CARLOS LOPES
É necessário, agora, sintetizar o nosso tema.
O que se depreende, no campo ético, do caso Dreyfus, da I Guerra Mundial, do nazismo, do neoliberalismo e da falência ética e moral de Lula, Ortega, Maduro, Bachelet e outros aderentes à caixa registradora?
O capitalismo monopolista – isto é, o capitalismo apodrecido e degenerado, que negou a própria concorrência que antes lhe era inerente – é incapaz de gerar (ou de manter) uma ética, mesmo a ética característica do próprio capitalismo.
Pelo contrário, faz parte de sua natureza monopolista – usemos esta forma de expressão – transgredir qualquer ética, negar qualquer ética, fazer tábula rasa de qualquer valor social, coletivo, característico do ser humano enquanto espécie, ou seja, qualquer valor humano.
A busca do lucro máximo implica, inevitavelmente, nessa negação de qualquer ética.
O predomínio financeiro, como consequência da tendência à queda da taxa de lucro – devido ao aumento do capital constante (sobretudo a maquinaria, que não é criadora de valor) em relação ao capital variável (salários, ou seja, força de trabalho, que é criadora de valor) – leva, com seu parasitismo, cada vez mais extremo, também à negação da ética, sobretudo àquela do capitalismo concorrencial e produtivo, que tinha base diretamente no trabalho.
Pode-se examinar essa questão, inclusive, sob este último aspecto: quanto menos ligado à produção, mais o capitalismo torna-se um monstro antiético. A produção é, exatamente, onde os seres humanos estão, pela necessidade, primeiramente associados. Ainda que essa associação não seja igualitária, ela implica em modos de tratar o outro – na expressão cristã: o próximo – que não podem ser a mera agressão e assassínio desse outro ser humano.
Até mesmo a escravidão – esse modo de “associação” humana para produzir – implicava em uma determinada ética. Engels, ao contestar o melodrama que Eugen Dühring apresentava no lugar da História, faz uma observação perspicaz:
“… por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. (…) E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas, já que, até então, eram todos exterminados, no começo por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo”.
Bem entendido, o pressuposto, a base, dessa ética escravagista era a produção escravagista.
Hoje, o valor total de papéis financeiros (fora as ações em bolsa de valores) é oito vezes maior que o valor da produção mundial durante um ano (cf. BIS Statistical Bulletin, June 2018, p. 253).
Até mesmo a especulação com ações de empresas tornou-se completamente insignificante diante desses papéis financeiros (que montam, diz o BIS, a seis vezes e meia o valor de todas as ações de empresas que existem no mundo).
Esse descolamento da produção, evidentemente, tem efeitos no campo ético, no mesmo momento em que o ser humano torna-se uma abstração – ou, pior, uma coisa que não se leva em consideração, exceto, em certos momentos, como um empecilho – para os jogadores desse cassino financeiro.
O empresário produtivo, por mais que seja grande a sua sede de lucros – e a revolução industrial, com crianças nas fábricas e minas de carvão, mostrou até onde pode chegar o saciamento dessa sede – é obrigado, necessariamente, a tomar contato, de um modo ou de outro, com os trabalhadores.
O rentista, aquele que ganha, fundamentalmente, com juros e apostas no mercado futuro, não tem essa necessidade. Apesar de seus ganhos somente existirem se existir produção, esta lhe aparece, no máximo, como um pretexto para tais ganhos. Um rentista que aplica seu dinheiro em algum papel derivado – ou seja, um “derivativo” – da produção de cacau, não tem qualquer relação com a produção de cacau. Alguns nem sabem se o cacau é vegetal ou mineral. Não tem importância se esse papel é derivado da produção de cacau ou da produção de beldroegas.
Porém, esse ainda é um exemplo que tem alguma ligação com a produção. Boa parte dos papéis – como os swaps favorecidos pelo Banco Central – são apostas apenas em cima de qual será a taxa de juros, ou a taxa de câmbio, daqui a algum tempo.
Portanto, desaparece, aqui, qualquer vínculo (quase somos tentados a escrever, apesar da redundância: desaparece qualquer vínculo visível) com a produção.
Na medida que isso acontece, qualquer consideração com os outros seres humanos, mesmo aquela do patrão pelo empregado, deixa de existir.
O que tem relação direta com a selvageria das relações de trabalho, que se procura implantar em todos os países onde essa desgraça financeira se tornou dominante, ou a pilhagem do Estado – o chamado “estado mínimo”, que não passa da passagem dos recursos coletivos, do dinheiro e da propriedade do povo, para alguns açambarcadores (ou, dizendo de outra forma, é a transformação do Estado em órgão com apenas uma função: a passagem do resultado da espoliação de toda a população para alguns bandidos financeiros).
Daí certas “teorias”, como o famoso “gotejamento”, segundo a qual os ricos devem pagar menos impostos que os pobres, pois, assim, se os ricos enriquecerem mais, haveria o “gotejamento” da prosperidade dos ricos para os pobres…
Por isso, o mais escandaloso na carga tributária atual, tanto nos países centrais, como em certos países periféricos, como o Brasil, não é o seu tamanho global (sua medida em percentagem do Produto Interno Bruto), mas o fato de que ela recai sobre os mais pobres.
No Brasil, a alíquota média de impostos pagos pelos 0,05% mais ricos da população é apenas 7% (cf. Marcel Gomes, “As distorções de uma carga tributária regressiva”, Desafios do Desenvolvimento, IPEA, 2015, Ano 12, nº 86, p. 41).
Para resumir esse assunto: os ganhos de capital do dinheiro estrangeiro, que entra no Brasil, são isentos de Imposto de Renda, assim como os lucros e dividendos distribuídos pelo “investimento estrangeiro”.
Enquanto isso, um médico ou um operário especializado pagam 27,5% de Imposto de Renda sobre os seus rendimentos.
Para quê?
Para que o governo federal transfira, de 2003 a 2017, sob a forma de juros, R$ 2 trilhões, 963 bilhões e 591 milhões de dinheiro público para a mesma quadrilha financeira que não paga impostos por seus lucros e dividendos (o total das transferências de todo o setor público, no mesmo período, em juros, foi de R$ 3 trilhões, 605 bilhões e 470 milhões).
Lembremos, só de passagem, que 78% (ou R$ 2 trilhões, 797 bilhões e 620 milhões) desses recursos passados pelo setor público para o setor financeiro, foram sob os governos do PT.
PERTURBAÇÕES
Portanto, a tendência do capitalismo monopolista, deixado completamente à solta, é instalar a lei da selva na sociedade – e não apenas na economia e na política, como na cultura, nas relações familiares, nas relações entre os sexos.
Nos dispensamos de analisar, aqui, as manifestações culturais, pois a grosseria e mesmo a criminalidade veiculadas pela TV em substituição à música, ou a ausência quase completa de algo que possa ser chamado de literatura, ou as “instalações” e outras magníficas obras de arte, que significam, precisamente, nada, são suficientes para exemplificar o que queremos dizer.
Porém, quanto ao último aspecto, é sintomático que tenha se inventado um suposto conceito de “gênero”, para negar as relações entre os dois sexos que existem na espécie humana.
Os adeptos da ideologia “de gênero” certamente protestarão quanto a essa forma de colocar a questão. No entanto, isso não a torna menos verdadeira.
Para que serve essa palavra – pois não passa de uma palavra, transplantada, por sinal, da gramática normativa (ou, pior, da taxonomia biológica, onde se falava, antigamente, de “gênero humano”) –, senão para passar a ideia de que os sexos da espécie humana são apenas uma limitação artificial e repressora?
Disse Engels, em seu artigo sobre o cristianismo primitivo, que as confusões e faltas de limite no campo sexual são “um fenômeno comum a todas as épocas profundamente perturbadas”.
Assim a palavra “gênero” não é um conceito, na medida em que não expressa uma realidade (ou, se o leitor rigoroso quiser, não expressa um objeto de realidade). No máximo, expressa um desejo.
Essa palavra constitui apenas uma espécie de argumento ad hoc contra a realidade, um argumento construído a partir de um objetivo, de uma finalidade, a de estabelecer uma oposição com os sexos (masculino ou feminino), para justificar não apenas a existência, mas a superioridade de “orientações” não heterossexuais – transformadas em “gêneros” da espécie humana por obra e graça apenas do uso de uma palavra.
O amor entre os sexos é uma conquista cultural. Nos outros animais, a diferença entre o relacionamento sexual em geral e aquilo que chamaríamos de estupro, é nula.
Assim também era nos primórdios da espécie humana. Houve uma longa trajetória, ainda não inteiramente completada – pois ela implica no fim de certas discriminações que ainda inferiorizam socialmente a mulher -, para que o amor entre os sexos, e seus refinamentos, substituísse o puro impulso animal.
Essa é a relação básica da natureza – a que permite, inclusive, a continuação da espécie – e a relação humana básica.
Quanto às outras “orientações sexuais”, não se trata, aqui, apenas do homossexualismo, nem principalmente.
Sobre este, anotaremos apenas que uma das fraudes contemporâneas – na qual Foucault tem responsabilidade direta – é confundir a existência de uma normalidade (ou seja, uma norma) social com discriminação.
É esse o uso que se faz, atualmente, da palavra “homofobia”. O simples fato de reconhecermos uma norma social também no relacionamento sexual, é suficiente para que o sujeito seja tachado de “homofóbico”.
No entanto, a existência de uma norma social não transforma os seus adeptos em assassinos ou espancadores de homossexuais – esses criminosos, aliás, são sujeitos muito mal resolvidos quanto aos seus próprios impulsos sexuais.
Há muito, em 1764, Voltaire, quando tornou-se corrente, entre a decadente aristocracia francesa, a pregação sobre a normalidade (naquela época, a “naturalidade”) do homossexualismo, escreveu:
“Como poderia um vício que, se fosse geral, destruiria o gênero humano, (…) ser, apesar disso, tão natural?” (Voltaire, Dictionnaire Philosophique, art. “Amour socratique”).
Antes que alguém proteste contra o uso da palavra “vício” quanto ao homossexualismo, seria bom conferir a mesma palavra na obra de Marcel Proust, que era homossexual (ou, até mesmo, nas últimas entrevistas de Tennessee Williams, que também era homossexual).
Porém, retomando o fio de nosso assunto, a ideologia de gênero, hoje, nem mesmo tem como centro o homossexualismo.
Alguns leitores já devem ter ouvido falar na pedofilia como uma “orientação sexual alternativa”; ou devem ter lido, com um destaque imenso, no maior jornal do Rio de Janeiro, a entrevista de alguém que classificava a si próprio como “um trans não-binário”, ou seja, alguém acima da identificação seja com o sexo masculino, seja com o sexo feminino.
Com efeito, Engels tinha razão. Podemos dizer que jamais houve uma época tão perturbada quanto a atual.
Certo tipo de grupo, que se considera “de esquerda” – quase todos subsidiários do PT – promoveram, no entanto, essa perturbação à virtude, apesar dessa promoção do perturbado em virtuoso coincidir totalmente com aquela empreendida pelos meios de comunicação mais reacionários.
Aqui, estamos examinando essa questão apenas como reflexo da derrocada ética geral na época do capitalismo monopolista – e o fato do Brasil ser um país periférico no sistema, mostra como tanto de tudo isso constitui importação, contrabando ideológico.
Porém, mesmo assim, é necessário entrar no campo político: para que serve essa pauta, supostamente “de esquerda”, que não se distingue da pauta dos veículos principais da direita?
Serve para que parcelas do povo sejam freadas, em seu impulso de mudanças, por uma pauta estreita, individualista, que impede essas pessoas de participarem da luta geral da sociedade, vale dizer, da luta do país e do povo brasileiro.
Serve para fazer com que outras parcelas, ainda maiores, do povo, assustadas, preocupadas com sua família, se abriguem sob o pavilhão de igrejas mais sectárias do que evangélicas – para gáudio de alguns picaretas, que manipulam os sentimentos religiosos, e o desespero dos fiéis, para explorá-los.
Serve, também, para garantir ao deputado Bolsonaro um certo eleitorado entre o povo. E paremos por aqui, nos serviços que essa “esquerda” presta à direita, pois já é suficiente para o que quisemos demonstrar.
OPOSIÇÃO
Voltemos à questão mais geral.
O capitalismo monopolista, o capitalismo financeiro, o imperialismo, existe nos países centrais desde os fins do século XIX, com especial acirramento após a virada para o século XX.
Por que, então, não houve uma derrocada moral muito antes da atual?
Por que, quando o nazismo fez a sua tentativa de dominar o mundo, foi possível contar com alguns países imperialistas – a Inglaterra e os EUA – para derrotar a barbárie?
Por que os massacres no Vietnã pareciam indignar muito mais – inclusive à mídia norte-americana – do que os massacres no Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria?
Que fenômeno faz com que bombardeios sobre a população civil passem a ser tratados como tática de guerra – e não mais como crime de guerra?
Como é possível que a tortura e o assassinato a sangue frio – há muito considerados inaceitáveis – agora apareçam, em seriados norte-americanos, como algo que faz parte de uma rotina quase burocrática?
Como se explica que até os nazistas tenham escondido os seus crimes, enquanto, agora, os norte-americanos ostentam os seus?
Há, naturalmente, componentes específicos, em cada caso.
Por exemplo, no enfrentamento ao nazismo, os representantes políticos do capitalismo monopolista, que dominaram o governo dos EUA desde o fim do governo Wilson, durante as administrações Harding, Coolidge e Hoover, haviam sido afastados, com a vitória de Franklin Roosevelt contra Hoover, na eleição de 1933, realizada em meio à mais profunda crise até então acontecida nos EUA – e no mundo capitalista.
Este é um aspecto que já abordamos algumas vezes (por exemplo, em Roberto Simonsen: a indústria e o desenvolvimento do Brasil). Mas, talvez, ainda precise ser mais enfatizado.
O plano de Roosevelt, aprovado pelo Congresso dos EUA em 1933, através do National Industrial Recovery Act (NIRA) significava uma ampla regulação e planejamento estatal sobre todos os setores da economia, para frear, e, em alguns casos, destruir os monopólios privados.
A oposição republicana – os representantes políticos do capitalismo monopolista e sua mídia – acusaram o NIRA, exatamente, de criar “monopólios” e “cartéis”.
Uma inversão que, na época, os rooseveltianos não conseguiram desmontar amplamente.
Por fim, a lei foi declarada inconstitucional em 1935, pela Suprema Corte, porque, supostamente, transgrediria “a separação de poderes”, por conceder ao presidente autorização para reorganizar amplamente a economia, inclusive estabelecer margens de lucros e níveis salariais.
Porém, como escreveu Roberto Simonsen, o NIRA tinha “o intuito de proporcionar trabalho aos desempregados, incrementar o poder aquisitivo das massas, estabelecer as relações industriais e abolir a concorrência desleal, mediante atos de planejamento industrial”.
Para Roberto Simonsen, a anulação do NIRA somente não levou a economia norte-americana outra vez para o fundo do poço porque “pouco tempo depois foi a indústria americana mobilizada, dentro de um planejamento de guerra”.
ALICERCES
Por que levantamos essa questão, no que se refere aos EUA?
Somente para demonstrar, mais uma vez, como foi a oposição ao capitalismo monopolista e às suas consequências – a catástrofe que eclodiu em 1929 – que fez com que, na metrópole imperialista, não houvesse uma degringolada ética muito antes da atual.
Porém, é evidente que a referência mundial, no campo ético, a partir de 1917, foi a URSS.
Mesmo depois que Kruschev atacou Stalin – e, com isso, toda a trajetória da construção do socialismo em seu aspecto moral – a URSS continuou sendo a referência: um país sem miséria, sem desemprego, em que as diferenças de classe estavam sendo abolidas. Como escreveu Cláudio Campos, o surpreendente é que os alicerces do socialismo na URSS estivessem tão bem construídos, que, depois do ataque de Kruschev, ele tenha, ainda, durado 40 anos.
Mas foi o que aconteceu.
Alguns autores lembram, nesse aspecto da ética revolucionária, as revoluções nos países periféricos após a II Guerra, em especial, a Revolução Cubana – e, especialmente, a obra de Che Guevara.
Com efeito – e poderia ser lembrada, também, a China da época de Mao Tsé-Tung.
Mas é evidente que Cuba, e a obra do Che, a China, e a obra de Mao – não importam, aqui, os equívocos em matéria econômica ou política – estavam, do ponto de vista ético, dentro do mesmo referencial que a URSS até o XX Congresso do PCUS (ou, até mesmo, parcialmente, depois).
Tanto Che (v. Apontamentos de Che sobre um livro famoso) quanto Mao fizeram, precisamente, a crítica ao krushevismo, percebendo sua essência contrarrevolucionária.
(CONTINUA)