
Jogadores cooptados por grupos criminosos recebiam até R$ 100 mil para provocar ações em campo para beneficiar apostadores. Mercado de apostas esportivas no Brasil pode movimentar até R$ 9 bilhões anualmente
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou que a Polícia Federal investigue o esquema de manipulação de apostas esportivas em partidas do Campeonato Brasileiro das séries A e B de 2022 e partidas do Paulistão e do Campeonato Gaúcho de 2023.
Jogadores cooptados por grupos criminosos recebiam até R$ 100 mil para provocar cartões amarelos e vermelhos ou realizar outras ações dentro de campo e, assim, ajudar os apostadores. Ao todo, sete jogadores estão na mira das autoridades.
“Diante de indícios de manipulação de resultados em competições esportivas, com repercussão interestadual e até internacional, estou determinando hoje que seja instaurado Inquérito na Polícia Federal para as investigações legalmente cabíveis”, disse.
Em abril, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e da Coordenadoria de Segurança Institucional e Inteligência (CSI), deflagrou a segunda fase da Operação Penalidade Máxima, a primeira etapa foi realizada em fevereiro e mirava apenas jogos da Série B.
Na última terça-feira (9), foram cumpridos 16 mandados de prisão preventiva e 20 de busca e apreensão foram cumpridos em 16 municípios de 20 Estados brasileiros diferentes, incluindo São Paulo e Rio.
Entre os jogadores investigados, que agora passam a ser réus no caso, está o zagueiro Eduardo Bauermann, afastado pelo Santos. Além de Kevin Lomonaco (Red Bull Bragantino), Gabriel Tota (Ypiranga-RS), Victor Ramos (Chapecoense),Igor Cariús (Sport), Paulo Miranda (Náutico), Fernando Neto (São Bernardo) e Matheus Gomes (Sergipe). Após o processo de instrução, os acusados irão a julgamento.

Os demais acusados são apostadores ou membros do grupo responsável pelas manipulações: Bruno Lopez de Moura, Ícaro Fernando Calixto dos Santos, Luís Felipe Rodrigues de Castro, Pedro Gama dos Santos Júnior, Romário Hugo dos Santos, Thiago Chambó Andrade, Victor Yamasaki Fernandes, William de Oliveira Souza e Zildo Peixoto Neto.
Os casos investigados envolvem apostas para lances como punições com cartões amarelos ou vermelho e cometer pênaltis. Bruno Lopez de Moura, apostador que havia sido detido na primeira fase da operação, é visto pelo MP como líder da quadrilha no esquema de manipulação de resultados.
Entre os maiores casos de repercussão está o do zagueiro do Santos que, em dois jogos do Campeonato Brasileiro de 2022, foi cooptado para o esquema.
No jogo Santos x Avaí (Brasileirão, 05/11/2022), foi realizado o pagamento em montante ainda não preciso, porém certo, de pelo menos R$ 50 mil efetivamente entregues a Eduardo Bauermann antes mesmo da realização do jogo, para que o jogador do Santos fosse punido com cartão amarelo na partida (o que não ocorreu).
No jogo Botafogo x Santos (Brasileirão, 10/11/2022), Bauermann, apesar de ter aceitado valores na rodada anterior, não “cumpriu” sua parte no acordo e, por isso, na rodada imediatamente seguinte, ainda com a posse da quantia recebida, novamente aceitou a promessa de valores indevidos para, agora, ser expulso da partida.
Além dos oito atletas denunciados e investigados pelo MP-GO, outros nomes aparecem nas 113 páginas do processo obtiveram acesso, entre eles: Sávio, lateral-esquerdo do Goiás à época, Vitor Mendes, então jogador do Juventude e hoje no Fluminense, Pedrinho do Athletico-PR, Nathan do Avaí, Nino Paraíba, à época no Ceará e Dadá Belmonte, à época no Goiás.
A direção do Fluminense afastou temporariamente o zagueiro Vitor Mendes das atividades do clube. O jogador foi vetado da partida contra o Cruzeiro, na noite desta quarta-feira, pelo Brasileirão, apesar de ter viajado com o elenco tricolor para a capital mineira na terça. Ao anunciar o afastamento do atleta, o clube carioca evitou citar a causa.
“O Fluminense FC informa que o atleta Vitor Mendes está afastado preventivamente das atividades do clube”, disse a direção, de forma breve, nas redes sociais. O nome do jogador não consta na denúncia que o Ministério Público de Goiás ofereceu à Justiça, com todos os envolvidos, mas aparece no processo com prints de conversas sobre a questão.
A nova fase da operação investiga a conduta do grupo criminoso em outros 13 jogos entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023:
- Palmeiras x Juventude (Série A – 10/09/2022)
- Juventude x Fortaleza (Série A – 17/09/2022)
- Ceará X Cuiabá (Série A – 16/10/2022)
- Sport X Operário- PR (Série B – 28/10/2022)
- Goiás X Juventude (Série A – 05/11/2022)
- Bragantino X América-MG (Série A – 05/11/2022)
- Santos X Avaí (Série A – 05/11/2022)
- Botafogo X Santos (Série A – 10/11/2022)
- Palmeiras X Cuiabá (Série A – 06/11/2022)
- Bragantino X Portuguesa (Campeonato Paulista – 21/01/2023)
- Guarani X Portuguesa (Campeonato Paulista – 08/02/2023)
- Bento Gonçalves X Novo Hamburgo (Campeonato Gaúcho – 11/02/2023)
- Caxias X São Luiz-RS (Campeonato Gaúcho – 12/02/2023)
BANIMENTO
Em entrevista ao portal GE, o procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, Ronaldo Piacente, afirmou que os jogadores acusados de terem participado de esquemas de manipulação correm o risco de serem banidos do futebol.
“A lei diz que basta a promessa de uma vantagem, não precisa nem ter sido consumado o pagamento. A punição para um jogador parte de no mínimo 360 dias e no máximo 720 dias. Em caso de reincidência, de uma segunda promessa ou recebimento, a punição pode ser de banimento”, disse Piacente.
Conforme o procurador, os atletas serão denunciados no artigo 243 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que fala sobre “atuar deliberadamente de modo prejudicial à equipe de defende”. A pena para tal infração é uma multa que pode chegar a R$ 100 mil e uma suspensão que vai de um a dois anos. Em caso de reincidência, a pena pode ser de eliminação do esporte, além de outra multa de até R$ 100 mil.
Segundo o portal, as denúncias e investigações feitas pelo Ministério Público de Goiás estão sendo compartilhadas com o STJD. Em um futuro, o órgão da justiça desportiva pode utilizar-se disso para fornecer outras denúncias esportivas.
REGULAÇÃO DAS CASAS DE APOSTA
Sem qualquer avanço desde 2018, a discussão sobre a regulamentação do mercado de apostas esportivas, as chamadas BETS voltou à tona. Por ser um setor que envolve, principalmente, muito dinheiro, começou a se expandir no Brasil a partir de uma lei que permitia a atividade, mas ainda não foi regulamentada.
Após debate na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados em abril, o governo Lula cogitou editar uma Medida Provisória com a regulamentação do mercado de apostas esportivas, prevendo a cobrança de tributos e estabelecendo regras para operação no Brasil.
Segundo o assessor especial José Francisco Manssur, representante do Ministério da Fazenda na audiência pública, as plataformas de apostas terão que pagar R$ 30 milhões como taxa de licença válida por cinco anos.
Manssur ainda disse que haverá cobrança de 15% em impostos na arrecadação bruta das premiações pagas. Haverá ainda outras tributações, como PIS/Cofins e ISS, o que fará com que esses impostos possam chegar a 29%.
A medida provisória também exigirá capital mínimo dos operadores das apostas, que também pagarão por concessão. Eles deverão manter domicílio fiscal no Brasil, além de contratar no país parte das equipes e da estrutura. A expectativa é que a MP da regulamentação saia até o final de abril ou início de maio.
As apostas esportivas foram criadas quando o então presidente Michel Temer (MDB) sancionou a lei n° 13.756/2018. Na prática, é possível, mesmo estando no Brasil, operar em casas de apostas online, estabelecidas no exterior. Isso porque, as casas de apostas não podem operar no Brasil por falta de regulamentação.
Atualmente, os sites de apostas esportivas são hospedados em outros países, o que significa que o Brasil perde uma fonte de receita para o Estado, além de outros efeitos positivos decorrentes de sua regulamentação, como a criação de empregos.
A falta de regulamentação fez o governo perder cerca de R$ 6 bilhões por ano entre 2018 e 2022. “Hoje, esse valor pode ser até maior, porque o setor só cresceu“, enfatizou Manssur na época.
Com a regulamentação, as empresas deverão se estabelecer no Brasil para divulgar sua marca, além de determinadas medidas de combate à manipulação de resultados. Hoje, as denominadas de “bets” atuam no Brasil apenas no desenvolvimento do marketing.
No Brasil, o histórico de proibição dos jogos de aposta se inicia com a edição da Lei das Contravenções Penais, em 1946, que previu em seu artigo 50 a pena de 3 meses a 1 ano àqueles que estabelecessem ou explorassem jogos de azar. O movimento adotado pelo então governo militar foi no sentido de centralizar na Caixa Econômica Federal o monopólio de exploração das loterias operantes em solo nacional.
Acontece que a legitimidade de criminalização da exploração de jogos de azar começou a ser questionada, notadamente pelo seu viés paternalista, ao tentar afastar o particular de eventuais “vícios” que o jogo pudesse ocasionar. Sua legitimidade, então, é questionada em razão do uso do Direito Penal, a via mais repressora do Estado, para promoção de um modelo ideal de comportamento que, a princípio, não ofenderia terceiros.
Estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) estima que o mercado de apostas esportivas no Brasil movimente entre R$ 4 bilhões e R$ 9 bilhões anualmente.
LAVAGEM DE DINHEIRO
Com esse crescimento das BETS, os casos de fraude e os sinais da presença de organizações criminosas no negócio também aumentaram. Em 2022, por conta da Operação Distração da PF, em busca e apreensão na casa onde Rogério de Andrade que foi preso, em Petrópolis, os investigadores encontraram provas de que o bicheiro mantinha um site de apostas denominado Heads Bet. A manipulação de resultados é outro efeito colateral desta expansão do mercado.
A Sportsradar Integrity Services (SIS), referência mundial em monitoramento de fraudes esportivas, descobriu indícios de atividades suspeitas no Campeonato Cearense, razão pela qual o Crato Esporte Clube foi excluído do torneio de 2022. As investigações contra os responsáveis, contudo, não seguem na mesma velocidade do aumento das ocorrências.
Por entender que a exploração de jogos de azar é contravenção penal, conduta de menor potencial ofensivo, as autoridades não priorizam os casos. Em Sergipe, que desbaratou uma quadrilha envolvida com a prática de exploração de jogos de azar, lavagem de dinheiro e evasão de divisas por intermédio de um site de apostas, o EsporteNet, sediado em Curaçao, ilha do Caribe.
Fica provavelmente em Curaçao o Heads Bet, site atribuído pelo Grupo de Atribuição Especializada em Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio de Janeiro ao bicheiro Rogério de Andrade. Para os investigadores, os papéis apreendidos na casa do bicheiro indicam a expansão internacional dos negócios de Rogério.
A incursão do bicheiro no mundo bet, de acordo com a investigação, abrangia apostas presenciais e virtuais. Preso junto com Rogério, Gustavo de Andrade, filho do bicheiro, prestou depoimento à Delegacia de Homicídios da Capital, em 2020, no âmbito do inquérito sobre as mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no qual admitiu que um funcionário da empresa de sua família, Renato Peçanha Pires, o Renatinho, constituiu sociedade com o sargento reformado da PM Ronnie Lessa, para montar um bingo e casa de apostas no Quebra-Mar, na Barra da Tijuca.
Para o Gaeco, Renatinho seria um laranja para esconder o nome do bicheiro como verdadeiro proprietário. Preso desde março de 2019, Lessa será julgado pelas execuções de Marielle e Anderson Gomes.

A EsporteNet, alvo principal da Operação Distração, deflagrada no ano passado pelo Ministério Público Federal, foi a principal patrocinadora do Fortaleza Esporte Clube. Na operação, foram apreendidos mais de R$ 13 milhões, além de carros, celulares, equipamentos eletrônicos e documentos nas duas fases da operação, deflagradas em março e em setembro de 2021.
Cabo Frio foi a cidade escolhida por Rogério Cruz para montar a base da Alphabets. O operador se apresentava nas redes sociais como ex-jogador de futebol, corretor de imóveis e gerente de restaurante até se “encontrar como trader esportivo e investidor do mercado de apostas”. Para conquistar os clientes, garantia fazer o dinheiro “render como nenhum outro investimento”.
A Alphabets tinha um pequeno escritório no centro de Cabo Frio, mas Rogério, segundo clientes, apareceu somente duas vezes na cidade da Região dos Lagos. Preferia operar pelas redes sociais, onde também postava fotos da vida pessoal, entre as quais uma em que aparece no aniversário do filho com um tênis avaliado em R$ 14 mil.
Em um estudo da EUROPOL, a Polícia Europeia “The involvement of organised crime groups in sports corruption”, constatou que há envolvimento de organizações criminosas em apostas esportivas. O estudo foi divulgado em português pelo Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD).
O estudo entende que a lavagem de dinheiro por meio das apostas esportivas pode ser uma prática relativamente simples, na qual, por exemplo, pequenos montantes de origem criminosa são colocados, por meio físico, diretamente ao operador de apostas e são “transformadas” em capital lícito a partir de apostas legítimas.
Igualmente, pode tratar-se de esquema sofisticado e complexo, que envolva várias camadas de transações financeiras em grande escala, de forma transnacional e por meio de empresas offshore,registradas em países conhecidos como “paraísos fiscais”.
Existem várias maneiras de se utilizarem as apostas esportivas para a lavagem de dinheiro, face à subregulamentação e a ausência de fiscalização, que favorecem, por exemplo, o anonimato dos apostadores e permitem a existência de casas de apostas online ilegais.
No cenário internacional, a preocupação com a exposição de operadores de jogos de apostas a riscos de lavagem de ativos já é uma questão que vem sendo endereçada pelo menos desde 2009, quando o GAFI elaborou o relatório de diretrizes para avaliação de riscos atinentes à operação desse setor.
TIAGO CÉSAR