CARLOS LOPES
O primeiro filme de Gregory Peck, “Quando a Neve Tornar a Cair” (título original: Days of Glory), era uma história sobre o sentido moral da vida.
Não muito surpreendentemente para a época (1944), os heróis eram guerrilheiros soviéticos em luta contra a invasão nazista – inclusive Nina (Tamara Toumanova), uma bailarina que, atrás das linhas alemãs, soma-se ao grupo liderado por Vladimir (Peck).
As escolhas são claras – e ninguém poderia dizer que estão fora da realidade, considerando o que acontecera desde 1941. Mitya (Glenn Vernon) prefere morrer enforcado pelos nazistas do que trair seus companheiros. Vladimir opta por não tentar o resgate de Mitya, para não prejudicar a contra-ofensiva soviética, prevista para o dia seguinte. No limite, a morte individual é sempre preferível à escravidão de todos.
Como nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844: “a morte aparece como uma dura vitória da espécie sobre o indivíduo particular” (cf. Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Band 40, Dietz Verlag, Berlin, 1968, p. 539).
“Quando a Neve Tornar a Cair”, porém, não é um filme soviético – nem é propaganda comunista, como, alguns anos mais tarde, o macartismo o acusaria, assim como à “Canção da Rússia”, com Robert Taylor.
Os personagens de “Quando a Neve Tornar a Cair” são concebidos como a antítese dos nazistas. Não como a antítese dos capitalistas, dos burgueses em geral. Seu “código moral” – sua ética – é antagônica à negação da ética pelos nazistas, mas não antagônica à outra ética de classe.
O episódio do prisioneiro nazista traduz esse antagonismo. Vladimir quer executá-lo, sem mais delongas, já que, além da tentativa de usar uma mulher como “escudo humano”, é evidente que o alemão quer enganá-los. Nina e outro personagem, o sub-comandante, Semyon (Lowell Gilmore), convencem-no a organizar um julgamento. Mas, antes que este possa acontecer, o nazista tenta fugir – e é morto por Nina.
Antes que algum leitor reclame porque contamos uma parte da história do filme, advertimos que não se trata de suspense. Pouco importa se conhecemos ou não a história. Não depende disso o prazer (ou não) de assisti-lo.
O importante, aqui, é que a humanidade – em seu duplo sentido, tanto de conteúdo humano quanto de coletivo dos seres humanos – é o antônimo perfeito do nazismo.
Trata-se da ética humana, em seu aspecto que transcende as classes (naturalmente, quando as classes não existirem, nem por isso a ética deixará de existir), em um filme norte-americano.
Lembro-me que Paulo Perdigão, crítico de cinema que programava a sessão “Coruja”, da Globo, escalou “Quando a Neve Tornar a Cair” para uma madrugada, no meio da semana.
Não era esperada uma grande audiência – e não houve. Mas pessoas como meu avô e minha mãe, que já conheciam o filme, passaram a noite acordados para assisti-lo, algo que não era, em absoluto, comum. Muito menos nos anos sob a ditadura. Foi assim que vi, pela primeira vez, este filme.
FUNDAMENTOS
A Revolução Russa, podemos assim nos expressar – a falta de completa exatidão é compensada pelo que isto carrega de verdade -, freou a deterioração ética nos países centrais do ocidente (isto é, a deterioração ética do capitalismo monopolista) durante décadas.
Aqui é onde a ética, a economia e a política cruzam seus caminhos.
Tomemos o capitalismo monopolista – o capitalismo tal como é, nos países centrais do sistema imperialista:
“As características principais e as exigências da lei econômica fundamental do capitalismo moderno poderiam ser formuladas, aproximadamente, da seguinte maneira: assegurar o lucro máximo capitalista, mediante a exploração, a ruína e a pauperização da maioria dos habitantes de um dado país, mediante o avassalamento e a pilhagem sistemática dos povos de outros países, principalmente dos países atrasados, e, por último, mediante as guerras e a militarização da economia nacional, às quais recorre para assegurar o máximo de lucro” (Stalin, “Problemas Econômicos do Socialismo na URSS”, 1952).
Com essa base econômica, é fácil perceber a origem da negação da ética no capitalismo monopolista.
Da mesma forma, é fácil perceber de onde surgiram todas as “teorias” anti-humanas, de Nietzsche a Foucault, passando por Hitler, Alfred Rosenberg e outras almas que habitam, hoje, o nono círculo do Inferno.
Essas “teorias” são, precisamente, expressões alucinadamente conformistas do capitalismo monopolista, tão conformistas que seus autores propõe-se a pertencer a uma raça de feitores dos monopólios financeiros – é a essa raça de feitores que chamam “homem superior” ou “super-homem”.
Apenas macaqueiam a barbárie sanguinária do próprio capitalismo monopolista, sob uma forma supostamente teórica ou falsamente erudita – mas apenas pedante e ridícula, embora, também, criminosa.
Vejamos, então, a lei econômica fundamental do socialismo:
“Os traços essenciais e as exigências da lei econômica fundamental do socialismo poderiam ser formulados, aproximadamente, da seguinte maneira: assegurar a satisfação máxima das necessidades materiais e culturais, sempre crescentes, de toda a sociedade, mediante o desenvolvimento e o aperfeiçoamento ininterruptos da produção socialista à base da técnica mais elevada” (idem).
O leitor poderá, então, contrastar uma e outra lei econômica (é importante frisar que são leis econômicas, devido à confusão, nos últimos anos, em que se martelou uma suposta artificialidade da economia socialista, como se o natural fosse a exploração, o assassinato em massa, a miséria – e a espoliação selvagem dos países menos desenvolvidos).
Da lei econômica fundamental do socialismo, deriva a sua ética, com o desenvolvimento da individualidade humana, somente possível através da vida coletiva, social.
O autor que citamos faz a comparação entre as duas leis econômicas:
“Por conseguinte, em vez de assegurar os lucros máximos, assegurar a satisfação máxima das necessidades materiais e culturais da sociedade; em vez de desenvolver a produção com intermitências do ascenso à crise e da crise ao ascenso, desenvolver ininterruptamente a produção; em vez de intermitências periódicas no desenvolvimento da técnica, acompanhadas da destruição das forças produtivas da sociedade, o aperfeiçoamento ininterrupto da produção à base da técnica mais elevada” (idem).
EMPREGO
O contraste entre essas duas leis econômicas fundamentais – ou, antes, os seus resultados – foi a característica do entreguerras, e, claro, do pós-II Guerra.
A União Soviética foi, então, do ponto de vista ético, a referência do mundo – e, aqui, estamos nos referindo, sobretudo, aos países capitalistas centrais.
Mas isso estava estribado, evidentemente, em seu desenvolvimento econômico.
Um problema interessante, neste aspecto, diz respeito à teoria econômica.
Com a crise que eclodiu em 1929, a economia política vulgar faliu completamente.
No entanto, seus representantes – de Pigou e Fisher até Schumpeter – continuavam recomendando que nada se fizesse, pois a crise se resolveria sozinha. Eles não consideravam um problema, exceto muito provisoriamente, que metade ou mais da força de trabalho nos países centrais estivesse desempregada. Muito menos que a periferia do sistema fosse arrasada pelo aumento estúpido da espoliação sobre ela.
Pelo contrário, os milhões e milhões de desempregados passando fome – assim como os mortos em massa nas colônias e semi-colônias – eram parte da solução desses economistas vulgares para o problema, uma solução que jamais ocorreu ou ocorreria, porque uma economia engessada por monopólios e cartéis, tende não à recuperação, mas à estagnação.
Nessa época, embora evitando tratar dos monopólios, John Maynard Keynes afirmou, exatamente, que a estagnação da economia capitalista tendia a se manter, sem estímulos “externos” (isto é, sem intervenção estatal).
Ao contrário de seus colegas, Keynes transformou o emprego (aliás, o desemprego) no principal problema a ser enfrentado. Daí o nome de sua obra principal, “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda” (The General Theory of Employment, Interest and Money).
O emprego antecede o juro e a moeda nessa “teoria geral”.
Ainda que, conscientemente, Keynes jamais tenha se colocado a questão (como disse Paul Sweezy, para ele, Marx e os marxistas pertenciam a um submundo intelectual), não foi apenas o catastrófico desemprego nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha que o levou a dar essa prioridade ao emprego na sua teoria – nem, muito menos, foram elementos apenas teóricos que o levaram a isso.
O fato é que havia um lugar na face da Terra no qual o desemprego deixara de existir desde 1930 – quando foi fechada a última “bolsa de trabalho” – e onde a economia crescia a taxas exponenciais, ao mesmo tempo que, no ocidente, a bancarrota afundava populações inteiras.
Era, naturalmente, a URSS.
Essa realidade não era possível ignorar, quando se formulavam políticas para enfrentar a crise nos países capitalistas.
Que melhor exemplo de intervenção do Estado poderia existir do que a URSS?
Nílson Araújo de Souza fez uma importante contribuição para a compreensão desse problema – e das soluções encontradas – nos países capitalistas, em seu livro “Ascensão e Queda do Império Americano” (CPC-UMES/Mandacaru, 2001).
Sucintamente, houve uma época em que, ao invés de países socialistas importarem mecanismos mercantis, e mesmo capitalistas, para dentro de suas economias, países capitalistas – e países centrais do capitalismo – foram obrigados a usar mecanismos que tinham levado ao sucesso a URSS.
Com certeza, isso não levava – e não levou – os países capitalistas a se tornarem socialistas, nem esses “mecanismos” significaram a mesma coisa sob o capitalismo do que significavam no socialismo.
Mas é evidente como essa mesma realidade histórica – o sucesso econômico da URSS – aparece, por exemplo, na polêmica sobre planejamento econômico estatal, no Brasil, entre o empresário Roberto Simonsen e o testa-de-ferro Eugênio Gudin, no final do primeiro governo Getúlio Vargas, inclusive com várias citações de Stalin (v. HP 19/01/2011 e segs, Roberto Simonsen: a indústria e o desenvolvimento do Brasil).
Era inevitável, nesse contexto, que a questão ética intrínseca ao próprio desenvolvimento econômico da URSS, tivesse repercussão internacional direta.
Nessa esfera econômica, as discussões sobre o pleno emprego, que, com Franklin Delano Roosevelt, torna-se o objetivo central da política econômica nos EUA, fazem parte dessa repercussão.
Bem entendido, não estamos dizendo que os rooseveltianos defenderam o que defenderam – e fizeram o que fizeram – apenas por influência da URSS ou apenas para competir com a URSS.
Mas até que ponto a consciência deles teria se desenvolvido, sobre essas questões, se ao desastre a que levaram os monopólios financeiros nos EUA, não houvesse o contraponto – se assim podemos chamar – da URSS?
Todo o chamado Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), tão detestado pelos neoliberais, era a tentativa de resistir ao socialismo, introduzindo, em algum nível, medidas que tinham sido implementadas pela URSS.
Mesmo quando essas medidas não eram – nem podiam ser – as mesmas que na URSS, sua própria designação revelava algo da origem. Por exemplo, a denominada “socialização da medicina”, no governo trabalhista de Clement Attlee (1945-1951), e a “nacionalização” (isto é, estatização), pelo mesmo governo, da infraestrutura econômica (carvão, siderurgia, eletricidade, ferrovias, gás, transporte rodoviário, telégrafos, e, também, aviação civil), além da estatização do Banco da Inglaterra.
Notemos que todas essas medidas, realizadas em seis anos – e não foram só essas -, vão na direção oposta à do capitalismo monopolista.
Muito se escreveu, depois, sobre como as medidas do governo Attlee não eram opostas ao capitalismo em geral, como, pelo contrário, elas foram realizadas exatamente para que o capitalismo continuasse viável na Inglaterra.
É verdade. Mas o que é notável não é essa obviedade. O que é notável é que a condição para que o capitalismo continuasse viável na Inglaterra foi uma restrição à monopolização privada em setores-chaves da economia – e nos serviços públicos, especialmente a Saúde.
Também é verdade que alguns governos posteriores, especialmente os governos conservadores que sucederam Attlee nos 12 anos seguintes – Churchill (1951-1955), Eden (1955-1957) e Macmillan (1957-1963) -, sem tocar nas mudanças do governo Attlee, agiram no sentido oposto – isto é, no sentido de favorecer a monopolização financeira da economia. Foi isso que significou a crescente “integração” da economia inglesa à economia norte-americana e a transformação da “city” londrina no maior centro de especulação da Europa.
O que explica, também, a recusa de De Gaulle à entrada da Inglaterra no Mercado Comum Europeu (MCE). O projeto gaullista implicava algum grau de enfrentamento com os monopólios norte-americanos. Aceitar a Inglaterra dentro do MCE equivaleria às comemorações troianas pelo cavalo de madeira que os gregos deixaram na praia.
ENTRE GUERRAS
Outra vez lembramos que não estamos confundindo necessidades econômicas com demandas éticas – apenas, se umas estiverem em oposição às outras, estaremos caminhando para a catástrofe. Sobretudo quando se trata das “necessidades” econômicas de um punhado microscópico de parasitas, grudados na economia pelo financismo predatório.
Resta, também outra vez, frisar que o respiro civilizado que houve nos países centrais não foi um produto do capitalismo monopolista, mas, pelo contrário, devido a políticas – inclusive expressas na legislação – que restringiam o poder dos monopólios financeiros.
É isso o que determinou, nos EUA, a chamada “era dos bancos tediosos”, termo que Paul Krugman usou para o período que vai do fim da depressão da década de 30 até a década de 70, ou seja, o período em que os bancos e o setor financeiro em geral foram regulados pelo Glass–Steagall Act (1933), pelo Securities Act (1933) e pelo Securities Exchange Act (1934), promulgados pelo governo Roosevelt (v. Paul Krugman, Making Banking Boring, TNYT 09/04/2009).
Trata-se de um período em que o peso do setor meramente financeiro diminuiu na economia dos EUA. A importância dessas leis não pode ser subestimada após o que ocorreu com a revogação dessa regulação, por Clinton e seus “novos democratas” (v. O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica; para um ponto de vista ligeiramente diferente, v. John Bellamy Foster e Hannah Holleman, The Financial Power Elite, Monthly Review, May 01, 2010).
Mas, a razão porque frisamos tão insistentemente que a “ética revolucionária” – baseada nas relações econômicas que se desenvolviam na URSS – teve um papel proeminente, mesmo decisivo, nos países centrais, nos países imperialistas, é, precisamente, porque houve um deles em que isso não aconteceu no entreguerras.
Esse caso, o da Alemanha, nos serve, aqui, de prova negativa – o que lá ocorreu demonstra, com fartura de horrores, ao que levou o capitalismo monopolista sem restrições, deixado a si mesmo, com uma ditadura de poder absoluto por parte dos cartéis e monopólios que já sufocavam o país.
Sucintamente, o capitalismo monopolista, nessas condições, levou a uma guerra mundial com, pelo menos, de acordo com a Larousse, 54 milhões de mortos.
Do ponto de vista estritamente germânico, levou à destruição da Alemanha.
[NOTA: Antes de continuar, uma observação sobre a Itália, onde o nietzschiano Mussolini – que lia seu autor favorito diretamente em alemão – instalou a ditadura fascista desde o início da década de 20.
O fascismo italiano jamais conseguiu um poder absoluto, quanto o nazismo na Alemanha. Aliás, nem mesmo conseguiu eliminar a influência dos comunistas na classe operária e no campesinato italianos.
Por outro lado, outras contingências, como a relação com a Igreja Católica, e as próprias limitações materiais do capitalismo italiano, frearam Mussolini. Mas somente até certo ponto: a chacina da Etiópia e o massacre na Líbia marcam bem esse ponto.
Hoje, Mussolini nos parece ridículo – pela simples razão, que era ridículo. Porém, além disso, era um assassino. Não deixa de ser sintomático que ele, antes da II Guerra, tenha dito a mais de um interlocutor que Hitler era um homicida. No que estava certo, mas essa era uma qualidade em que ele não se distinguia do ditador austro-alemão. Oportunista psicopático, Mussolini encontrou seu fim quando acreditou na eternidade das vitórias de Hitler (a melhor obra sobre Mussolini é o diário de seu genro – e ministro do Exterior – Galeazzo Ciano, fuzilado pelos alemães porque apoiou a deposição do sogro pela direção do partido fascista, o que significava afastar a Itália da Alemanha).]
(CONTINUA)