Conforme o previsto, a privatização da gestão dos 22 cemitérios da cidade de São Paulo, em 7 de março, traria dor e dificuldades para a população de baixa renda que não pode arcar com as despesas de um sepultamento. O drama vivido por uma família que passou dois dias tentando liberar o corpo do filho para o enterro confirma essas projeções.
O corpo do bebê permaneceu por dois dias no hospital da Santa Casa porque a documentação do Cadastro Único, um dos requisitos para ter acesso ao serviço gratuito, estava desatualizado. Uálisson Ferreira relatou ao portal G1 que perdeu o filho na última terça-feira (13) e que tentou sepultar o bebê no cemitério da Consolação, mas só conseguiu dois dias após o óbito. A família afirma que não sabia dessa situação.
Como não tinha dinheiro para pagar pelo serviço, Uálisson procurou a Consolare, empresa responsável pelo cemitério, e foi orientado incorretamente a procurar a Caixa Econômica para atualizar o cadastro.
Entre idas e vindas, o problema só foi resolvido após contato da reportagem da TV Globo com a Consolare que deu um prazo para a família atualizar o CadÚnico. Também foi liberada a documentação para a retirada do corpo da criança do hospital.
A família conta que já havia passado por essa situação há 5 anos, quando também perdeu um bebê, mas o pai diz que o sofrimento foi menor, pois não houve esses obstáculos enfrentados agora ou quaisquer exigências do tipo. Apenas a assinatura de documentos para a liberação do serviço.
O serviço funerário é gratuito às famílias que atendam determinados critérios: renda mensal familiar de até três salários mínimos e possui inscrição atualizada no Cadastro Único; quem tem cadastro no Sistema de Atendimento do Cidadão em Situação de Rua nos últimos 12 meses; e doadores de órgãos, desde que optem pelo pacote do funeral social.
Entretanto, as empresas privadas não comunicam as famílias sobre os direitos que são garantidos por lei.
Além das gratuidades a cidade de São Paulo também conta com o chamado funeral social, que deveria custar R$ 566.
São garantidos pelo serviço gratuito uma urna funerária, o transporte, o cerimonial e a sala de velório. No caso do sepultamento, a gestão oferece uma gaveta unitária por três anos e a exumação. E, para a cremação, uma câmara frigorífica e um recipiente para as cinzas.
O Serviço Funerário da Prefeitura respondeu pela empresa Consolare, alegou que prestou assistência à família e que haverá fiscalização constante da prestação dos serviços pelas concessionárias para garantir que as obrigações assumidas no contrato sejam cumpridas.
CHORA MENINO
Essa não é a primeira vez – depois da privatização dos cemitérios – que famílias enfrentam problemas para enterrar seus entes. A Rádio CBN também recebeu novas denúncias de irregularidades após a privatização do serviço funerário da cidade. Uma agência da Zona Norte de São Paulo alegou que não tinha carros suficientes para fazer a remoção de um corpo. Famílias também relatam que as funerárias não dão a opção de cerimônias mais simples para cobrar preços elevados.
A avó da professora Marcela Schuskel morreu em casa na terça-feira (14). A família acionou a seguradora para iniciar os trâmites do funeral junto à agência do cemitério Chora Menino, na Zona Norte.
Marcela disse que a funerária não apresentou as opções mais simples de caixões e cerimônias e não sabe se pagou um preço justo. Somente depois de cinco horas do contato, a agência disse que não conseguiria retirar o corpo no mesmo dia por falta de carro.
“Eles iam me vender um produto, que é o preparo do corpo, sem necessidade. São R$ 1 mil. E no final desse atendimento, que foi o mais grave, eles falaram que não iam ter condições de retirar o corpo hoje. Como fica o nosso emocional? Essa negligência, um corpo ficar mais de 12 horas, porque eles só tem quatro carros para São Paulo inteira”, afirmou.
Marcela disse que a família já tinha mandado abrir o túmulo no cemitério particular para onde o corpo iria e que teria que abri-lo novamente no dia seguinte pagando uma taxa de R$ 1.600.
A família só conseguiu que a agência garantisse o transporte no mesmo dia depois de ameaçar chamar a polícia.
No início do mês, o corpo de uma idosa foi liberado para sepultamento somente 10 horas depois da morte.
“É uma falta de respeito com a população, com o ser humano, porque se nós fôssemos ricos –não fôssemos pobres, a gente não estaria passando por essa humilhação, por esse contrangimento. Nós iríamos e pagava”, diz a vó do bebê. […] Como acontece com a minha família, pode ser na família de qualquer um”, completa.
Já na semana passada, a aposentada Neide de Souza também teve problemas na agência do Chora Menino. Ela disse que a funerária não apresentou a possibilidade do funeral social, de 566, e que aumentou o preço de um dia para o outro.
“Custa R$ 1.504. Aí quando chegou no dia seguinte, que o corpo chegou, que deu aquela confusão toda, aí eles queriam mais R$ 1.400”, denunciou.
PRIVATIZAÇÃO ENCARECEU SERVIÇOS
Em 7 de março, os 22 cemitérios da capital foram concedidos para a iniciativa privada, com duração prevista de 25 anos, quando quatro empresas passaram a ser responsáveis pelos velórios e sepultamentos na cidade: Consolare, Cortel, Grupo Maya e Velar.
Além do aumento nos preços para conservação dos túmulos, com a concessão dos serviços à iniciativa privada, há uma confusão nos valores apresentados pela Prefeitura e pelas concessionárias.
Desde o primeiro pico da Covid-19, em 2020, os preços dos velórios no país aumentaram significativamente. Em média, um enterro básico sai em torno de R$ 2000,00 reais, porém, em São Paulo, enterros que incluem sala de velório entre outros itens, podem atingir até R$ 50 mil reais ou mais. No caso de cremação, os valores podem ser ainda maiores, sendo que o custo da cremação na cidade gira em torno de R$ 2500 reais, e pode ultrapassar R$ 20 mil reais. Valores inacessíveis para famílias de baixa renda e para outras camadas sociais da população paulistana.
“É muito indignante. Nem para morrer nós temos direito. Nem para enterrar um ente querido nós estamos tendo direito”, lamenta o pai.
“É carteira disso, daquilo, que até já amarelou minha certidão de nascimento. E ainda por cima ter que pagar pra nascer, ter que pagar pra viver, ter que pagar pra morrer”.
É por isso que esses trechos da canção “Pare o mundo que eu quero descer!”, composição e interpretação de Sílvio Brito, eternizada na voz de Raul Seixas, continua mais atual que nunca nesses tempos de “deus mercado”.
SINDICATO DENUNCIA IRREGULARIDADES
Nesta quarta (15), integrantes do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo se reuniram com representantes da prefeitura na Superintendência do Serviço Funerário.
O integrante do sindicato, João Batista Gomes, disse que a SP Regula, agência que fiscaliza a concessão, demonstrou preocupação com as denúncias da última semana e que se comprometeu a pedir que as concessionárias consultem se os cidadãos querem os pacotes mais simples:
“Eles vão ter que ajustar através desse termo de entrevista. Esse termo de entrevista vai ter que ser obrigatório para os concessionários. Para informar a família da gratuidade, do social e desses quatro caixões. Acima disso, aí a empresa vai oferecer o serviço dela, mas ela é obrigada a oferecer esses quatro serviços”.
Na reunião com o sindicato, a SP Regula também permitiu que os servidores do serviço funerário sejam liberados para procurar outras áreas da prefeitura em que queiram atuar de forma comissionada até a extinção do serviço, no ano que vem.
Também nesta quarta (15) a Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara aprovou um requerimento para solicitar explicações à SP Regula e às concessionárias sobre o aumento dos valores cobrados dos munícipes.