“Não é seca, é saque”, entoaram manifestantes denunciando a crise hídrica que atinge, em particular a capital do país, após o desmonte da empresa pública do setor por Lacalle
Milhares de manifestantes tomaram o centro de Montevidéu na noite de quarta-feira (31) para exigir investimentos imediatos do governo do presidente Luis Lacalle Pou na administração de Obras Sanitárias do Estado (OSE), a fim de enfrentar a grave crise hídrica que atinge o país e, em particular, sua capital.
Com palavras de ordem, faixas e cartazes a multidão alertou para os sucessivos cortes de investimentos e empregos na administração pública, que penaliza o serviço de água corrente de dois milhões de habitantes de Montevidéu e da zona metropolitana.
“Eles querem que acreditemos que esta crise é tão somente produto da seca, mas 50% da água potável perde-se devido ao estado das canalizações”, denunciou a central PIT-CNT (Plenário Intersindical de Trabalhadores – Convenção Nacional de Trabalhadores), entidade organizadora do evento, que exigiu recursos para a manutenção de um serviço público de qualidade que priorize o atendimento às famílias e não ao agronegócio de exportação.
O fato é que junto à declaração de emergência agrícola meses atrás, voltada a garantir abastecidos os grandes plantadores de soja e de árvores [madeira], o governo Lacalle tem dado as costas aos pequenos produtores de alimentos e ao conjunto dos consumidores.
Como resultado, o reservatório de Paso Severino, que fornece o líquido vital para Montevidéu, Canelones e áreas urbanas, hoje está tão somente com 6% da sua capacidade de armazenamento.
O fato é que se não bastasse a falta de prioridade, esclareceu a PIT-CNT, o governo administra mal o pouco que tem. A central alerta que a estatal responsável, a OSE, conta atualmente com mil postos de trabalho a menos, o que repercute de forma extremamente negativa na gerência e no serviço prestado à população.
ABANDONO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O presidente da Federação de Funcionários de OSE (FFOSE), Federico Kreimerman, lembrou que há tempos os trabalhadores vinham alertando sobre o que estava por vir. “Víamos de dentro o abandono, tudo o que se passava, mas não diziam nada, enquanto deveriam publicar informações diariamente. É algo que precisaria de um acompanhamento sério dos dados, como foi feito na pandemia”, assinalou.
“A partir da mobilização de hoje, esperamos que passem a investir mais, caso contrário vai chegar um momento em que a reserva de água doce do Paso Severino vai acabar e aí terão que nos dar água completamente salgada”, constatou Kreimerman.
“Claro que tem que investir”, defendeu o presidente da FFOSE, exigindo que o governo, “além de anunciar as coisas pela televisão”, decrete estado de emergência sanitária “para que haja dinheiro, porque ele existe, mas é entregue só para os que já têm”.
Desconhecendo a triste realidade que vive o país, no melhor estilo da princesa francesa Maria Antonieta – a que dizia que se falta pão, o povo que coma brioches -, a ministra da Saúde, Karina Rando, recomendou que gestantes, menores de idade e portadores de diversas doenças crônicas bebam água engarrafada.
Kreimerman destacou que meio milhão de trabalhadores ganham menos de 25.000 pesos [R$ 3.250,00] mensais e enquanto isso a recomendação do Ministério da Saúde Pública, “aquele que tem que cuidar de nós, é a de usar água engarrafada”. “Como uma família com 25.000 pesos por mês gasta 300 pesos [R$ 39,00] por dia ou 9.000 pesos {R$1.170,00] mensais em água engarrafada?”, questionou, recebendo aplausos da multidão.
Representante da Redes-Amigos da Terra, María Selva Ortiz, também foi aplaudida ao recordar que há 21 anos começou a ser concebida a iniciativa dos movimentos sociais, “que formaram a grande frente da Comissão Nacional em Defesa da Água e da Vida”. “Entendemos que a água era tão importante que sua defesa deveria estar consagrada na Constituição e em 31 de outubro de 2004, 64% dos uruguaios apoiaram a iniciativa popular”, destacou, frisando que o artigo 47 da Carta Magna define a água como “um recurso natural essencial para a vida”.
Selva Ortiz ressaltou que desde então diferentes organizações populares “têm militado ativamente pela implementação e respeito à Constituição”, tanto com propostas quanto com denúncias. Nesse sentido, frisou, “voltamos a juntar assinaturas quando foi aprovada a Lei de Irrigação, que é inconstitucional”.
“Em vários aquíferos subterrâneos há água em condições de consumo humano e são as empresas florestais, de soja e de celulose que continuam consumindo, em meio à emergência hídrica, milhões de litros de água doce por dia. Sucessivos governos priorizaram um modelo de produção que usa nossa água para seu benefício e, ainda por cima, isenta-a de impostos e permite que a poluam. O mais irônico, para não dizer cruel, é que a análise dos volumes de água que consomem mostra que o volume destinado ao consumo da população é irrisório”, concluiu um documento assinado por manifestantes “em defesa da água e da vida”.
Veja a manifestação no link:
https://www.facebook.com/watch/?v=264450156105568&ref=sharing