WALTER NEVES
CLÓVIS MONTEIRO
Núcleo de Pesquisa e Divulgação em Evolução Humana
Instituto de Estudos Avançados-USP
O sul da África é considerado desde o início do século XX uma das regiões mais promissoras para o encontro de fósseis dos nossos primeiros ancestrais. A região é pesquisada desde 1924, quando foi encontrado um fóssil denominado por Raymond Dart de Australophitecus africanus, que se tornou à época, o primeiro representante de nossa linhagem evolutiva.
Ao longo das cinco primeiras décadas do século XX uma quantidade inacreditável de hominínios fósseis foram exumados das cavernas calcáreas da África do Sul, fósseis esses que deram origem a várias espécies.
Hoje sabemos que todos esses fósseis podem ser reunidos em apenas dois gêneros: o já citado Australopithecus e o Paranthropus. Há também alguns poucos exemplares que alguns atribuem ao gênero Homo. Ocorre que este profícuo material do sul da África sempre apresentou um grande problema: sua cronologia.
Como na época em que os hominínios viveram no sul da África não houve ali atividade vulcânica, foi impossível, até muito recentemente, conhecer a idade dos fósseis. Achavam-se que estariam aí na faixa de 1 milhão a 2,5 milhões de anos, mas não havia certeza disso.
Técnicas mais modernas, desenvolvidas a partir dos anos 1990, permitiram datar finalmente os materiais do sul da África, e como se pensava, eles estão mesmo no intervalo de tempo entre 1,5 e 3,5 milhões de anos.
Por causa dessa limitação em se datar os fósseis, a pesquisa no sul da África foi eclipsada durante décadas por pesquisas no nordeste da África, principalmente na Etiópia, onde eventos vulcânicos ocorridos nos últimos 7 milhões de anos permitem datar com muita precisão os fósseis ali encontrados.
Mas com o desenvolvimento das novas técnicas de datação já mencionadas, nos anos de 1990, a pesquisa no sul da África foi retomada com pompa e circunstância.
Um dos baluartes dessas novas pesquisas no sul da África é Lee Berger, muito mais um caçador de fósseis do que propriamente um paleoantropólogo convencional. Berger passou a explorar novas cavernas calcáreas na África do Sul, a partir do início dos anos 2000. E dessas pesquisas emergiram duas novas espécies: o Australopithecus sediba e o Homo naledi, na verdade espécies muito similares.
O Australophitecus sediba foi datado em 1,9 milhão de anos e corresponde mais ou menos à variabilidade morfológica encontrada nos demais australopitecíneos africanos, cujos tamanhos cerebrais variam de 400 a 500 cm cúbicos.
A grande surpresa veio quando se datou os fósseis de Homo naledi. Apesar de apresentarem uma capacidade craniana também muito pequena, entre 460 e 513 cm cúbicos sua datação revelou que se tratava de um hominínio tardio, datado entre 335 e 226 mil anos apenas. Esperava-se algo na casa dos milhões de anos, como foi o caso do Australopithecus sediba, sobretudo pela pequeníssima capacidade craniana. Aqui é bom lembrar que outros hominínios dessa época já apresentavam capacidade craniana entre 800 e 1200 cm cúbicos.
A notícia mais espetacular sobre o Homo naledi saiu, entretanto, este mês. Na mesma caverna onde os primeiros restos de Homo naledi foram encontrados, Berger agora diz ter encontrado indivíduos dessa espécie que foram deliberadamente enterrados em covas. Para tornar a coisa ainda mais excitante, próximas a essas covas, na parede da caverna, foram encontrados petróglifos, ou seja, incisões feitas nas paredes, típicas daquilo que em outros contextos bem mais tardios na evolução humana é considerado expressão estético-simbólica.
Se de fato o Homo naledi enterrou deliberadamente seus mortos e ainda por cima decorou as paredes da caverna com arte rupestre, a descoberta não poderia ser mais revolucionária, porque isso significaria que um hominínio com um cérebro de apenas 460 cm3 era capaz de comportamentos complexos, inclusive, comportamentos simbólicos. Vale lembrar, que as evidências até o momento existentes e que são bastantes robustas, é de que os comportamentos complexos, sobretudo os simbólicos, iniciaram-se há apenas 150 mil anos, entre hominínios que tinham capacidades cranianas entre 1600 e 1350 cm3, ou seja, o Homo neandertalensis e o Homo sapiens, respectivamente.
O grande problema com essas descobertas “extraordinárias” sobre o comportamento do Homo naledi é que elas ainda não foram publicadas formalmente. Os autores desses estudos simplesmente circularam manuscritos que ainda não foram publicados por nenhuma revista científica, ou seja, esses resultados não passaram pelo escrutínio de outros especialistas, antes de serem divulgadas.
Esta é uma prática extremamente condenável em ciência. Conhecimento científico só existe quando publicado em revistas científicas de alto nível, após terem sido avaliados à exaustão por cientistas que não participaram das pretensas descobertas.