Foi a ditadura de Pinochet quem assassinou o poeta, afirma o sobrinho Rodolfo Reyes
Um painel internacional de especialistas apontou na última quarta-feira (15) que o poeta da libertação e da identidade latino-americana, Pablo Neruda, foi morto pela ditadura chilena por envenenamento em 23 setembro de 1973, que lhe havia causado uma gravíssima infecção urinária, afirmou o seu sobrinho Rodolfo Reyes. “A clostridium botulinum, bactéria que causa o botulismo, nunca devia estar no esqueleto de Pablo e para nós, como para qualquer que não seja médico, significa o assassinato de Pablo Neruda”.
Com a inoculação, apontou Rodolfo, o prêmio Nobel da Literatura veio a falecer apenas 12 dias após o golpe do general Augusto Pinochet contra Salvador Allende, líder socialista bombardeado durante o ataque aéreo ao Palácio Presidencial de La Moneda em 11 de setembro.
Investigadores do caso desde 2017, o grupo de 16 cientistas, biólogos e químicos de seis países (Canadá, Chile, Dinamarca, França, Espanha e Estados Unidos) concluiu, em dois documentos de 30 páginas, que foi encontrada a bactéria em um dente dos seus restos mortais. “A Clostridium botulinum estava lá no momento de sua morte, mas ainda não sabemos por quê. Só sabemos que não deveria estar lá”, disseram Hendrik e Debi Poinar, da Universidade McMaster, no Canadá.
Para o sobrinho do poeta a razão é mais do que óbvia, “Neruda era candidato e opositor ferrenho do ditador e estava prestes a se exilar no México porque sua vida corria perigo no país”. Com a submissão dos golpistas aos ditames de Washington, “nada acontecia no Chile sem a autorização ou a ordem de Pinochet”. “Sabemos que a bactéria encontrada por um laboratório canadense lhe foi injetada e em poucas horas faleceu. Neruda foi assassinado e houve intervenção de agentes do Estado. Pinochet foi o responsável”, acrescentou.
“A POESIA TRIUNFA COM A VERDADE SOBRE NERUDA”
“Confirmado o envenenamento, a poesia triunfa com a verdade sobre Neruda”, declarou em Roma o escritor Roberto Ippolito, autor do livro “Delito Neruda”, sobre as atrocidades cometidas no país andino. “É um belo momento para o poeta. A verdade era uma dívida coletiva que tínhamos com ele, um dever. Mas não é só sobre ele. Esta verdade deixa ainda mais clara a enormidade dos crimes e violações de direitos humanos cometidos pela ditadura no Chile. Agora a palavra vai para a magistratura pela condenação à morte, ocorrida doze dias após o golpe”, destacou Ippolito.
Para o escritor italiano, “poeta imortal, Pablo Neruda está, portanto, prestes a obter justiça terrena”. “Agora, enterrado diante das ondas da Ilha Negra, ele pode olhar para o infinito do oceano com um sorriso sereno”, completou, em entrevista ao jornal argentino Página12.
Ippolito lembrou que, frente ao oficial que invadiu a sua casa três dias depois do golpe, Neruda disse: “aqui há apenas uma coisa perigosa para você. Poesia!”. “De fato, a poesia era perigosa para o regime. Mas a poesia triunfa. Derrota a ditadura de Pinochet e todos os partidários do autoritarismo”, concluiu o italiano.
MOTORISTA DE NERUDA, O PRIMEIRO A DENUNCIAR O CRIME
O primeiro a questionar a versão oficial da morte por “câncer de próstata metástico” – assinado pelo médico Roberto Vargas Salazar, que não esteve presente na clínica Santa Maria de Santiago nem antes nem depois do óbito – foi o motorista do poeta, Manuel Araya, que informou ao diretor do portal El Ciudadano que Neruda havia sido envenenado com uma injeção no abdômen às quatro da tarde e que seis horas e meia depois já estava morto.
A investigação judicial sobre o assassinato do renomado poeta começou em 2011, após uma entrevista de Araya à revista mexicana Proceso, e depois que o Partido Comunista Chileno (PCC) ter apresentado uma denúncia ao Tribunal de Apelações para apurar as causas da morte.
Dirigindo para Neruda desde o retorno do poeta da França, em 1972, onde havia sido embaixador do Chile durante o governo de Allende, Araya compartilhou com ele todos os dias em que ficou internado na clínica, em que chegou ao lado da esposa Matilde Urrutia, em 19 de setembro de 1973.
Na oportunidade, foi alegado pelo centro médico que havia a falta de um remédio e de que Araya necessitaria se deslocar até uma farmácia distante. Naquele dia, lembra o motorista, “Neruda me disse: ‘Estou queimando por dentro, Manuel, estou queimando’. Eu baixei para ver e ele disse aqui que tinha uma manchinha, dois dedos abaixo do coração”. “Era uma pequena mancha vermelha, como quando alguém pica você e deixa uma espinha”, relatou.
No caminho, o motorista foi preso e enviado ao campo de concentração em que haviam transformado o Estádio Nacional, que abrigou mais de 40 mil presos políticos, sendo submetido a torturas. No local, o cantor Victor Jara e cerca de 500 pessoas, além de torturadas, foram executadas pelos militares, com a assessoria norte-americana. Durante o regime de Pinochet (1973-1990), foram assassinados e desaparecidos mais de três mil opositores.
Questionando a forma como Neruda morreu, Ippolito aponta a “morte súbita”, quando se encontrava em bom estado, apesar do câncer, e a intensa atividade escrita; o atestado de óbito falso assinado por um médico que não o visitou, nem vivo nem morto; o desaparecimento do histórico clínico do paciente e de outros documentos de saúde; a misteriosa injeção no abdômen; a presença de um “médico fantasma” que disseram ter ficado com Neruda ao terminar o turno da tarde, cujo nome não consta em nenhum documento da clínica ou da associação médica. Soma-se a isso a necessidade do deslocamento e a imediata prisão de Araya; a queima dos livros de Neruda nas ruas; e documentos secretos da CIA, tornados públicos anos depois do golpe, que confirmam que foi dada uma “atenção especial” ao poeta.
O funeral de Neruda tornou-se a primeira grande manifestação contra a ditadura de Pinochet que se instalara dias antes:
Em homenagem a Neruda e a seu profundo amor à humanidade, deixamos aos nossos leitores o seu “Novo Canto de Amor a Stalingrado”, com a convicção da batalha pela verdade e a justiça.
Novo Canto de Amor a Stalingrado
Pablo Neruda
Escrevi sobre a água e sobre o tempo,
descrevi o luto e seu metal acobreado,
escrevi sobre o céu e a maçã,
agora escrevo sobre Stalingrado.
As noivas já guardam no seu lenço
raios de meu amor enamorado,
meu coração agora está no solo,
na fumaça e na luz de Stalingrado.
Já toquei com as mãos a camisa
do crepúsculo azul e derrotado:
agora toco a própria luz da vida
nascendo com o sol de Stalingrado.
Sinto que o velho-jovem transitório
de pluma, como os cisnes adornado,
despe a roupagem de seu mal notório
por meu grito de amor a Stalingrado.
Ponho minh`alma onde quero.
E não me nutro de papel cansado
temperado de tinta e de tinteiro.
Nasci para cantar a Stalingrado.
Minha voz esteve com teus inúmeros mortos
contra teus próprios muros esmagados,
minha voz soou como o sino e o vento
vendo-te morrer, Stalingrado.
Agora americanos combatentes
brancos e escuros como a romã,
matam no deserto a serpente.
Já não estás a sós, Stalingrado.
França volta às velhas barricadas
com pavilhão de fúria hasteado
sobre as lágrimas recém derramadas.
Já não estás a sós, Stalingrado.
E os grandes leões da Inglaterra
voando sobre o mar de furacões
cravam as garras na parda terra.
Já não estás a sós, Stalingrado.
Hoje abaixo de suas montanhas de escarmento
não estão apenas os teus enterrados:
tremendo está a carne de teus mortos
que tocaram tua frente, Stalingrado.
Teu aço azul de orgulho construído,
teu cabelo de planetas coroados,
teu baluarte de pães divididos,
tua fronteira sombria, Stalingrado.
Tua Pátria de louros e martírios,
o sangue no teu esplendor nevado,
o olhar de Stalin sobre a neve
tingida com teu sangue, Stalingrado.
As condecorações que teus mortos
colocaram sobre o peito transpassado
da terra, o estremecimento
da morte e da vida, Stalingrado.
O sal profundo que de novo traz
ao coração do homem estremecido
com a rama de vermelhos capitães
saídos de teu sangue, Stalingrado.
A esperança que se rompe em seus jardins
como a flor da árvore esperada,
a página gravada de fuzis,
as letras de sua luz, Stalingrado.
A torre que concebes nas alturas,
os altares de pedra ensanguentados,
os defensores de tua idade madura,
os filhos de tua pele, Stalingrado.
As águias ardentes de tuas pedras,
os metais por tua alma amamentados,
os adeus de lágrimas imensas
e as ondas de amor, Stalingrado.
Os ossos dos assassinos feridos,
os invasores de pálpebras fechadas
e os conquistadores fugitivos
atrás de sua centelha, Stalingrado.
Os que humilharam a curva do Arco
e as águas do Sena transpuseram
com o consentimento do escravo,
se detiveram em Stalingrado.
Os que a bela Praga sobre lágrimas,
sobre o emudecido e o traído,
passaram pisoteando suas feridas,
morreram em Stalingrado.
Os que na gruta grega esculpiram
a estalactite de cristal quebrado
em seu clássico azul escasso,
agora onde estão, Stalingrado?
Os que a Espanha incendiaram e dividiram
deixando o coração encarcerado
dessa mãe de ensinos e guerreiros,
se puseram a seus pés, Stalingrado.
Os que na Holanda, água e tulipas
salpicaram no lodo ensanguentado
e derramaram o açoite e a espada,
agora dormem em Stalingrado.
Os que na branca noite da Noruega
um uivo de chacal soltaram
incendiando esta gelada primavera,
emudeceram em Stalingrado.
Horror a ti pelo que o ar traz,
o que se há de cantar e o cantado,
horror por tuas mães e teus filhos
e teus netos, Stalingrado.
Horror ao combatente da névoa,
horror ao comissário e ao soldado,
horror ao céu por traz da tua lua,
horror ao sol de Stalingrado.
Guarda-me um pedaço de violenta espuma,
guarda-me um rifle, guarda-me um arado,
e que o coloquem em minha sepultura
com uma espiga vermelha de teu estado,
para que saibam, se há alguma dúvida,
que morri amando-te e que me tens amado,
e se não estive combatendo em tua cintura
deixo em tua honra esta granada escura,
este canto de amor a Stalingrado.