O encontro organizado por 15 entidades discutiu o papel do Estado na construção de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Maria Lúcia Fattorelli, Alexandre Navarro, Allen Habert e Nilson Araújo, organizador do Seminário “100+50: Desafios do Governo Lula”, apontaram os obstáculos a serem superados para que o Brasil volte a crescer
A “Reconstrução Nacional e o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento” foi o tema do terceiro e último debate do Seminário 100+50: Desafios do Governo Lula. O encontro, coordenado pelo professor Nilson Araújo de Souza, presidente do Sindicato dos Escritores de São Paulo, aconteceu na noite de sexta-feira (26) no Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo.
Além do economista Nilson Araújo, participaram do evento como palestrantes Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida; Alexandre Navarro, vice-presidente da Fundação João Mangabeira; e Allen Habert, engenheiro e Diretor de Articulação Nacional da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários (CNTU). O debate foi mediado por Paulo Massoca, coordenador do Engenharia pela Democracia.
Os debatedores apresentaram uma síntese de propostas para a reconstrução do país e do que deve ser o centro do projeto nacional de desenvolvimento do governo Lula: colocar o Estado no centro das transformações sociais e como força motora do crescimento.
A coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, iniciou o debate listando os eixos de investimento em infraestrutura propostos pelo governo e questionando de onde virão os recursos em uma conjuntura de um país endividado, praticando juros altos e com uma política fiscal de austeridade – se referindo ao novo arcabouço fiscal.
FATORELLI: DÍVIDA NÃO É FEITA PARA INVESTIMENTOS
Segundo ela, a dívida pública que seria “um instrumento para que o Estado obtivesse recursos, deveriam ser destinados a investimentos de interesse da sociedade”. No entanto, funciona no Brasil “como um sistema que tem alimentado continuamente os juros mais elevados do mundo, que incidem sobre vários mecanismos financeiros – que criam mais dívida”.
“O resultado é esse, no ano passado 46,3% do orçamento federal foram para pagamento de juros e amortizações. O gasto com juros e os mecanismos que geram dívida ficaram fora do arcabouço, podendo crescer à vontade”, denunciou.
“O novo arcabouço fiscal está funcionando como uma trava para investimentos no país. Ele é um programa de austeridade fiscal”, disse Maria Lúcia. “O arcabouço está no sentido inverso do que precisamos. A gente precisava de um enfrentamento do sistema da dívida, uma dívida que não está servindo para investimentos”, acrescentou Fatorelli.
Assista a íntegra da Mesa III do Seminário “100+50: Desafios do governo Lula”
Fattorelli detalhou que, para priorizar o pagamento da dívida, o arcabouço manteve o teto de gastos com uma possibilidade de crescimento real mínimo. “Para chegar nesses 2,5% de crescimento das despesas tem que cumprir a meta de resultado primário e tem que ter crescimento de arrecadação tributária”.
Ela lembrou que diante da situação grave que o país se encontra, até o mercado financeiro, no boletim Focus do Banco Central, esperava resultado primário negativo nos próximos quatro anos. “Mas o Fernando Haddad [ministro da Fazenda] se comprometeu a zerar o resultado negativo ano que vem e depois fazer superávit. Para isso, vai ter que arrochar os investimentos”. O superávit primário são os recursos que o Estado economiza, ou seja, reserva, para pagamento de juros da dívida. A coordenadora do movimento reforça que esta “economia”, no entanto, não segura o crescimento da dívida.
“Porque o superávit achata um gasto que não tem nada a ver com o crescimento da dívida, o superávit arrocha as despesas primárias, isso inclui saúde, educação e toda a máquina pública”. A pesquisadora explicou que a cada 1% de aumento da Selic, segundo a planilha do próprio Banco Central (BC), há um aumento no gasto com juros de R$ 40,1 bilhões. “Se o Banco Central aumentou a Selic de 2% para quase 14%, nós estamos falando de um gasto de cerca de R$ 470 bilhões, quase meio bilhão de reais só com essa alta da Selic”.
Fattorelli também afirmou que o Banco Central mente para a população quando sustenta que precisa manter os juros altos para controlar a inflação. “A inflação no Brasil ela vem de preços administrados, de aumento do preço de combustível, aumento de preço de alimentos. Subir juros faz baixar o preço da gasolina, faz baixar o preço da comida?”, questionou.
“Só serve subir os juros para controlar aquele tipo de inflação [de demanda] quando a sociedade toda está com muito dinheiro em mãos, o volume de moeda e circulação está altíssimo e todo mundo está com muita propensão a consumir. Tem alguma coisa parecida com essa acontecendo aqui no Brasil? Nosso povo está passando fome, não tem dinheiro nem para comprar comida, os carros estão aí acumulados nos pátios das montadoras, que estão dando férias coletivas, demitindo”.
NILSON: AVANÇAR A ECONOMIA E DERROTAR O FASCISMO
O economista Nilson Araújo, também diretor da Fundação Maurício Grabois e titular da Cátedra Claudio Campos, iniciou sua fala dizendo que principal questão em disputa nas eleições no ano passado era a questão democrática, e que por isso mesmo ensejou a formação de uma ampla frente, que possibilitou a vitória nas urnas – e que a questão democrática continua sendo ainda hoje a principal questão.
“E sigo dizendo isso para os dias de hoje, a questão democrática continua no centro. Mas o aspecto principal da questão democrática está no âmbito da economia. Se o governo Lula conseguir cumprir sua tarefa principal, que é a reconstrução nacional e a deflagração do processo de desenvolvimento, nós vamos derrotar o fascismo; caso não cumpra, poderá ensejar o retorno ao centro do poder”.
“O desafio geral é reconstrução nacional. Nesse âmbito, o primeiro desafio é manter a frente ampla que garanta a realização dessa reconstrução, combinada com a deflagração do desenvolvimento. Só tem uma forma de garantir a unidade da frente: é o país voltar a crescer e gerar empregos. Isso neutraliza os mais conservadores e une o povo”, avalia o professor.
Segundo ele, outro dos grandes desafios do governo é enfrentar a desigualdade social, que faz com que 33 milhões de pessoas passem fome no país que é o maior exportador de alimentos do mundo.
“Lula enfrenta a desigualdade com o Bolsa Família, que é importante, mas a desigualdade se expressa pelo poder de compra e pelo salário. O salário-mínimo segundo o Dieese, seguindo o que está na Constituição, deveria ser R$ 6.676,11 e é R$ 1.320, não chega a 25% do que é necessário”.
“Além disso, combater a pobreza extrema tem que fortalecer o mercado interno. E para isso precisa de produção. Reindustrializando o país, com novas fábricas, tecnologia moderna. Novas bases tecnológicas. Amplo programa de infraestrutura de base. Construir metrô à vontade, resolver o problema do saneamento, construir estrada de ferro. Gera produção e gera emprego. O trabalho tem que estar no centro da dinâmica econômica”, propõe Nilson.
Para isso ser possível, afirma o professor, é preciso reforçar o papel do estado na economia.
“O Estado é fundamental no processo de desenvolvimento. Durante a crise, o empresário não investe, fica na retranca, coloca na especulação. Quem tem condição de investir é o Estado e puxa os demais”.
Nilson chamou a atenção para o fato de que o mundo vive uma crise grave. O que caracteriza este momento é o declínio dos EUA e a ascensão da China. Esta situação, em que as velhas potências que dominam e exploram os países da periferia estão em crise, abre grandes perspectivas para o Brasil. “Isso já aconteceu em outros momentos históricos em que as grandes potências entraram em crise, como foi da década de 1930. Getúlio soube aproveitar a situação, tirou o Brasil da lógica da crise e deu um grande salto à frente”, lembrou.
Partindo para os recursos necessários para que este projeto seja possível, Nilson Araújo propôs:
“O problema está na dívida, mas não na dívida em si. Porque se fosse uma dívida feita para investimento movida a um juro civilizado, não teria problema nenhum. Mas estamos falando do maior juro do mundo. O principal problema está ai: precisa reduzir as taxas de juros. Até banqueiro está reclamando dos juros, porque os clientes não conseguem pagar as suas dívidas. Não serve para ninguém”.
Em segundo lugar, o professor afirma que o governo pode emitir moeda.
“Não é verdade que emitir moeda gera inflação. Se emite num momento que está com capacidade ociosa, o país está em crise e utiliza para fazer investimento público, não tem inflação”.
O economista ainda registra que as isenções fiscais também devem ser reavaliadas – ainda mais do que o Ministério da Economia está fazendo – porque atualmente está beneficiando as empresas que mandam os recursos para suas matrizes.
“Reforma tributária tem duas formas de mexer. A reforma proposta hoje mexe com o consumo e com a produção, mas não mexe com a renda – e o problema está na renda. É o rico que não paga imposto, e não é só porque sonega, mas por conta do sistema”.
“Recurso tem sobrando, o problema do Brasil não é recurso. Essa é uma luta que a Fattorelli vem trabalhando há um tempo, eu me solidarizo com ela. Diz que não tem dinheiro, é só tirar do bolso do banqueiro”.
Sobre o arcabouço fiscal, Nilson Araújo disse que “tem o problema de ter teto com bandas e limita o investimento”. “Segue tendo um teto, só que com bandas, um pouco mais flexível. Neste sentido, está melhor que o teto. No teto não havia flexibilidade nenhuma, nesse aí tem alguma flexibilidade”.
“Mas o objetivo central segue sendo o mesmo do teto de gastos. Que a Maria Lúcia disse que é guardar dinheiro para pagar dívida. Que eles chamam de gerar superávit nas contas públicas, o superávit primário para poder pagar o juro da dívida. O objetivo é reduzir o déficit, gerar superávit e reduzir a relação dívida/PIB. Isso está lá no arcabouço, como estava no teto”, acrescentou o economista.
“Teve também alguma coisa sobrando para o investimento. Qual é o problema do investimento? Tem mais de um problema na questão do investimento. O primeiro é que o conjunto da despesa pública pode aumentar no máximo 2,5%. Têm algumas despesas que vão crescer mais do que 2,5%, que é bom que cresçam. A Educação volta a ter o parâmetro constitucional, que é 18% da União e 25% dos Estados e municípios. Então, Educação vai crescer mais. A Saúde tem também um parâmetro. A Previdência Social cresce vegetativamente, mais do que a inflação. E o que ocorre? Vai espremer o investimento”, alertou Nilson. “É justo que cresçam esses itens, mas é justo que o investimento cresça também”, apontou.
“O outro problema para os investimentos”, prosseguiu o palestrante, “é o piso de R$ 78 bilhões, que o relator, inclusive, reduziu para R$ 65 bilhões. Isso significa uma redução de R$ 13 bilhões. O Haddad, ao fazer o arcabouço do jeito que fez, é como se ele tivesse colocado a bola na marca do pênalti para o relator bater. O relator pegou o que ele fez e endureceu. Tornou pior. Diminuiu os investimentos, e criou sanções se o governo não atingir as metas de superávit. Então, o investimento é o grande sacrificado no arcabouço. Sendo ele sacrificado, dificulta fazer a retomada do desenvolvimento”.
Para o economista, “o investimento público é chave”. “O investimento público tem duas esferas. O da administração direta e das estatais. As estatais estão fora desse limite. Então, tem que recompor a Petrobrás e tem que retomar a Eletrobrás. O Lula está trabalhando bem nessa direção. Primeiro entrou na Justiça para poder fazer valer o percentual que a União tem, que é 43%, mas com poder e voto de apenas 10%. As estatais têm que ter capacidade de fazer investimento, mas também a União tem que ter capacidade de fazer investimentos”, assinalou.
“O teto de gasto nunca foi cumprido. Nos quatro anos de Bolsonaro se superou os limites do teto. Atingiu-se um total de quase 800 bilhões acima do teto ao longo dos quatro anos. E o Lula já entrou também superando os limites impostos com a PEC da Transição. Então respondendo à pergunta do Cauê, da UNE, baixando-se os juros e tendo mais recursos disponíveis, a luta continua para a superação das amarras impostas pelo arcabouço”, apontou.
NAVARRO: EMISSÃO DE MOEDA PARA O PAÍS CRESCER
Na avaliação do vice-presidente da Fundação João Mangabeira (FJM), Alexandre Navarro, “teremos uma reconstrução nacional, não teremos um projeto nacional de desenvolvimento”. “Todos nós sabemos que a solução não é através de arcabouço fiscal. Poderia até enviar um projeto de arcabouço fiscal para você agradar os rentistas como o primeiro item, mas tinha que ter outros itens. O projeto inicial já é um teto enrustido, que começou com 13 itens de despesas públicas que não sofreriam a limitação de despesa”, ressaltou. “Hoje tem apenas 7 itens de despesas públicas não limitadas e mais as amarras que não tinha, a exemplo de concursos públicos, etc.”
“Como você vai fazer projeto nacional de desenvolvimento se você inclui o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), que não estava na Emenda 95 do teto de gasto, e agora está [no novo arcabouço fiscal]”, indagou Navarro.
“A transferência de renda está no teto”, afirmou. “Como que você vai ter inclusão?”, questionou Navarro. “Num teto, que hora ou outra, se você não tiver arrecadação, ou não supriu 0,5% aos 2,5% acima da despesa primária, você não vai poder investir em inclusão social”, constatou.
O especialista em gestão pública defendeu a emissão de moeda e títulos para aplicar no investimento no país. “O tesouro emite título, o Banco Central compra e você aplica no investimento. Todo o país do mundo faz isso. Eles se endividam propriamente”, defendeu.
ALLEN: ENERGIA É PODER
O engenheiro Allen Habert, diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU), lembrou que nos anos de governo Bolsonaro, pelo menos 8 mil sindicatos “morreram”. “Isso tem a ver com a queda da renda do trabalho”, afirmou.
Outro aspecto da reconstrução que se espera do governo Lula é alavancar a indústria nacional. O engenheiro citou que a participação da indústria no PIB, que já foi de 30%, caiu para 9%, 10%. “Mas ainda tem indústria no Brasil. Temos a Petrobrás e a Eletrobrás. Energia é poder. O mundo tem 15 países que têm petróleo. Tem aqui no Brasil”.
“Nós temos um caminho extraordinário pela frente. Condições mundiais, mesmo com essa guerra acontecendo, o Brasil é cinco vezes potência: energética, hídrica, alimentar, mineral, ambiental”, conclamou Habert.
“Como é que nos podemos abrir mão de uma empresa chamada Eletrobrás? São 140 usinas, e nós por cinco votos no Senado alienamos essa soberania nacional e mundial para as Lojas Americanas. Precisamos reaver a Eletrobrás”, defendeu.
“A elite pensante no Brasil precisa romper com a ideologia do colonialismo. Faz-se grande propaganda da Nasa, em imagens de baixo para cima. Mas, “quem descobriu o pré-sal? O Brasil. Foi na ilha do Fundão, no Cenpes, que ninguém sabe onde fica, que conduzimos 30 anos de pesquisa”, disse ele. “Esse discurso de que o Brasil não tem dinheiro, não tem nada, isso é pra arrebentar e vender o nosso patrimônio, isso que eles fizeram nos últimos 6 anos. Estamos na luta pela nossa segunda independência”, concluiu o engenheiro.
PRISCILA CASALE E ANTÔNIO ROSA