(HP 24 e 26/04/2013)
O jurista Izaac Pereira Dutra Filho é um dos mais cultos e sagazes homens do Direito que o nosso país tem hoje em dia. Não é apenas a nossa opinião, mas a de renomados professores que consultamos a respeito da mesma questão abordada no texto de Pereira Dutra Filho, que hoje publicamos: a confusão feita na Ação Penal 470 – o processo do suposto “mensalão” – em torno da chamada “teoria do domínio do fato”.
Destacamos, por nossa conta – ou seja, independente do autor do texto – que a “teoria do domínio do fato” tem duas versões. A primeira, abertamente nazista, foi elaborada por Hans Welzel em 1939. A segunda, foi desenvolvida por Claus Roxin. Estranhamente, para aqueles pouco afeitos aos problemas teóricos – isto é, filosófico-formais – do Direito, este segundo desenvolvimento tem um sinal ideológico oposto ao do primeiro: foi a necessidade de punição jurídica aos nazistas que fez com que Roxin fizesse o seu aporte.
Alguns autores expressaram esse problema histórico, transportando-o – em nossa opinião, equivocadamente – para a própria teoria ou para o seu desdobramento/desenvolvimento. Por exemplo: “A noção de domínio do fato é contemporânea ao finalismo de Hans Welzel (1939), que propugnava ser autor, nos crimes dolosos, aquele que detém o controle final do fato. (…) Antes de Claus Roxin, porém, não havia propriamente uma teoria, senão um cipoal de postulados de conteúdos amiúde contraditórios e raquíticos, que seriam sistematizados pelo catedrático de Munique”, etc. (cf. Guilherme Guimarães Feliciano, “Autoria e participação delitiva. Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva“. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 745, 19 jul. 2005).
Roxin foi o autor mais citado no STF por ocasião do julgamento da AP 470. Observa Pereira Dutra Filho: “nada estranho, infelizmente, que, nos últimos tempos o STF abandone a lei e crie categorias jurídicas a bel-prazer. No entanto, fazê-lo em nome de Roxin foi ainda mais despropositado“.
Pois, justiça se lhe faça (!), Claus Roxin jamais pretendeu que sua teoria substituísse as provas na condenação dos réus. Comenta o jurista brasileiro: “Não deixa de ser irônico, dado o seu prestígio internacional e, em particular no Brasil, que Claus Roxin seja citado muitas vezes para fundamentar o afastamento da aplicação da lei penal brasileira. Roxin não propõe um direito penal contra legem, ou seja, um direito penal que contrarie a lei penal alemã. Não pretendemos (…) fazer a defesa das teses de Roxin, estamos apenas realçando sua fidelidade à lei. No caso dele, da lei alemã. No nosso, deve, ou pelo menos deveria ser, a lei brasileira“.
Pois, a tragédia, do ponto de vista da filosofia do Direito, nota Pereira Dutra, é que, no Brasil, a teoria do domínio do fato é dispensável, pois não existem no arcabouço jurídico brasileiro os problemas que essa teoria se propôs a resolver no seu correspondente alemão.
O que não impediu, certamente, que expressões retiradas do “Tratado” de Roxin fossem invocadas a torto e a direito, no STF, como “verdadeiras palavras mágicas“, apesar de sua ausência de significado no caso concreto (exceto, acrescentamos nós, o significado de condenar sem provas, o significado de substituir a lei e o Direito pela mera perseguição política).
No fundo, como diz Pereira Dutra, “trata-se da singela questão de que, em uma Democracia, o Parlamento faz a lei e o Judiciário a aplica. Vivemos no Brasil um momento em que abundam teorias e trabalhos acadêmicos para que juízes não se pautem mais pela lei“.
Assim, não espanta que o Direito brasileiro tenha sido abandonado – substituído por uma ficção de Direito alemão que não existe aqui nem na Alemanha. Nas palavras de Pereira Dutra: “Causa espanto a falta de referência ao nosso Código Penal (CP) no julgamento do ‘mensalão’. Nosso CP disciplina de forma diferente do CP alemão a matéria do concurso de pessoas. No entanto, ele disciplina. Não temos que importar o direito penal alemão para substituir nossa disciplina legal. Não é correto invocar teorias jurídicas para modificar a disciplina legal pátria, muito menos em temas de Direito penal, onde o princípio da legalidade avulta em importância“.
A questão, lembra o nosso jurista, fora já resolvida por um de seus mais ilustres antecessores, o ministro Nelson Hungria, em seus “Comentários ao Código Penal”.
“A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito.”
C.L.
IZAAC PEREIRA DUTRA FILHO*
1. O presente texto pretende demonstrar que, no julgamento do chamado “mensalão”, o STF cometeu inúmeros equívocos ao manipular a chamada teoria do domínio do fato.
2. Expressões como domínio do fato (Tatherrschaft), domínio funcional do fato (funktionelle Tatherrschaft), domínio final do fato (finale Tatherrschat), homem de trás (Hintermann), autor de escritório (Schreibtischtäter) aparatos organizados de poder (organisatorische Machtapparate) foram invocadas como solução mágica para as dificuldades probatórias e teóricas surgidas no julgamento.
3. Com base no próprio Claus Roxin, que foi o autor mais citado no julgamento, esclarecemos o alcance de todos esses institutos. Servimo-nos dos Tomos I e II do Tratado de ROXIN. O primeiro na edição de 2006 e o segundo na edição de 20031, as mais recentes.
4. A tese central aqui defendida é a seguinte: ao contrário do que foi feito no julgamento do “mensalão”, a teoria do domínio do fato, tanto em ROXIN, como entre aqueles que primeiramente começaram a construir a base dessa teoria, não é um critério de afirmação da responsabilidade penal de alguém. Tal teoria somente entra em cena depois de afirmada a responsabilidade penal com base nas provas e nos critérios de imputação. Vencida essa primeira etapa, ela ingressa para esclarecer se o imputado será punido como autor ou como partícipe. E aqui entra a questão central da importância da teoria do domínio do fato no direito penal alemão. Lá, quando se afirma que alguém é partícipe, necessariamente ele terá direito a uma redução da pena. Se se afirma que o imputado é autor, não terá direito a redução da pena. Essa redução é significativa e pode mudar substancialmente a situação do acusado, por exemplo, em um assassinato, onde a pena é de prisão perpétua. Em ROXIN, “domínio do fato” é um critério da afirmação da autoria e de diferenciação da participação. Sabemos que no nosso Código Penal, partícipe ou executor são somente formas de adequação típica. Entre nós, nada impede que um partícipe tenha pena maior do que a pena do próprio executor e este, por sua vez, tenha pena menor do que a de um partícipe. Do ponto de vista do nosso ordenamento jurídico, a teoria do domínio do fato carece de importância, se for considerada em sua real significação e não da forma distorcida como se deu no julgamento da ação penal 470.
5. Repetindo, a teoria do domínio do fato não veio para responder se uma pessoa será ou não responsabilizada penalmente. A afirmação dessa responsabilidade penal deve ser extraída dos sistemas de imputação já conhecidos: causalismo, finalismo ou funcionalismo. É sintomático que ROXIN trate a teoria do domínio do fato somente no Tomo II do seu Tratado, dedicado às formas especiais de aparecimento do fato punível. Os critérios de imputação da responsabilidade penal são tratados no Tomo I, dedicado aos fundamentos e estrutura do fato punível.
6. Para começar, é preciso entender a disciplina do assunto no Código Penal (CP) alemão. Na lei alemã, aquele que induz outrem a entrar em uma residência e dali subtrair bens móveis é INDUTOR (Anstifter) de um crime de furto; o induzido que entra na residência e dali subtrai os bens é AUTOR (Täter) de um crime de furto; e um terceiro que tenha emprestado a gazua para a prática do crime é um PARTÍCIPE (Gehilfe) do crime de furto2. Nesse exemplo, de acordo com disposição expressa do CP alemão, somente o partícipe que emprestou a gazua terá direito a uma redução da pena. Por outro lado, o indutor, embora com rigor técnico seja partícipe, não tem direito à referida redução da pena. E o autor, evidentemente, também não terá direito a redução da pena.
7. No exemplo do furto, somente é autor aquele que entrou na residência e dali subtraiu os bens móveis (praticou o fato por si mesmo “selbst begeht“). No entanto, o CP alemão prevê, ao lado da autoria imediata (praticar o fato por si mesmo, ou seja, em linguagem simples, colocar a mão na massa e executar sozinho o tipo penal) mais duas formas de autoria; portanto, sem direito à redução de pena. As duas são nossas conhecidas: autoria mediata e coautoria. O autor mediato se serve de uma pessoa isenta de responsabilidade penal para cometer o crime, uma criança, um doente mental etc. O autor mediato comete o fato punível através de outrem (die Straftat durch einen anderen begeht). Aqui, na autoria mediata, o executor é um mero instrumento (Werkzeug) da vontade do autor. Já na coautoria, o fato é cometido em comum por mais de uma pessoa (begehen mehrere die Straftat gemeinschftlich). Na coautoria, apesar de vários os intervenientes, todos estão em pé de igualdade, seja do ponto de vista subjetivo (não existe preponderância da vontade criminosa de um sobre a vontade dos demais), seja do ponto de vista objetivo (todos colocam a mão na massa). Se dois homens, cada um com uma arma, ameaçam uma mulher e os dois realizam o ato sexual, são coautores do crime de estupro; ainda são coautores, se apenas um deles ameaça com a arma e somente o outro realiza o ato sexual. Nessa última situação, ambos colocam a mão na massa, haja vista que o tipo penal do crime de estupro contém as duas condutas: grave ameaça e ato sexual.
8. Portanto, o CP alemão define três formas de autoria para as quais não caberá redução da pena. Traz ainda um conceito de participação, para o qual não caberá a referida redução da pena que é a indução (Anstifung)3. No CP alemão, todos os demais partícipes têm direito à redução da pena. No citado exemplo de ROXIN, é o caso daquele que emprestou a gazua. O indutor, a rigor, também é partícipe, ele não entra nas três formas de autoria acima indicadas. O CP alemão não diz que o indutor é autor, diz que ele é punido como se autor fosse. Em síntese, apesar de ser um partícipe, com relação ao indutor, a lei alemã, de forma excepcional, não permite a redução da pena.
8.1. Síntese do assunto na lei alemã. A autoria assume três modalidades: a.1) autoria imediata, quem executa o crime por si mesmo e sozinho coloca a mão na massa: efetua o disparo, coloca o veneno, desfere as facadas, oferece ou promete a vantagem ao funcionário público etc; a.2) autoria mediata, o autor se vale de uma pessoa que executa o crime como mero instrumento (o executor atua sem consciência do que faz ou atua mediante coação); a.3) coautoria, todos os intervenientes praticam o fato de forma comum. Para todas essas três formas de autoria, a lei não admite a referida redução da pena. A participação (Teilnahme) assume, por sua vez, duas formas: b.1) a indução (Anstifung) e b.2) qualquer outra forma de auxílio (Beihilfe). O primeiro partícipe (indutor) não tem direito à redução da pena; enquanto o segundo partícipe tem direto à redução da pena.
8.2. Cabe adiantar uma explicação. Tanto o autor mediato (aquele que faz incidir em erro ou coage o executor) quanto o indutor poderiam ser considerados homens de trás (Hintermann), mas essa expressão deve ser reservada somente para o autor mediato. O fato é que o indutor tem que realizar um processo de convencimento. Depois de convencido, o induzido passa a agir por conta própria, ele não é um mero instrumento da vontade do homem de trás, como seria o caso daquele que falsifica um documento porque o homem de trás aponta uma arma para sua cabeça. Ou seja, homem de trás (Hintermann) é uma expressão que deve ser reservada para os casos de autoria mediata. Como adiante veremos, ROXIN irá propor a expressão “autor de escritório” (Schreibtischtäter) como uma espécie do gênero Hintermann (homem de trás). Tanto o Hintermann como Schreibtischtäter se referem somente aos casos em que o executor age como mero instrumento. Essas duas expressões foram lançadas de forma totalmente assistemática no julgamento da ação penal 470.
8.2.1. Embora tanto o indutor como o autor mediato não tenham direito à redução de pena, essa distinção é fundamental para a compreensão do tema e ganhará relevo quando da análise dos chamados aparatos organizados de poder.
9. Portanto, já entendemos a disciplina do assunto no CP alemão. Como de praxe, no entanto, isso não basta. A regra de impedir a redução da pena para quem seja autor, em alguns casos concretos, se mostra muito rigorosa.
10. Vamos a um caso clássico do direito alemão. No ano de 1940, uma mulher, para ocultar o que ela entendia ser a desonra de uma gravidez fora das regras da sociedade de então, ao acabar de dar à luz, insta, induz sua irmã a matar o recém-nascido. Atendendo ao pedido da parturiente, a irmã teria afogado a criança em uma banheira (Badewannen-fall – caso da banheira). A irmã que teria afogado a criança pratica o fato ela mesma (selbst begeht), portanto seria autora e não teria direito à redução de pena que, à época, era a pena de morte. No CP alemão atual, 1975, a pena é de prisão perpétua para esses casos4.
11. Para mitigar o rigor da lei em casos como o da banheira, surgiu na Alemanha, já no final do século XIX, a chamada teoria subjetiva da autoria. Como o próprio nome diz, ela contrapõe ao dado objetivo (no nosso exemplo, afogar a criança) um dado subjetivo (ao afogar a criança, a autora não queria matá-la por vontade própria, em interesse próprio, mas para atender ao pedido da irmã). Com esse dado subjetivo, poder-se-ia, e, de fato, foi assim julgado, considerar aquela que teria afogado a criança não como autora e sim como partícipe, passando a ter direito a uma substancial atenuação da pena.
12. Segundo ROXIN, em sua primeira variante, a teoria subjetiva adota o critério da vontade de autor. Autor seria aquele que age com “vontade de autor” („Täterwillen” [animus auctoris]) e o partícipe, seria quem age com “vontade de partícipe” („Teilnehmerwillen” [animus socci]).
13. Uma segunda variante da teoria subjetiva é a teoria do interesse. Autor seria quem agisse com interesse próprio no fato e partícipe seria aquele que agisse em interesse de outrem, ou seja, sem interesse próprio. Foi essa segunda vertente a usada pelo Tribunal do Império no caso da banheira para, não obstante a autoria direta (autoria imediata com o ato de afogar a criança), mitigar a reprimenda e afastar a pena de morte. Entendeu-se que aquela que afogou a criança não agiu em interesse próprio, mas no interesse da parturiente.
14. Já a jurisprudência do Tribunal Federal Alemão (que substituiu o Tribunal do Império) é oscilante, como afirma ROXIN. Embora em geral entenda que quem realiza o tipo com as próprias mãos seja autor e não mero partícipe5, há exceções. De grande repercussão foi o chamado caso Staschynkij. Ele seria um agente soviético que, a mando do serviço secreto soviético, teria matado dois exilados que se encontravam na então Alemanha Ocidental. O tribunal o considerou apenas partícipe. O mesmo tratamento alguns tribunais alemães adotaram em julgamentos de criminosos de guerra nazistas. Considerou-se que nazistas executores de crimes violentos teriam agido em interesse alheio e subordinados à vontade alheia.
15. É dentro dessa problemática que ROXIN retrabalha a teoria do domínio do fato para se contrapor a essas concepções subjetivas (teoria da vontade de autor e teoria do interesse). Assim como suas rivais, a teoria do domínio do fato não surge para fundamentar a imputação da responsabilidade penal. Em linguagem mais simples, ela não surge para afirmar se alguém é culpado ou inocente, como equivocadamente fez o STF. Ela serve somente para dizer, depois de analisada a prova e constatada a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, se o culpado será tratado como autor ou partícipe. Ela não tem nada a ver com a análise da prova nem com a afirmação da existência de responsabilidade penal.
16. ROXIN é claro: Hoje essencialmente duas concepções disputam acerca da delimitação entre autoria e participação: a teoria do domínio do fato, dominante na literatura6, e a teoria subjetiva da participação7. (grifo no original) p. 10.
17. ROXIN expõe o que seria o critério do domínio do fato:
Tem o domínio do fato e é autor quem, na realização do delito, através da sua influência decisiva sobre o acontecimento surge como peça chave, como figura central p. 14. (grifo no original)8.
18. Registramos que não se trata de ser figura central na realização do tipo penal abstrato (homicídio, por exemplo), mas figura central para o evento, o acontecimento (Geschehen). Trata-se de ser figura central no acontecimento concreto: efetuar os disparos, afogar a criança na banheira, colocar o veneno etc.
19. A concretização desse critério reitor é feita em primeiro lugar pelo próprio legislador. Assim, para ROXIN, as três formas de autoria definidas no CP alemão vão corresponder às três formas de domínio do fato. A saber.
19.1. Na autoria imediata, direta e individual (selbst begeht), o domínio do fato (Tatherrschaft) surge como o domínio da ação (Handlungsherrschaft). Aquele que entra na residência e dali subtrai objetos tem o domínio do fato, por ter o domínio da ação.
19.2. Na autoria mediata, o autor tem domínio do fato por ter domínio da vontade (ele domina a vontade daquele que é um mero instrumento, por exemplo, usar para cometer um crime um doente mental que não tem capacidade de entendimento e de determinação). Aqui, na autoria mediata, o domínio do fato toma a forma de domínio da vontade (Willensherrschaft).
19.3. Na coautoria, o domínio do fato surge como domínio funcional (funktionelle Tatherrschaft). No exemplo acima de coautoria (um ameaça e outro pratica o ato sexual), o fato total, o acontecer total não é dominado por nenhum dos dois isoladamente, cada um domina a sua parte. No entanto, o fato total (estupro), sem um deles, não acontece. Ou seja, a empreitada criminosa não funciona. Da mesma forma que um assalto só funciona se cada um dos dois assaltantes fizer a sua parte, um ameaça as pessoas com uma arma enquanto o outro, desarmado, subtrai os valores. Cada um deles tem o domínio somente da sua ação, da sua parte (ameaçar ou subtrair). Pode-se considerar, entretanto, que cada um tem o domínio funcional do fato total. Sem um deles, o crime não funciona como planejado, não acontece.
20. Em síntese, em ROXIN, domínio do fato é gênero do qual são espécies o domínio da ação (autoria direta, imediata), o domínio da vontade (autoria mediata) e o domínio funcional do fato (coautoria). Vemos que essas expressões, ao contrário do que se deu no julgamento do “mensalão”, têm significados bastante concretos. Elas se referem aos dispositivos legais do CP alemão. E, longe de remédio para todos os males, significam que aquele que tem o domínio da ação, ou o domínio da vontade ou o domínio funcional do fato são autores e não meros partícipes, o que, ainda que sem essa nomenclatura, já foi dito pelo CP alemão9. Com essa formulação, ROXIN vai refutar as soluções do Tribunal do Império e do Tribunal Federal para casos como os da banheira.
21. Cabe agora um parênteses para a análise de outra expressão ventilada no julgamento. Trata-se da expressão domínio final do fato (finale Tatherrschaft) criada por Hans Welzel em 1939. Mesmo com todo o subjetivismo que caracteriza o pensamento finalista de WELZEL, o sentido desse conceito não tem relação com a forma extremamente vaga como foi invocada no julgamento. ROXIN cita WELZEL: “Não uma vaga vontade de autor, senão um efetivo (wirkliche) domínio final do fato10 é o critério essencial do domínio do fato”. E ainda “Assim possui o domínio do fato aquele que de forma final e consciente conduz sua resolução de vontade à execução”. Portanto, em WELZEL, não basta “resolução de vontade” ela tem que se materializar em execução, realização, implementação (Durchführung).
21.1. Ainda assim, ROXIN critica o subjetivismo de WELZEL e anota que seu conceito não contribui para uma efetiva diferenciação entre autoria, indução e participação. Não estranha, portanto, a crítica de ROXIN ao extremo subjetivismo do julgamento da ação penal 470 quando de sua recente visita ao Brasil. O STF foi muito mais subjetivista que WELZEL11.
21.2. De fato, nem Welzel é tão subjetivo quanto foi o STF. A ação é uma síntese inseparável de momentos objetivos e subjetivos[…]12. Por isso o problema da coautoria somente pode ser discernido por uma indagação cuidadosa de todo o complô delitivo e do grau de participação objetiva e subjetiva de todos os partícipes, mas não através de fórmulas com base em lemas (grifamos)13.
21.3. Os lemas14 que Welzel critica são exatamente os conceitos subjetivistas de autoria como “vontade de autor”, “querer o fato como próprio” etc. Welzel entende acertada uma decisão do Tribunal Federal vazada nos termos a seguir.
O giro corrente, coautor quem quer o fato como próprio, é equivocado. Esta direção de vontade não é um “fato” interior que o juiz dos fatos possa comprovar de modo que tenha caráter obrigatório. Trata-se, antes de tudo, de um juízo valorativo15. Por isso resulta um ponto de apoio essencial a determinação de que, em que medida, o partícipe codomina o transcurso do acontecer, de maneira que também em forma considerável processo e resultado dependem de sua vontade (em negrito, grifo nosso; itálico e aspas, no original)16.
21.4. Fica evidente que, também em Welzel, domínio do fato não diz respeito à teoria das provas e não é critério de imputação.
22. Vamos agora procurar entender outra expressão que surgiu no julgamento da Ação Penal 470, os “aparatos organizados de poder” (organisatorische Machtapparate).
22.1. Como vimos, em ROXIN, nos casos de autoria mediata (o homem de trás usa o homem da frente como mero instrumento) o domínio do fato toma o aspecto de domínio da vontade. Exemplos de autoria mediata: aquele que coage alguém, ou utiliza um doente mental, ou induz alguém a erro17. Para estas situações, como visto, o CP alemão utiliza a expressão “wer die Straftat durch einen anderen begeht” (quem comete o fato punível através de outrem). Ou seja, o executor é um simples instrumento (Werkzeug) da vontade do homem de trás (Hintermann), daí a expressão domínio da vontade (Willensherrschaft). Em todas essas situações de autoria mediata, o homem de trás é considerado pelo CP alemão como autor e não mero partícipe, e, sendo autor, não terá direito à redução de pena. Em se tratando de homicídio, ele terá a pena de prisão perpétua, nem mais, nem menos18.
22.2. Sabemos ainda que o indutor, apesar de tecnicamente ser partícipe, por força de previsão expressa do CP alemão, recebe a pena de autor, ou seja, não tem direito à redução da pena. Portanto, o indutor não tem como escapar, em caso de assassinato, da prisão perpétua.
22.3. A relação de indução exige alguém que induza e que alguém que seja induzido. Ainda que seja por telefone, por e-mail, por interposta pessoa ou pessoalmente, o indutor tem que ter contato com a pessoa alvo de seu intento de indução. Por outro lado, nunca se pode garantir que aquele a ser induzido aceitará a empreitada. Mesmo um matador de aluguel poderá não concordar com o valor da paga ou pode simplesmente entender que a empreitada é muito arriscada. É por isso que tem sentido falar-se em tentativa de indução. O CP alemão não pune a mera tentativa de auxílio material em nenhum crime, mas pune a tentativa de indução nos crimes mais graves, não a punindo nos crimes menos graves19. Na lei penal alemã, aquele que envia o veneno pelo correio para que terceira pessoa o coloque na refeição da vítima, não será punido se a correspondência for interceptada pela polícia. Já aquele que tenta induzir alguém a assassinar a vítima é punido, mesmo que o induzido não aceite a proposta20. No nosso CP, nenhum dos dois é punido21.
22.4. Essa relação entre indutor e induzido não existe quando se trata de aparatos organizados de poder. Quando o chefe de um aparato de poder resolve que alguém deva ser assassinado, ele não precisa induzir alguém. A própria estrutura de poder se encarrega da execução do crime. O executor aqui, como bem salientou o ministro Ricardo Lewandowski, é um anônimo, uma pessoa sem identidade, sem RG.
22.5. Dentro de uma estrutura organizada de poder, por um lado, não há relação de indução; por outro lado, o chefão não pratica o crime por si mesmo e nem age em coautoria. Além disso, não está enquadrado nos casos clássicos de autoria mediata. Dessa forma, aquele que, dentro de uma estrutura hierarquizada, dá a ordem para o crime, teria, a princípio, direito à redução da pena.
22.6. ROXIN resolve esse problema transformando essa situação do aparato organizado de poder em uma nova modalidade de autoria mediata, em nova modalidade de domínio da vontade. O que temos aqui, segundo ROXIN é “Die Willensherrschat kraft organisatorischer Machtapparate (O domínio da vontade por força de aparatos organizados de poder)”. Lembro que “domínio da vontade” é expressão reservada por ROXIN para os casos de autoria mediata. É disso simplesmente que se trata. Não temos com o conceito de aparatos organizados de poder um remédio para as encruzilhadas da prova, muito menos uma responsabilidade penal objetiva ou pela conduta de vida.
22.6.1. No nosso exemplo, o chefão não será responsabilizado pelo homicídio pelo simples fato de estar no topo da estrutura de poder. Como disse ROXIN, em entrevista concedida no Brasil e fazendo analogia ao caso FUJIMORI, o chefão tem que dar a ordem, e, consequentemente, existir prova no processo de que a ordem fora dada.
22.7. Tendo em vista a relevância desse aspecto, traduzimos um trecho:
O ’domínio organizacional’ é uma nova e independente forma de autoria mediata desenvolvida primeiramente por mim em 196322.
22.7.1. É interessante notar que a teoria foi criada em uma época em que nazistas ainda eram julgados na Alemanha. Com essa teoria se fechava o espaço para que mandantes de crimes nazistas viessem a ser tratados como meros partícipes, diante de eventual ausência de uma relação de indução entre mandante e executor. É bom ainda lembrar que, ao fundamentar autoria como o domínio do fato, ROXIN também se chocava com as concessões feitas pelos tribunais, que então consideravam executores de crimes do nazismo como meros partícipes, com base nas acimas referidas teorias do interesse e da vontade de autor. Para ROXIN, quem executa o fato tem o domínio da ação (Handlungsherrschaft), que é uma modalidade de domínio do fato, e, portanto, não se pode falar em participação e em redução da pena. E com a nova figura do aparato organizado de poder, quem mandou executar o crime, apesar de não ser indutor e de não está enquadrado nas modalidades até então admitidas de autoria mediata, passa a não poder ser beneficiado com redução da pena.
22.7.2. Referindo-se às formas de autoria mediata, diz ROXIN:
“Pode-se coagir o executor, pode-se enganá-lo ou, e essa era a nova ideia, servir-se de um aparato de poder que assegura, sem coação ou engano, o cumprimento da ordem, pois o aparato, enquanto tal, assegura a execução“23.
22.7.2.1 Aqui, ROXIN mostra como a situação do aparato de poder se diferencia das demais formas de autoria mediata, a coação e o engano24.
22.7.3. No trecho que agora trago à colação, ROXIN marca a diferença entre o aparato de poder e a indução (Anstiftung)25:
“O exemplo histórico que tinha em mente quando do desenvolvimento dessa forma de autoria mediata, era a tirania da nacional socialismo. Quando Hitler, Himmler ou Eichmann (…) ordenavam um assassinato podiam estar seguros de sua realização, porque – ao contrário do que se passa em uma indução – a eventual recusa por parte daquele que é instado a executar o fato não conduz a não realização do fato. O fato pode ser realizado por outro26. Com isso, autor mediato, na minha concepção, é todo aquele que tem à sua disposição a alavanca da engrenagem de um aparato de poder – ou detém um degrau da hierarquia – e através de uma instrução ou ordem pode praticar fatos puníveis com relação aos quais a individualidade do executor não é levada em consideração.“
NOTAS:
* Izaac Pereira Dutra Filho, Promotor de Justiça em Brasília/DF e Especialista em Ciências Penais (izaacpdf@gmail.com); com a colaboração de Alfredo de Pádua, advogado em Goiânia/GO (alfredodepadua@hotmail.com). Autorizada reprodução e divulgação, desde que mantida a fidelidade ao texto e a indicação da autoria e colaboração.
1Strafrecht, Allgemeiner Teil, Band I, 4., vollständig neue bearbeitete Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2006; Band II, 2003. Infelizmente são comuns distorções de pensamentos de autores estrangeiros, em particular do próprio ROXIN. Assim ao final consta um anexo, na sequência exata do texto no Tratado, sem excluir ou acrescentar nada, com seis parágrafos que nos dão a ideia exata do alcance da formulação de ROXIN quanto à teoria do domínio do fato. Tendo em vista a presença de pessoas com domínio do idioma alemão no meio jurídico, poder-se-á, quem entender que nossa tradução não está correta, corrigi-la. As críticas serão bem vindas. Por outro lado, com a transcrição direta, poupamo-nos de reproduzir os artigos do Código penal alemão, referentes ao tema da autoria e da participação, haja vista que ROXIN já o faz nos trechos do anexo. ANOTAMOS que as transcrições do texto original têm apenas a finalidade de comprovar nossa fidelidade ao pensamento de ROXIN. Portanto, sua leitura não é necessária para o entendimento do presente texto.
2Esse exemplo com o tipo penal do furto é de ROXIN e consta no anexo.
3Pode soar estranho que o indutor seja tecnicamente partícipe, dado que, na consciência comum a conduta de quem induz outrem a praticar um crime, a conduta do mandante, não raro, é mais reprovável do que a própria execução. Acontece que reprovabilidade de uma conduta nasce, tecnicamente, da conjugação da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. Em um direito penal do fato e não das subjetividades, o dado primordial é o fato, o acontecimento. Antes de serem considerados os aspectos pessoais, as motivações, a conduta de vida de cada interveniente, deve ser constatada a existência de um fato. A própria palavra alemã que ainda nos dias atuais designa o que nos chamamos de tipo, que é palavra Tatbestand, foi tradução inicial que os alemães fizeram da palavra latina corpus delicti. Diante do corpo de delito, do resultado objetivamente, materialmente considerado, por exemplo, o cadáver, a conduta de efetuar os disparos ou desfechar os golpes com a faca é o dado mais relevante. Ter contratado o matador de aluguel é algo secundário, do ponto de vista estritamente objetivo. Assim sendo, por outro lado, também na consciência comum, na linguagem corrente, “matar alguém” é algo diferente de “mandar matar alguém”. De fato, o nosso tipo do homicídio não tipifica “mandar matar alguém”, tipifica somente “matar alguém”. Assim, entre nós, a conduta do mandante não encontra adequação típica direta, imediata no art. 121 do nosso CP. Sua tipicidade decorre da existência de um tipo de extensão que é o art. 29 que diz que “todo aquele que concorre para o crime, incide nas penas a ele cominadas”. É nesse aspecto técnico, que fica claro no nosso CP, em que reside a pertinência da afirmação de que a conduta do mandante é acessória em relação à conduta do executor e, por conseguinte, o mandante é partícipe. Infelizmente não é somente para leigos que essas palavras são importantes. Na literatura jurídico-penal atual, no Brasil, reina a mais completa confusão. Autores de renome se levantam contra o que lhes parece ser um absurdo considerar que o mandante seria “mero” partícipe. No CP alemão, em que o partícipe tem necessariamente uma pena menor em relação ao autor, o adjetivo mero tem sentido. Entre nós ser participe ou ser autor (a rigor o nosso CP usa a palavra “executor”) é somente questão de adequação típica. Não se percebe que, por trás dessas sutilezas técnicas, existe uma opção legal pelo direito do fato em detrimento do direito penal de autor. O juiz penal somente deveria analisar a culpabilidade (categoria jurídica do crime na qual ingressam com maior relevo os dados pessoais de cada um dos intervenientes) depois de afirmada a existência de um tipo, de um fato, de um Tatbestand. Na teoria jurídica do crime, as palavras têm profundo componente ideológico. De forma recorrente, o CP alemão, por exemplo, deixa de lado as palavras “tipo legal” ou “crime”, palavras de caráter abstrato, e usa a expressão “fato punível” (Straftat). O próprio Ernst Beling, na sua famosa obra de 1906, em que concebe o tipo como algo abstrato (ele deixou de ver o cadáver para ver o homicídio), optou por permanecer com a palavra anterior (Tatbestand) e se limitou a indicar, entre parêntesis, o que seria a expressão abstrata: typus. Também aqui se trata, na escolha das palavras, de um reforço ideológico do direito penal do fato. No que diz respeito à tipicidade, que é a porta de entrada da responsabilidade penal, nosso CP e o CP alemão, assim como um direito penal do fato, dão primazia o homem da frente e não ao homem de trás. De forma simples, podemos dizer que o direito penal do fato realiza o postulado Iluminista de que ninguém deve ser punido pelo que pensa ou pela sua conduta de vida, mas, somente, pelo que fez, pelo fato que realizou. Essa concretização dos ideais Iluministas deveria ser também a tarefa de uma teoria jurídica do crime correta. Uma teoria do crime que somente busca interpretar, integrar e não reescrever a lei. O que temos assistido é a invocação de teorias jurídicas “pós-modernas”, que levam a que o Juiz julgue de acordo com sua particular visão de mundo, de acordo com seus valores pessoais, em detrimento da lei. É forçoso reconhecer, entretanto, que, na maioria das vezes, o que se passa com essas teorias “pós-modernas” é simplesmente uma incompreensão de penalistas famosos em outros países.
4Apesar de penas diferentes, a disciplina da autoria e da participação no atual CP alemão é, essencialmente, a mesma do Código penal do Império de 1871.
5Nunca é demais reafirmar que o adjetivo “mero” tem sentido no direito penal alemão onde o partícipe recebe, necessariamente, uma pena atenuada. Na sistemática do nosso CP, falar em “mero” partícipe é uma impropriedade. De acordo com a nossa disciplina legal, o partícipe pode receber pena maior do que o executor. Diz o art. 62 do nosso CP que a pena será agravada em relação ao agente que “executa o crime ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa”. Por outro lado, nosso art. 29 afirma: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Entre nós, ao contrário do CP alemão, o peso da intervenção, da contribuição, objetivamente analisada para a realização do evento (emprestar a arma versus efetuar os disparos) não vincula de forma necessária a pena. É bom lembrar também que a redução da pena no CP alemão não é pequena. Dispõe o art. 49, I do CP alemão que a pena de prisão perpétua pode ser reduzida a uma pena de 3 (três) anos de prisão. Podemos imaginar as batalhas homéricas travadas entre acusação e defesa sobre autoria e participação. Daí a importância de teorias como a do domínio do fato entre eles.
6Anoto que é dominante na literatura, mas não na jurisprudência que, ainda hoje, é oscilante, como afirma ROXIN.
7Heute streiten im wesentlichen nur noch zwei Auffassungen um die Abgrenzung von Täterschaft und Teilnahme: die in der Literatur herrschende Tatherrschaftslehre und die subjektive Teilnahmetheorie p. 10 (grifo no original).
8Die Tatherrschaft hat und Täter ist, wer bei der Deliktsverwicklichung durch seinen maâgeblichen Einfluâ auf das Geschehen als Schlüsselfigur, als Zentralgestalt erscheint.
9A expressão “domínio funcional” constou na própria denúncia nos seguintes termos: “Com a base probatória colhida, pode-se afirmar que José Genoíno, até pelo cargo partidário ocupado, era o interlocutor político visível da organização criminosa, contando com o auxílio direto de Sílvio Pereira, cuja função primordial na quadrilha era tratar de cargos a serem ocupados no Governo Federal. Delúbio Soares, por sua vez, era o principal elo com as demais ramificações operacionais da quadrilha (Marcos Valério e Rural) repassando as decisões adotadas pelo núcleo central. Tudo sob as ordens do denunciado José Dirceu, que tinha o domínio funcional de todos os crimes perpetrados, caracterizando-se, em arremate, como o chefe do organograma delituoso”.
10Nicht ein vager Täterwille, sondern die wikliche finale Tatherrschaft ist das wesentliche Kriteriun der Tatherrschaft.
11A relação do finalismo de WELZEL com o direito penal de autor do nazismo é inquestionável: “É interessante notar, como o faz Monika Frommel, a coincidência que se formara entre a teoria final da ação (de WELZEL), com seu conceito de injusto pessoal, e a teoria do tipo de autor, bem como a mesma preocupação eticizante que se agregava à norma penal e a substituição do conceito de bem jurídico pelo de valores ético-sociais… A subjetivação do injusto, na forma de injusto pessoal, passa a valer, por isso, como tipo de autor…” (Teoria do Injusto Penal, Juarez Tavares, 3ª edição, Del Rey, p. 152).
12Derecho Penal Aleman, Hans Welzel, Editorial Juridica do Chile, 4ª edição (correspondente à 11ª edição original de 1969), p. 132.
13Idem p.133.
14Alguns críticos do julgamento do STF afirmaram que o tribunal incorreu em responsabilidade penal objetiva. Acreditamos que não. O que aconteceu foi mais grave. A responsabilidade penal objetiva é aquela que prescinde do dolo (vontade de praticar o fato) e da culpa (negligência ao realizar um fato a princípio lícito), mas ela não prescinde de conduta, nexo e resultado. O que o STF fez foi exatamente o que Welzel, mesmo com todo seu subjetivismo, censura: julgar com base em lemas. E, nesse caso, ao lado de lemas com alguma pretensão e aparência jurídicas (as distorções em torno da teoria do domínio do fato), lemas de natureza totalmente política. Foi triste ver na nossa corte maior, como alguns votos, em quase sua inteireza, se transformaram em verdadeiros libelos de uma guerra santa contra a corrupção. Também não se tratou de um julgamento pela condução de vida, pois, em relação a alguns dos condenados, vários juízes tiveram que admitir ausência de dados que apontassem uma evolução patrimonial ilícita.
15Idem p. 133.
16Idem p. 133.
17Por exemplo, o homem de trás, sabendo que arma está carregada, estimula outrem a efetuar um disparo fazendo-o acreditar que a arma está descarregada e que tudo não passa de uma brincadeira.
18O rigor das penas no CP alemão e a possibilidade de redução da pena para o partícipe faz com que essa discussão entre ser autor ou partícipe ganhe na Alemanha uma importância que entre nós não existe. Pois que, no nosso CP, o Juiz pode aplicar pena maior para o partícipe e pena menor para o executor e vice-versa. Além do mais, sabemos que, entre nós, seja em razão da disciplina legal seja por ausência de provas quanto as circunstâncias do nosso art. 59 que poderiam majorar a pena, a pena final aplicada, em regra, fica na pena mínima ou bem próxima dela para todos os envolvidos.
19Como já vimos, no nosso CP, mesmo que se trate de um crime hediondo, a tentativa de indução não é punida se não houver início de execução.
20Nesse caso a pena, obrigatoriamente, será atenuada em relação à pena do crime consumado.
21“O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega ao menos, a ser tentado”.
22Die “Organisationsherrchaft” ist als eigenständige und “neue” Form der mittelbaren Täterschat zuerst von mir im Jahre 1963 entwickelt worden” p. 46.
23Man kann den Ausführenden zwingen; mas kann ihn täuschen; oder man kann – und dies war der neue Gedanke – über einen Machtapparat gebieten, der die Ausführung von Befehlen auch ohne Zwang und Täuschung sichert, weil der Apparat als solchen den Vollzug gewährleistet p. 46.
24Para ROXIN essas duas figuras, coação e engano, contemplam todas as possibilidades de autoria mediata. Para ele, no caso de ser usada como instrumento uma pessoa inimputável, não se dá uma terceira modalidade de autoria mediata. Trata-se, neste caso, de uma combinação, um misto de coação e engano.
25Das historische Beispel, das mir beider Entwicklung dieser Form der mittelbaren Täterschaft von Augen stand, war die nationalsozialistische Gewaltherrschaft. Wenn Hitler oder Himmler oder Eichmann (…) einen Totungsbefehl gaben, konnten sie seiner Ausführung sicher sein, weil– anders als bei der Anstifung – die etwaige Weigerung eines zur Ausführung Aufgeforderten nicht bewirken konnte, daâ die angeordenete Tat unterblieb. Sie wurde dann von einem anderen vorgenommen. Mittelbarer Täter ist dabei nach meiner Konzeption jeder, der and den Schalthebeln eines Machtapparat sitzt – einerlei, auf welcher Stufe der Hierarchie – und durch eine Anweisung Straftaten bewirken kann, bei denen es auf die Individualität der Ausführenden nicht ankommt. […] Es ist also die “Fungibilität”, die unbegrenzte Ersetzbarbkeit des unmigttelbaren Täters, die Hintermann die Tatausführung garantiert und ihn das Gescheh en beherrschen läât. Der unmittelbar Handelnde ist nur ein auswechselbares “Rädchen” im Getrieb des Machtapparates. Dies ändert nichts daran, daâ derjenige, der die Tötung am Ende mit eigener Hand ausführt, als unmittelbarer Täter sgtrafbar ist p. 47.
26Pode-se objetar que também no caso de indução a recusa de um primeiro induzido não impede que o indutor procure outro. É verdade. No entanto, nesse caso, o indutor terá que iniciar um novo processo de indução, levando inclusive em consideração características da personalidade do novo alvo da tentativa de indução e sem prévia garantia de sucesso (na indução, o homem de trás não tem o domínio da vontade do homem de frente). Em se tratando de aparato organizado de poder, o emissor da ordem está livre dessa tarefa que fica a cargo da estrutura de poder. Na indução, ao contrário, dependendo da particularidade da situação, o induzido pode até ser insubstituível e, com sua recusa, o crime não será realizado. No caso da banheira, por exemplo, no caso de recusa daquela que afoga a criança, talvez somente restasse à parturiente praticar o crime por si mesma ou até mesmo não praticá-lo.