociais da vida comum, para habilitá-lo, num planejamento adequado, a orientar a sua evolução.
ROBERTO SIMONSEN
Na sua ânsia de exibir erudição, pratica o relator, a cada passo, erros incompreensíveis em um provecto professor da ciência das finanças. Ao combater a afirmação de que o planejamento evita, muitas vezes, desperdício, declara: “E o fato de uma empresa desaparecer ou falir, não constitui necessariamente desperdício, porque seu acervo (que é o seu capital) é geralmente adquirido por outra.”
Ora, a parte do rendimento nacional que não é empregada em bens de consumo constitui a poupança disponível para os investimentos. Quando uma empresa abre falência, ainda que seu capital inicial seja representado por edifícios ou máquinas, houve, de fato, uma destruição de poupanças, que se avalia por ocasião de sua liquidação. Os adquirentes do acervo de uma fábrica falida empregam nessa transação as suas sobras que, de outra forma, poderiam ser utilizadas na construção de uma nova fábrica.
Referindo-se à “mística do plano”, discorre o sr. Gudin sobre o regime mercantilista do século XVIII, assegurando que: “Esse tipo de economia exigia evidentemente uma planificação detalhada (!) da vida econômica do país e uma ininterrupta vigilância do Estado sobre as atividades individuais.”
Esta afirmação, ligada a outras críticas, demonstra, à evidência, que S. Sª ainda não compreendeu o fundamento e a técnica do planejamento. Planificação detalhada da vida econômica nacional no século XVIII!
ESCOLA LIBERAL
Nesse e em outros tópicos do seu relatório, mostra a visão unilateral de quem se restringe exclusivamente ao estudo da economia e finanças, e, principalmente, ao do setor monetário, não acompanhando, em absoluto, os imensos avanços das ciências sociais e da geografia humana.
Se a evolução do mundo e as ocorrências deste século apresentam uma contínua sucessão de crises e uma série de fenômenos novos, conclui enfaticamente S. Sª: “As crises se sucederam porque os países, ao invés de subordinarem a sua evolução aos ensinamentos das escolas clássicas de economia, deixaram, por erros de orientação e de governo, os fenômenos sociais e econômicos evoluírem em outro sentido”.
Para S. Sª, o homo economicus da escola individualista é o que deve imperar nos processos econômicos e sociais de hoje. Não compreendeu que, pela contínua renovação da humanidade, pela transformação profunda por que passaram os povos, com os crescimentos demográficos, com os processos da ciência e da técnica e sob a influência dos ambientes geográficos, quem agora quiser compreender a possibilidade da existência de um desenvolvimento pacífico mundial, tem que substituir o egoísta homo economicus pelo moderno “homem social” que antepõe aos seus próprios os interesses da coletividade.
Acreditava-se no século XIX que a riqueza da comunidade era igual à soma total do bem-estar material dos indivíduos e que assim cada um, desejando melhorar a sua própria condição econômica, contribuía automaticamente para a riqueza da comunidade em geral. Acreditava-se, ainda, que a atividade econômica era autorreguladora e que a iniciativa particular, no regime da concorrência dos interesses individuais, era controlada pelo jogo desses próprios interesses. Desnecessário era, portanto, o controle governamental no regime dos negócios. Mas a devastação das riquezas naturais, a ausência de defesa em relação a múltiplos fenômenos meteorológicos, as sucessivas crises econômicas, a existência da miséria em meio à abundância, a crescente concentração de riquezas em mãos de um pequeno número, a exploração do homem pelo homem, toda uma série de imensos problemas criados pelas grandes aglomerações urbanas, a profunda diferenciação na evolução entre as nações ricas e as nações pobres, a impossibilidade de o sistema de preços refletir, num dado momento, as condições prováveis dos mercados futuros tornaram evidente a insuficiência do primitivo automatismo social e econômico, admitido pelos economistas clássicos. Em consequência surgem, cada vez com maior frequência, os intervencionismos de Estado, ansiando por corrigir numerosas compressões, injustiças sociais e sofrimentos geradores de crises e guerras. Mas enquanto as empresas particulares gastam largas somas em pesquisas, em estudos de organização, procurando pressentir as necessidades das populações, planejando o seu desenvolvimento e a conquista de mercados, nega-se, por simples amor a pretensos dogmas e doutrinas, o direito ao Estado de perquirir sobre os aspectos econômicos e sociais da vida comum, para habilitá-lo, num planejamento adequado, a orientar a sua evolução, dentro de um processo que aspire evitar, tanto quanto possível, a eclosão de atritos e de crises de toda ordem.
EUA
Refere-se ligeiramente o sr. Gudin ao enorme esforço de adaptação que se planeja desenvolver nos Estados Unidos da economia de guerra para a da paz, como um simples “estudo do problema da readaptação às atividades normais da vida civil”. E dá a entender que ali se combate por toda a parte o intervencionismo do Estado. No entanto, dia a dia, menos se admite a política do livre jogo das forças econômicas e mais se enfraquece o otimismo superficial, herdado do progresso alcançado na era vitoriana.
As tarifas protecionistas adotadas por mais de 120 anos nos Estados Unidos nada mais foram do que um instrumento de planejamento, almejando a larga intensificação da sua grandeza, transformando-o, durante o século XIX, de país agrícola em potência industrial. A regulamentação dos monopólios teve em mira encorajar e manter a concorrência entre as pequenas empresas, no interesse dos consumidores. A legislação trabalhista é uma intervenção para proporcionar uma melhor segurança na vida dos assalariados. A fiscalização dos gêneros alimentícios e dos medicamentos foi uma forma de intervenção, objetivando a proteção do consumidor. A defesa dos recursos naturais é planejada para garantir a sua conservação, a sua continuidade e o seu uso inteligente e eficiente. Toda uma sucessão de serviços públicos foi criada em setores onde a ausência de probabilidades de lucros não despertava a iniciativa particular.
A crise de 1929 levou os Estados Unidos a uma série de intervenções parciais, conhecidas sob o nome de New Deal, que permitiram àquela poderosa nação atenuar o grande mal-estar econômico ali reinante e resolver problemas sociais da maior relevância. A guerra obrigou os americanos a adotarem uma larga política de planejamento, cujos assombrosos resultados ainda estão sob nossas vistas.
Não obstante as asserções de sonhadores, como o sr. Eugênio Gudin e outros, é notável o que já se tem feito nos Estados Unidos em matéria de planejamento econômico. Ali, há quase um século, vem intervindo o governo no uso da terra e dos recursos naturais. Atente-se para a política de distribuição de terras aos colonizadores; à instituição, em 1862, do Homestead Act; à campanha iniciada por Theodore Roosevelt para a conservação das terras não cultivadas; todas as medidas visando amparar a agricultura nacional, que nada mais representam do que intervenções governamentais, planejando a economia de vários setores sociais e regionais.
Para fazer face à crise da agricultura, o Agricultural Adjustment Act [AAA] inaugurou um programa de proteção às colheitas, baseado em ajustes com colonos e fazendeiros, obrigando-os à limitação da produção. Foi instituído o regime de quotas para várias culturas. Declarado inconstitucional o AAA, foram restabelecidos pelo Congresso os principais serviços anteriormente criados, por terem sido julgados de grande alcance, não só para a agricultura como para a comunidade.
Um exemplo característico de planejamento econômico e social promovido pelo governo americano é representado pelo Tennessee Valley Authority, a que o relator não faz a menor referência, e no qual foram beneficiados dois milhões de americanos e 40 mil milhas quadradas de terra. Por esse plano, foi reconstruída a economia do vale do Rio Tennessee por meio de açudagens, estações geradoras de força, controle das enchentes e outras medidas que proporcionaram um reflorescimento extraordinário a uma zona inteiramente empobrecida.
Citemos, também, a propósito, a Farm Security Administration, que promove a mudança dos agricultores em terras deficitárias para zonas melhores; o Civilian Conservation Corps (que teve suas atividades encerradas durante a guerra), trabalhando na conservação e embelezamento de fazendas, florestas públicas e privadas, afora muitas outras organizações governamentais que influem na vida agrícola americana.
Em relação à legislação trabalhista, foram promulgadas muitas leis que traduzem o intervencionismo do Estado, pois substituem o livre jogo das forças econômicas pelo poder consciente do governo, com o objetivo de alcançar uma determinada finalidade: a melhoria das condições de vida dos trabalhadores norte-americanos.
O governo norte-americano interveio desde 1887 no campo industrial, criando a Interstate Commercial Commission, para fiscalizar a política ferroviária. Mais tarde, a Federal Power Commission e a Federal Communication Commission passaram a controlar os serviços de transporte sobre água, os oleodutos, as empresas de eletricidade, telégrafo, telefone e rádio. E, no entanto, o sr. Gudin diz que ali ainda se cogita da criação de um “órgão semelhante ao nosso Conselho de Águas e Energia Elétrica”.
O Public Utility Holding Company Act legisla sobre as holding, cujo registro é obrigatório na Security and Exchange Commission, que exerce o controle sobre organizações financeiras. A Lei Sherman representa a intervenção do Estado em relação aos trustes e monopólios. E a Federal Trade Commission foi criada para tornar efetiva essa ação.
Em 1933, a NIRA [National Industrial Recovery Act] representou a intervenção máxima nas indústrias, com o intuito de proporcionar trabalho aos desempregados, incrementar o poder aquisitivo das massas, estabelecer as relações industriais e abolir a concorrência desleal, mediante atos de planejamento industrial. Abolida a NIRA, pouco tempo depois foi a indústria americana mobilizada, dentro de um planejamento de guerra.
É natural que os Estados Unidos da América, tendo duplicado durante a guerra a sua renda nacional e tendo alcançado uma potencialidade econômica e financeira sem precedentes na história, não tenham necessidade de planejar com os mesmos objetivos e amplitude que se impõem a um país empobrecido como o Brasil. Ali, o planejamento procurará abranger apenas os setores em que a iniciativa privada se mostre incapaz de solucionar os problemas com que a nação se vai defrontar no após guerra.
Almejando o full employment, isto é, o emprego total dos seus recursos humanos e materiais, dentro de um programa de eficiência e de conservação de sua renda nacional e de uma melhor distribuição de seus rendimentos, apelam os americanos para o intervencionismo do Estado apenas na medida que se faz necessária àquele país, mas que já se apresenta em escala considerável.
O caso do Brasil é profundamente diverso. Somos um país pobre, de baixíssima renda nacional e não dispomos nem dos recursos, nem do progresso da pátria de Roosevelt. O planejamento econômico deve ter por finalidade, entre nós, alcançar, no menor prazo possível, uma renda nacional suficiente, o que significa promover uma verdadeira revolução econômica, tal a inferioridade de condições em que ainda nos encontramos, face às nações ricas e civilizadas do mundo.
NEW DEAL
O sr. Gudin alista-se entre os que negam à outrance [intransigentemente] os resultados do New Deal.
O New Deal não constituía um planejamento econômico propriamente no sentido da ampla planificação que o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial propôs para o Brasil, ou seja, um esforço estatal para modificar, profundamente, a estrutura de nossa produção.
O New Deal visou, principalmente, combater a depressão de 1929, coordenando as produções industrial e agrícola, eliminando a competição excessiva que prejudicava os próprios produtores, promovendo a construção de obras públicas, agindo sobre a moeda, o crédito e a balança do comércio, facilitando, enfim, um retorno à prosperidade, pelo combate ao desemprego, pelo aumento e melhor repartição da renda nacional e consequente elevação do nível de vida das classes menos favorecidas. No campo monetário, além de outras medidas, desvalorizou o dólar.
Essa desvalorização, não obstante as alegações do relator, influiu para aumentar o meio circulante, estimular a exportação, proteger o mercado interno, elevar o preço de importantes produtos e diminuir o desemprego, em uma conjuntura realmente difícil. Apesar de ser relativamente pequeno, àquela época, o comércio exterior dos Estados Unidos em relação às suas atividades comerciais, é preciso compreender que, no regime da produção em larga escala, uma pequena percentagem de seu total pode ter decisiva influência sobre o seu custo, e, em consequência, sobre o mercado interno e sobre o desemprego.
Instituiu-se, ainda, no setor monetário, a política do amparo à produção e várias medidas visando restabelecer a confiança nos bancos de depósitos. No setor agrícola, já mencionamos aqui várias das providências adotadas.
Do balanço geral das medidas adotadas pelo New Deal, apesar dos inevitáveis erros verificados, resultou um ativo bem maior que o passivo. Evitou-se o colapso completo do sistema bancário; entre 1933 e 1937, a receita bruta dos agricultores aumentou de 5,1 bilhões para 8,6 bilhões; no mesmo período, o emprego nas fábricas melhorou 40% e a renda nacional líquida cresceu de 39,5 milhões, em 1933, para 67 milhões, em 1937. Os elementos reunidos e as lições obtidas com sua experiência facilitaram, ainda, a grande mobilização industrial e agrícola para a guerra.
S. Sª, para concluir pelo fracasso do New Deal cita estatísticas oficiais americanas que demonstram ter sido a recuperação econômica, entre 1933 e 1938, mais rápida em alguns outros países do que nos Estados Unidos.
Já mencionamos que a finalidade do New Deal não era unicamente esse rendimento econômico, mas tinha, ainda, um grande objetivo social. Não pode, portanto, ser julgado por essas simples estatísticas de ordem econômica. As estatísticas, aliás, se prestam às mais diferentes interpretações, quando explicadas com pouca sinceridade. Na Suécia, por exemplo, observou-se há alguns anos uma estreita correlação entre o número de cegonhas que anualmente entravam no país e o de nascimentos ali registrados. Que belo elemento não ofereceu esse fato às cartilhas infantis.
O retardamento da recuperação norte-americana poderá ser explicado pela maior profundidade da sua crise. Além disso, dos outros países citados na estatística como tendo se reerguido economicamente em menos tempo que os Estados Unidos, três fizeram uma política muito semelhante, de franco intervencionismo estatal: a Inglaterra, pela desvalorização da moeda, pela execução de obras públicas, pelo combate à deflação, pela organização de cartéis, pelo regime de quotas; a Suécia, pela desvalorização da moeda, pelo combate à deflação, pelas obras públicas etc.; e a Alemanha, por uma série de métodos por demais conhecidos.
Essa política intervencionista deu melhores resultados em outros países, o que comprova, expressivamente, que não era errada em si, tendo apenas encontrado, nos Estados Unidos, maiores obstáculos ao seu desenvolvimento.
Não é verdade, como afirma o relator, que Roosevelt, “diante do fracasso do New Deal, tenha voltado aos princípios da economia liberal em sua plenitude”. A mensagem ao Congresso, em abril de 1938, a que faz referência, não pode ser considerada isoladamente. Dois meses antes dessa mensagem, a política agrária do New Deal, nitidamente intervencionista, havia sido confirmada pelo AAA, em 16 de fevereiro de 1938.
É de notar que o New Deal nunca se propôs a ser uma política econômica de caráter permanente, e é razoável, portanto, que, passada a rudeza da crise, fosse o seu programa, em grande parte, abandonado. Não visou o New Deal pôr um fim a vários preceitos da economia liberal, mas apenas introduzir medidas corretivas, de caráter transitório. Passado o período de emergência, perderam várias dessas medidas a sua razão de ser: uma boa parte, porém, principalmente a que se refere à política agrária e à legislação trabalhista, perdura até hoje.
Nenhuma referência faz o relator ao extraordinário planejamento adotado pelos Estados Unidos e pela Inglaterra durante a guerra, e que produziu tão assombrosos resultados. Em compensação refere-se a um suposto planejamento econômico executado em Portugal…
Finalmente, devemos registrar uma das últimas e das mais impressionantes declarações do saudoso Presidente Roosevelt, quando resumiu as conversações mantidas na Conferência de Ialta, em 1º de março de 1945:
“Sei que o planejamento mundial não é encarado com satisfação em algumas seções da opinião pública americana. No entanto, nos nossos negócios internos, trágicos erros foram cometidos pela simples falta de planejamento, enquanto, de outro lado, grandes melhoramentos foram introduzidos na vida humana e grandes benefícios surgiram para a humanidade, em resultado de um planejamento inteligente e adequado, como sejam a restauração das regiões desertas, o desenvolvimento de vales fluviais inteiros e a construção de habitações adequadas.”
Negará o sr. Gudin que Roosevelt tenha sido um dos maiores campeões mundiais da democracia?
O planejamento econômico executado na Rússia realça que é tecnicamente possível assegurar-se a uma nação, pela utilização de todos os recursos da ciência moderna, a obtenção, dentro de certo prazo, de um predeterminado grau de progresso material.
Num de seus lamentáveis intuitos de confusionismo, não quis o relator enxergar no exemplo russo o aspecto a que me referi, perfeitamente esclarecido em meus trabalhos.
8
As medidas de policiamento, as simples “regras de jogo” serão suficientes para assegurar a todos os indivíduos e a todas as nações as mesmas oportunidades para alcançarem um razoável padrão de vida?
ROBERTO SIMONSEN
Na defesa da economia liberal, na análise dos acontecimentos, o relator não obedece a qualquer critério científico.
Se a evolução dos fatos econômico-sociais das últimas décadas põe a nu desajustamentos e crises de toda ordem, o erro está… em que essa evolução não foi disciplinada dentro dos postulados da escola liberal!
Negará o relator que o regime liberal tenha facilitado a eclosão dos monopólios, a proletarização crescente das massas, a concentração da riqueza nas mãos de um pequeno número, o imperialismo dos grandes centros financeiros e industriais, que controlando os mercados de matérias primas, produzem os instrumentos de força política e econômica? Como evitar os monopólios se os pequenos produtores não podem ter a necessária influência nos mercados nem as informações que sobre estes possuem as grandes organizações?
Os Estados Unidos, após haverem consolidado a sua indústria, com 120 anos de protecionismo à outrance, com reiteradas ascensões no valor de suas tarifas, desfraldam, hoje, a bandeira do liberalismo.
Se copiassem essa nova política como poderiam os países pobres, devedores e ainda não industrializados, evitar uma cristalização de sua inferioridade?
As medidas de policiamento, as simples “regras de jogo” serão suficientes para assegurar a todos os indivíduos e a todas as nações as mesmas oportunidades para alcançarem um razoável padrão de vida?
O relator, condenando o protecionismo, esquece-se de que o livre cambismo só existiu, até hoje, para os povos de riqueza já consolidada. A sua teoria de protecionismo limitado e temporário não se pode generalizar, pois que há, além de outros, muitos casos em que, em beneficio da segurança nacional, é plenamente justificável um protecionismo permanente. Já Adam Smith escrevia, em fins do século XVIII: “a segurança vale mais do que a riqueza”.
A Inglaterra, que foi campeã do liberalismo no comércio internacional, só o adotou depois de ter sua indústria montada e em condições de absoluta superioridade, precisando, além disso, viver dos seus navios e dos seus entrepostos comerciais. Nenhum país ergueu um sistema industrial sem proteção.
A defesa que o relator faz do livre câmbio baseia-se em condições ideais, inexistentes no mundo atual, e, mui particularmente, no Brasil. Assim é que seria preciso um mecanismo de comércio internacional que permitisse a permanente redistribuição dos recursos, inclusive mão de obra, técnica e capital, e que, por outro lado, assegurasse, aos produtores de matérias primas, garantias de estabilidade e de paridade na remuneração, e, pois, no padrão de vida. Os dois fatos são irrealizáveis.
Os interesses nacionalistas, raciais e culturais impedem a execução do primeiro. Quanto à segunda aspiração, é uma utopia pensar que os mercados de matérias-primas deixem de ser controlados pelos grandes países industrializados, que regulam a sua aplicação, podendo substituí-la com grande facilidade, tendo capacidade financeira para estocá-la, e, finalmente, tendo nas mãos a força política, militar e a técnica de fabricantes de grandes máquinas etc.
No caso particular do Brasil, na hipótese da implantação do livre câmbio, os preços de artigos de consumo baixariam, de início. Mas como não teríamos capacidade para exportar em concorrência com as colônias e outros países mais férteis e de terras mais acessíveis em quantidade suficiente para pagar nossas importações, a queda violenta das taxas cambiais encareceria, na mesma proporção, os artigos importados. O destino do Brasil seria o de uma China anteguerra, embora alguns privilegiados passassem uma vida farta à custa de lavradores e de trabalhadores de café, de algodão e de alguns minérios.
Regressaríamos ao estatuto de “fazenda ultramarina”, com um baixíssimo padrão de vida, desprestigiados no concerto internacional das nações.
DESEMPREGO
Os grandes países que ainda se orientam pelos postulados fundamentais do chamado liberalismo aumentam, dia a dia, a série de fatores de correção, de medidas de polícia e de intervencionismo de Estado. O maior flagelo que ultimamente os aflige vem sendo o desemprego. As suas causas e os meios de corrigi-las desafiam o estudo de provectos economistas, que estão se especializando na apreciação dos ciclos econômicos e nos fenômenos das depressões. Como uma das causas das perturbações na evolução econômica tem sido apontado o desequilíbrio entre a produção destinada ao consumo e a dos bens instrumentais.
Eureka! O sr. Gudin trata logo de transplantar o caso para o Brasil, enxergando nesse suposto desequilíbrio uma das grandes causas da permanente crise econômica!
E quem não cita Keynes e procura transpor para nossa economia as lições de outros autores que se têm especializado no assunto é mero amador em economia!
Desconhece S.Sª o estado quase colonial da nossa economia, a nossa posição demográfica, a insuficiência de “empregadores” para o aumento e a diversificação de nossa produção e quer “copiar” para o nosso país as “regras de jogo” sugeridas para nações supercapitalizadas, em que se procuram evitar as depressões econômicas e harmonizar os vários fatores já existentes, para se conseguir, de fato, uma melhor e mais estável distribuição da renda nacional.
Aliás, são muito frequentes os erros que se cometem com essa preocupação de importar ideias e organizações inadequadas ao nosso ambiente. Frequentes e antigos. Referem-se cronistas ser comum, na era das descobertas, viajarem nas frotas emissários de comerciantes de Lisboa ansiosos por encontrar negócios vantajosos nas novas terras que se fossem descobrindo. Parece que com Pedro Álvares Cabral veio um desses precursores do “liberalismo”. E do seu primeiro relato forneceram-me cópia do seguinte trecho, cuja transcrição vem a pêlo:
“O de que mor surpresa houvemos em aquela terra a que o Capitão pôs nome de Vera Cruz, foi ver que andavam nus, sem cobertura alguma, os homens da terra, mancebos de bons corpos, aos quais não fazia vergonha mostrar suas vergonhas, antes nisso tinham tanta inocência como em mostrar o rosto. Lançamos-lhes de bordo alguma roupa, e pelos modos não houveram horror, ou medo delas. Pelo que me pareceu que se lho avezarem, se vestirão como nós; e que mui bom negócio de comércio havia de fazer o que em esta terra de Vera Cruz fosse, ou a ela trouxesse, alfaiate…”
Não me foi dado verificar a autenticidade do documento, nem se o alvitre tenha sido aproveitado. Posso, porém, assegurar que nenhuma referência encontrei sobre o assunto nos autores preferidos pelo relator…
Não compreendeu o relator que esses princípios estudados quanto aos países supercapitalizados, dotados de avançado aparelhamento econômico em relação ao emprego total e ao desequilíbrio entre os fatores de produção, não são os que mais interessam aos países novos, de estrutura econômica fraca, de economia semicolonial, com produção não diversificada, que, com a ausência de instituições e aparelhamentos econômicos e financeiros e a baixa da densidade demográfica, vivem em estado de crise permanente, que ainda mais se agrava com as repercussões das depressões cíclicas dos países supercapitalizados.
As medidas preconizadas por S.Sa. podem ser discutivelmente aconselhadas para a melhoria das condições econômicas de um país que já tenha atingido uma suficiente renda nacional. Preocupa-se, como sendo uma das questões primordiais, com um possível desequilíbrio entre a produção destinada ao consumo e a destinada aos investimentos, problema, como vimos, deduzido pelos economistas modernos, do estudo da economia dos países supercapitalizados…
Entre nós existe um desequilíbrio entre a produção de gêneros alimentícios e as demais atividades econômicas, eis que o crescimento do setor industrial é principalmente no de fabrico de bens de consumo.
Não impressiona ao relator o estado de pobreza de nosso país desde a era de sua independência e o nosso limitado ritmo de progresso, comparado ao dos demais países que se adiantaram nos últimos 100 anos; circunstâncias derivadas de nossa geografia econômica e humana, que retardaram esse progresso e que só podem ser vencidas por uma ampla aplicação da técnica e da ciência, que compense a deficiência dos fatores de que dispomos, em relação aos de que podem lançar mãos esses países mais progressistas. Nada disso merece a atenção de S.Sª. Temos que progredir apenas pela melhoria das condições econômicas normais indicadas pelos economistas ingleses e americanos, como necessária para manter a harmonia evolutiva, nos países supercapitalizados. Não alcançou que, “a prevalecer o lento ritmo observado em nosso progresso material, estaremos irremediavelmente condenados, em futuro próximo, a profundas intranquilidades sociais, pois que, vulgarizadas as noções de conforto, as populações subalimentadas e empobrecidas do país não mais se sujeitarão passivamente ao seu atual e miserável padrão de vida”. E para aqueles que, num justo e patriótico anseio de acelerar o progresso de nossa terra, propõem lance mão o Brasil, numa intensa mobilização, de todos os recursos que nos proporcionam a técnica, a ciência e a política modernas, oferece o relator uma coleção de feios adjetivos.
O Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial propôs um planejamento econômico para o Brasil, movimentando todas as forças vivas da nação, apelando para a colaboração da técnica e dos capitais dos países amigos, num grande combate ao pauperismo.
Na cooperação das entidades representativas de todas as atividades, apontada como indispensável para que esse planejamento se processasse de acordo com uma consciência nacional que reconhecesse a sua necessidade e preservasse ao máximo a iniciativa privada, enxergou o relator, com um estrabismo indesculpável, apenas a intenção de que o planejamento e a intervenção do Estado fossem acertados ou combinados (são expressões suas) com uma determinada classe industrial, de um de cujos órgãos tenho a honra de ser presidente. E tudo isso, para obrigar a proteção “paternalística do Estado” aos interesses já existentes! Interpretação gratuita, inteiramente sua, que não pode ser perfilhada de boa-fé por quem estude, com atenção e imparcialidade, o processo do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial! O projeto deste Conselho – que é constituído por homens da mais alta responsabilidade no cenário nacional – é um estudo sério e construtivo. Não é positivamente a ele que compete a pecha de leviandade…
INDÚSTRIA NACIONAL
No último parágrafo da segunda parte do seu relatório, sob o título “Industrialização e Produtividade”, manifesta-se mais uma vez a má vontade do relator contra a indústria nacional. Contesta que a industrialização do país seja a base principal do seu rápido enriquecimento. Mostra a propósito, como exemplo, a Argentina, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, que se enriqueceram pela agricultura. Como sempre, ressente-se o seu trabalho do desconhecimento das verdadeiras circunstâncias que caracterizam a nossa geografia econômica. A Nova Zelândia, a Argentina e os outros países apontados estavam em situação especial, pela natureza de seus produtos, sua posição geográfica, seus acordos comerciais com a Inglaterra; e suas populações, só durante uma certa época é que conseguiram um determinado grau de prosperidade, fundado exclusivamente na agricultura. Basta, para acentuar a relativa pobreza do comércio dos nossos produtos agrícolas, se apelar para o eventual incremento das suas exportações para os mercados mundiais; verificaremos que as somas totais alcançadas não serão sequer suficientes para aumentar, em 10 anos, em mais de 25% a nossa renda nacional.
Na situação geográfica em que está, o Brasil, com a sua população, com a natureza dos recursos de que dispõe, somente a industrialização permitirá alcançarmos uma cifra de renda nacional capaz de permitir a melhoria geral do padrão de vida que almejamos.
Para o relator, “tudo está na produtividade”. “Precisamos é de aumentar a nossa produtividade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente, isto é, capacidade para exportar” (sic!). Esse é o padrão, na opinião de S.Sª, para a produção vantajosa de um país, quando os Estados Unidos enriqueceram-se absorvendo o seu mercado interno 95% de sua própria produção, na maioria inacessível aos mercados externos.
CONCLUSÕES DE GUDIN
(…) em todo o seu trabalho, nota-se a completa ausência de preocupação do problema social.
Sob a letra “b” propõe “que a política monetária tenha como principal objetivo a manutenção da estabilidade do poder de compra da unidade monetária”.
Essa é uma das fórmulas sugeridas por alguns economistas para evitar flutuações econômicas, inflacionistas e deflacionistas, procurando a manutenção relativa dos níveis de preços. Foi a política oficial adotada pelo sistema de reserva federal dos Estados Unidos entre 1927 e 1929.
Na Conferência de Teresópolis, as classes produtoras votaram, entre outras, as seguintes sugestões, muito mais consentâneas com as realidades e possibilidades brasileiras: “– da Política Monetária e Bancária – ‘entre as medidas definitivas de política monetária, (…) figure a manutenção, em um nível adequado, da procura monetária dos bens agrícolas e industriais correntemente produzidos”.
“… é princípio reconhecido pelas classes produtoras a subordinação da política monetária à política econômica geral de fomento das atividades produtivas, e ampliação do capital nacional”.
A conclusão “j” do relator, sugerindo “que se suprimam quaisquer restrições ou impostos que incidam sobre a remessa de lucros, juros ou dividendos de capitais investidos no país”, deixa de mencionar a remessa das amortizações e ignora a estreita dependência de todas essas transferências com os saldos de nossa balança comercial, fato posto em evidência no I Congresso Brasileiro de Economia e comprovado pelas inequívocas demonstrações do que sucedeu com a história financeira do Brasil, em passado não muito remoto.
É verdadeiramente infantil supor que, num mundo convulsionado e agitado como o presente, alguém possa pensar em restabelecer correntes espontâneas de capitais estrangeiros para o país, capazes de suprir as nossas verdadeiras necessidades, sem um leal e franco acordo de e para governo!
Se houvesse possibilidade de contarmos unicamente com “correntes espontâneas de capitais estrangeiros” não seriam necessários dispositivos [aprovados na Conferência de Bretton Woods] prevendo operações de crédito com a intervenção expressa dos governos. Será que o relator se esqueceu tão rapidamente dessa recente Conferência?
Quanto ao comércio exterior, propõe o relator, entre outras sugestões, que se limite a 33% a margem máxima de proteção às indústrias que mereçam ser instaladas no país. Esse enunciado é simples “hieroscopia”. Por que não 10% ou 100%? – Aí, como em outros casos, nota-se um injustificável dogmatismo e a ausência de um critério, com base científica.
A COMISSÃO DE PLANEJAMENTO ECONÔMICO
As classes produtoras do Brasil, pelos seus órgãos mais representativos, não pensam, felizmente, como o sr. Eugênio Gudin. O programa de planejamento proposto pelo Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial foi apreciado no Congresso Brasileiro da Indústria, e relatado, numa brilhante exposição, pelo senhor professor Teotônio Monteiro de Barros Filho; talvez tenha sido a mais memorável das sessões do Congresso, a que se dedicou à apreciação desse projeto. Os Anais registram o interesse despertado, pois, por vários ângulos, foi encarado por diversos e eruditos oradores, merecendo, finalmente, a aprovação unânime do Congresso.
Ainda recentemente, os produtores do Brasil – da agricultura, do comércio e da indústria – reunidos em Teresópolis, votaram o seguinte item, incluído na Carta Econômica ali elaborada:
– “Ordem Econômica” – conclusão nº 6: É opinião das classes produtoras reunidas nesta Conferência que o Brasil, necessitando urgentemente recuperar o tempo perdido para atingir a renda nacional necessária a permitir a seu povo um melhor nível de vida, procure acelerar a evolução de sua economia por meio de técnicas que lhe assegurem rápida expansão. Para isso, reconhecem a necessidade de um planejamento econômico que vise aumentar a produtividade e desenvolver as riquezas naturais.
Esse item resume parte do Relatório da 1ª Sessão, em que foi expressamente reconhecida a necessidade urgente de um largo planejamento para a economia brasileira.
São Paulo, junho de 1945.