“Com uma simples portaria, o governo está desconstruindo todo um conceito legal do que seria o trabalho escravo. Voltamos à situação de dois séculos atrás, quando o trabalho escravo exigia restrição à liberdade de locomoção, ou seja, tem que ter senzala, tronco, grilhões, chicote. Então esse é um absurdo jurídico, uma monstruosidade”, afirmou o procurador-geral do Ministério Púbico do Trabalho (MPT), Luiz Eduardo Bojart, nesta quarta-feira.
O repúdio à Portaria nº 1.129/17, publicada pelo governo Temer, segunda-feira, 16, que libera o trabalho escravo ao limitar a fiscalização, dificultar as denúncias e ações de flagrante e blindar os empresários praticantes do crime, ocultando seus nomes da ‘Lista Suja do trabalho escravo’, vem aumentando em diversas setores da sociedade.
As novas regras de Temer compõem pleito antigo da bancada ruralista no Congresso, e foi editada às vésperas da votação de denúncia contra o presidente na Câmara dos Deputados, numa clara ação de moeda de troca para agradar escravagistas e beneficiar o presidente (ver matéria sobre a votação na CCJ desta quarta na página 3).
Um dos que comemoraram a medida foi o ministro da Agricultura, Blairo Maggi: “Para mim não é um retrocesso. Para mim é uma afirmação de como as coisas devem acontecer daqui para frente”. “Ninguém” quer ou deve ser favorável ao trabalho escravo, mas “não é justo” alguém ser penalizado por “questões ideológicas ou porque o fiscal está de mau humor”, disse o representante da casa grande.
REAÇÕES
Logo após o governo editar a medida, o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) e a Procuradoria Geral da República, Associações de Juízes e Advogados do Trabalho, Sindicato dos Auditores Fiscais e artistas, se manifestaram pedindo a revogação da Portaria, considerada ilegal e inconstitucional.
Na terça-feira, 17, o MPT e o MPF enviaram a Michel Temer uma carta pedindo a revogação da Portaria, que altera o conceito de trabalho escravo, pois anula “condições degradantes de trabalho” e condiciona essa situação apenas à “privação da liberdade de ir e vir”. Para os órgãos que condenaram a medida, essa alteração contraria tanto o Código Penal quanto as convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Na lei brasileira, trabalho escravo é “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, ou seja, as condições degradantes já bastam, afirmam os procuradores.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, na quarta-feira, 18, o procurador-geral do MPT, Luiz Eduardo Bojart, ressaltou que “com uma simples portaria, o governo está desconstruindo todo um conceito legal do que seria o trabalho escravo. Voltamos à situação de dois séculos atrás, quando o trabalho escravo exigia restrição à liberdade de locomoção, ou seja, tem que ter senzala, tronco, grilhões, chicote. O conceito moderno inclui condições análogas à escravidão, condições de trabalho degradantes. Então esse é um absurdo jurídico, uma monstruosidade. Estamos perplexos”, disse o chefe do MPT.
Ainda na entrevista, Bojart afirma que a medida não traz nada de positivo: “O que eu vejo é uma pequena parcela do empresariado brasileiro sendo favorecida”, diz.
O procurador-geral também falou sobre a decisão do governo de esconder os nomes dos empresários flagrados cometendo trabalho escravo, antes divulgados na ‘Lista Suja’. Com a Portaria, os nomes só serão divulgados com após determinação “expressa” do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira: “A censura imposta à divulgação da chamada ‘lista suja’ é flagrantemente uma subtração à cidadania brasileira, em benefício do mercado dos escravagistas”. “A lista é uma informação extremamente relevante para as cadeias produtivas, e a portaria é expressa em afirmar que a relação das empresas não será divulgada sem autorização do ministro. É uma regra que só favorece os escravagistas, que vão se esconder sob critério arbitrário do ministro do Trabalho, sem nenhum pressuposto técnico”, denunciou.
O documento assinado pelo MPT e pelo MPF foi entregue ao ministro do Trabalho pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que encaminhou também um ofício rejeitando a Portaria (ler matéria abaixo).
Na carta recomendação, em contraponto à caracterização de trabalho escravo apenas como “cerceamento da liberdade”, os órgãos ressaltam que “o art. 149 do Código Penal prevê para fins legais o conceito de trabalho em condições análogas a de escravo, como sendo a submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, assim como a submissão a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Diante dos argumentos, o MPT e MPF pedem a revogação da Portaria, por “vício de ilegalidade”, e fixam ainda um prazo de dez dias para o governo responder à recomendação.