CARLOS LOPES
(HP 26/08/2003)
No dia 6 de dezembro de 1868, o Exército Brasileiro, em solo paraguaio desde 1866, defrontava-se com a passagem de Itororó. O nome é o de um riacho, e a passagem era uma ponte sobre o riacho. O combate começou pela manhã, às 8 horas, e terminou às 13 horas. Foi um dos mais cruentos da guerra do Paraguai. Três vezes o Exército Brasileiro foi repelido pelas tropas dos generais Caballero – depois presidente do país – e Moreno. Dois generais brasileiros, Argolo e Gurjão, tombaram no campo de batalha, nesse dia.
Posteriormente, em debate no Senado, o comandante-chefe das forças brasileiras lembrou o combate. Na época, os liberais tentavam desmoralizar Caxias – líder de maior prestígio, junto com o Visconde do Rio Branco, do Partido Conservador. Diziam os liberais que a dureza do combate em Itororó (os brasileiros tiveram 1806 baixas, entre mortos e feridos, num combate que durou cinco horas) teria sido devida à “imprudência” de Caxias, que lançou a vanguarda de suas tropas contra o exército paraguaio, sem esperar pelo contingente comandado por Osório, que, devido a dificuldades do caminho, ficara temporariamente para trás.
Caxias, senador, respondeu simplesmente: “se eu [depois das tropas terem sido repelidas pela terceira vez] não atacasse logo, desmoralizava-se a tropa. O que fazer? Fui para a frente e carreguei sobre a posição inimiga, que foi tomada”.
O comandante não desceu a detalhes sobre a sua participação. Mesmo seu relatório ao ministro da Guerra é sucinto: informa ele que fora preciso que “eu abandonasse minha posição de general em Chefe para conduzir ao fogo e à carga batalhões inteiros, e corpos de cavalaria”.
Mas não faltaram testemunhas oculares. Na verdade, após quatro horas de combate, quando os brasileiros estavam sendo repelidos pela quarta vez, Caxias “desceu a colina de onde comandava a luta, desembainhou a espada e ‘gritando vivas ao Imperador e ao Brasil’ lançou-se sobre a ponte, e nesse ato seu cavalo foi morto pelas balas, assim como vários homens que o acompanhavam”. A pé, ele continuou. Várias testemunhas relatam que, ao passar pela tropa, Caxias “deu voz de ‘firme’ e se arrojou sobre aquela posição, e exclamou, de espada desembainhada, ‘sigam-me os que forem brasileiros!’ ”.
Um jovem oficial presente, o futuro general Dionísio Cerqueira, descreve assim o episódio: “Passou pela nossa frente animado, ereto no cavalo, o boné de capa branca com tapa-nuca, de pala levantada e preso ao queixo, pela jugular, a espada curva desembainhada, empunhada com vigor, e presa pelo fiador de outro, o velho general-chefe, que parecia ter recuperado a energia e o fogo dos vinte anos”.
Com efeito, Caxias já tinha, há alguns meses, completado 65 anos quando venceu em Itororó, combate tão memorável que deu origem a uma das canções folclóricas mais conhecidas do país (a versão original, segundo Francisco Doratioto, em seu excelente livro “Maldita Guerra”, de onde tiramos as informações acima, é: “Eu fui lá no Tororó/ Beber água e não achei,/ Ver Moreno e Caballero,/ Já fui, já vi, já cheguei”).
Itororó foi, também, a primeira batalha da “dezembrada”, série de combates em dezembro de 1868 que levaram à vitória na guerra. Não eram combates em que o maior soldado brasileiro se sentisse à vontade. Quatro meses antes, em 14 de agosto, ele havia pedido o fim da guerra, em carta dirigida ao ministro da Guerra, o barão de Muritiba, onde pondera: “como Brasileiro e Senador do Império, e com a consciência de general, tenho para mim que as injúrias irrogadas (….) estão mais que suficientemente vingadas”.
URUGUAI
Caxias também não fora a favor da intervenção no Uruguai, ordenada pelo governo liberal. Para ele, a intervenção tinha como beneficiários apenas alguns estancieiros que atravessaram a fronteira e tinham propriedades naquele país. Somente após a invasão do Brasil – no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul – é que acedeu ao pedido de D. Pedro II para que assumisse o comando das tropas.
Assim, a campanha pós-guerra dos liberais contra Caxias fora gestada nessas divergências anteriores. Mas havia uma questão de fundo: os liberais, em geral, eram muito mais chegados à potência colonialista da época do que os conservadores – estes chegaram a romper relações diplomáticas com a Inglaterra, situação que perdurava, quando a guerra teve início. Em suma, os liberais eram, para usar a linguagem de hoje, em geral, entreguistas. Entre os conservadores – não todos, mas alguns em especial – o nacionalismo tinha muito mais espaço.
GENERAL OSÓRIO
Porém, havia um liberal que Caxias prezava – e que nada tinha de entreguista: o general Osório. Assim, a campanha contra Caxias recorria a intrigas em relação a Osório. Procuravam separar este do amigo, que o promovera, com justiça, a comandante do 3º Corpo de Exército. Porém, o marechal Manuel Osório era um homem de caráter. E jamais permitiu ser usado, menos ainda quando a questão era a defesa do país ao qual havia honrado como poucos. E, ainda menos, quando, além disso, se tratava de Caxias.
O CONSOLIDADOR
Luís Alves de Lima e Silva foi consagrado como Patrono do Exército Brasileiro em 13 de março de 1962, pelo presidente João Goulart.
Nunca uma homenagem foi mais justa.
A Revolução da Independência, liderada por José Bonifácio seguindo o caminho de Tiradentes, teve no Duque de Caxias o seu consolidador. A crise que se iniciara antes da Independência estendeu-se, com 30 anos de guerra civil – deflagrada já em 1817, ainda em pleno domínio português, e só encerrada em 1848, 26 anos após o Ipiranga. Era a liquidação do passivo colonial lusitano. Do ponto de vista político, tratava-se de garantir a unidade nacional. Do ponto de vista econômico, garantir o desenvolvimento do país a partir da base que se gestara internamente, conquistando autonomia em relação à dominação da Inglaterra para sair da estagnação e do atraso.
MONOPÓLIO INGLÊS
O aspecto fundamental desse passivo colonial era, precisamente, a dependência à Inglaterra, oficializada pelos tratados de 1810, que o Brasil herdara de Portugal. Esses tratados, os “Tratados de Aliança e Amizade, Comércio e Navegação”, estipulavam que as mercadorias inglesas exportadas para o Brasil pagariam uma tarifa de 15% como imposto de importação, quando os próprios produtos portugueses – antes da Independência – pagavam 16%, e os produtos dos demais países, 24%.
Esse era o significado da concessão, feita por Portugal à Inglaterra, da condição de “nação mais favorecida” nas relações do Brasil com o mundo: o monopólio inglês sobre nosso mercado, com tarifas de privilégio às mercadorias inglesas importadas. Os “Tratados” constituíam, portanto, um entrave ao nosso desenvolvimento, na medida em que impediam o crescimento de uma indústria própria e tornavam o país um mero fornecedor de produtos primários para uma nova metrópole – principalmente o açúcar e o algodão: os preços internacionais desses produtos haviam, após um longo período de baixa depois da expulsão dos holandeses de Pernambuco, aumentado outra vez com as revoluções americana e francesa e as Guerras Napoleônicas, que bloqueavam o fornecimento por parte da ex-América inglesa e das Antilhas inglesas e francesas. Assim, era vital para a Inglaterra o fornecimento à preço vil dessas mercadorias pelo nosso país.
Por outro lado, ao escancarar a economia do país, esses privilégios concedidos à Inglaterra enfraqueciam o recém-nascido Estado nacional, cuja arrecadação era composta, sobretudo, pelo imposto sobre as importações, deixando-o sem recursos exatamente no momento em que o país se tornava politicamente independente – e, portanto, quando a ação do Estado era mais necessária.
Assim, a crise – incluindo a abdicação do primeiro imperador, em 1831, e a campanha pela maioridade do novo imperador, conquistada em 1840, quando D. Pedro II tinha 14 anos – e a guerra civil tiveram como fundo essa espoliação feroz, estabelecida pelos tratados de 1810, que concediam tarifas privilegiadas aos produtos ingleses, colocando um obstáculo ao desenvolvimento do país.
Em 1844, quatro anos após a decretação da maioridade e posse de D. Pedro II, os tratados de 1810 expiraram, depois de uma longa batalha em que os ingleses tudo fizeram para que fossem renovados e o governo brasileiro resistiu, procrastinando indefinidamente essa renovação. Ao fim, por exaustão, depois de dois anos de negociações sem que o Brasil concordasse com a sua continuação, o governo inglês desistiu.
Exatamente no mesmo ano, 1844, o ministro Alves Branco instituiu a proteção tarifária ao mercado interno, como estímulo para a industrialização e reforçamento da ação e do papel do Estado nacional. Essa proteção tarifária era, obviamente, dirigida contra o favorecimento às mercadorias importadas inglesas. Não havia outro meio de permitir o crescimento da produção interna de manufaturados, assim como o fortalecimento das finanças públicas.
ESPOLIAÇÃO
A superação da crise de origem colonial e o fim das guerras civis só foram possíveis após 1844, com o fim dos escandalosos privilégios às mercadorias inglesas aceitos pela Coroa portuguesa. Encerrava-se ali um período de severa espoliação do país, por via comercial. Todo o período imperial, apesar da influência inglesa sobre a economia brasileira – ou melhor, por causa dela – foi um período de tensão aguda e quase constante com a Inglaterra, a ponto de, em 1863, a esquadra inglesa bloquear o porto do Rio de Janeiro.
As tentativas de revolução ou de separação de partes do território nacional ocorridas nesses conturbados 30 anos tiveram por fundo – na maioria das vezes sem que houvesse consciência disso por ambos os lados em luta – essa espoliação do país e de sua população pelo privilégio da Inglaterra sobre nosso mercado interno, que empobrecia o Brasil, debilitava o Estado e atirava a economia numa crise permanente.
Em 1848, terminado o movimento praieiro em Pernambuco – o movimento farroupilha havia se encerrado em 1845 – estava consolidada a Independência, vale dizer, a unidade nacional.
O HUMANISMO
Caxias, descrito por Taunay, que o conheceu bem, como “o grande herói tranquilo”, foi o líder – militar e político – cuja ação impediu que o país se fragmentasse. Uma vez, expondo o que pensava a respeito, afirmou: “Maldição eterna aos que reviverem as nossas dissensões passadas”. E foi para isso – para a unidade nacional – que viveu e lutou.
Ele demonstrou sempre uma extraordinária serenidade, um senso de dever, expresso em seu compromisso para com o país, e um incomum senso de humanidade. É sintomático que Max von Versen, assessor de Solano López e oficial prussiano bem daquele tipo que algumas décadas depois se submeteria ao nazismo em nome de supostas “glórias militares” (ou seja, em nome da guerra de rapina mais estúpida e sanguinária que o mundo já tinha visto até então), tenha, no livro em que rememora a guerra do Paraguai, atacado Caxias por “postergar” os combates. Caxias prezava a vida de seus homens. Não era adepto de expô-los à morte quase certa ou provável. Assim, travou os combates que venceu, sempre depois de cuidadosa preparação. E, quando, em Itororó, viu-se diante de uma situação inesperada, arriscou a vida para terminar logo o embate.
A grandeza de Caxias revelou-se na forma como combateu as revoltas do período da regência, procurando, ao derrotá-las, incorporar os homens que delas haviam participado no processo de construção do país, sobretudo nos efetivos das Forças Armadas brasileiras.
CLAREZA POLÍTICA
Filho de um dos comandantes militares da Independência – e, depois da abdicação de D. Pedro I, regente do Império – Caxias é uma figura impressionante não apenas pelos seus feitos militares e virtudes pessoais, mas também por uma clareza política extraordinária, que se manifestou não somente no seu modo de tratar as revoltas do conturbado período que se sucedeu à Independência, mas também durante as duas vezes em que ocupou a presidência do Conselho de Ministros, concedendo, por exemplo, anistia aos sacerdotes condenados durante a Questão Religiosa por sua oposição à maçonaria – não fosse ele, Caxias, um dos mais notáveis maçons da época. É significativa, também, sua atitude amistosa para com o Barão de Mauá, cujo nome era, então, como ainda hoje, sinônimo da industrialização do país.
Caxias era, tal como ficou conhecido, um pacificador. Estava disposto tanto a lutar, quanto a reunir os adversários do dia anterior em prol da paz, isto é, da unidade do país. Ao mesmo tempo, não estava disposto a fazer, e nunca fez, concessão alguma à custa dos interesses e anseios nacionais.