Para não deixar o serviço incompleto, na decisão seguinte o tribunal proibiu o alívio da dívida estudantil criado pelo governo
Por seis votos a três, a Suprema Corte dos EUA – entupida de juízes ultraconservadores sob o governo Trump – derrubou na quinta-feira (29) a ação afirmativa na admissão às universidades, declarando que a raça não pode ser um fator explicitamente usado, sob alegação de que violaria a constituição e uma lei federal de financiamento às universidades.
Os casos julgados envolveram as universidades Harvard (privada) e Carolina do Norte (pública) em uma ação movida pelo lobby reacionário Students for Fair Admissions. O SFFA alegava que estudantes brancos e asiáticos estariam sendo discriminados pela sua cor em violação da 14ª Emenda da Constituição e até mesmo citava a Lei dos Direitos Civis de 1964, usada para acabar com a segregação nas escolas, que proíbe no seu Título VI as escolas que recebem fundos federais de discriminar com base na raça!
Em seu voto contra o racismo e a desfaçatez, a juíza Sonia Sotomayor, a primeira latina da Suprema Corte, afirmou que “ignorar a raça não igualará uma sociedade racialmente desigual. O que era verdade na década de 1860 e novamente em 1954 é verdade hoje: a igualdade requer o reconhecimento da desigualdade”.
Foi em 1954 que houve a primeira decisão na Suprema Corte no século XX para desfazer outra decisão do órgão supremo do judiciário norte-americano, em 1877, a de legalizar o apartheid nos estados do sul, o que, aliás, a Africa do Sul só faria sete décadas depois, em 1948.
Apartheid que seria revogado nas ruas pelo movimento pelos direitos civis dos anos 1960, encabeçado pelo líder negro Martin Luther King, e apoiado por todas as forças progressistas dos EUA, inclusive amplos setores da população branca.
As cotas foram instituídas nas últimas décadas para compensar aos descendentes dos que sobreviveram aos tumbeiros: não pelo sofrimento da escravidão e, depois, do apartheid, mas para que houvesse o mínimo de oportunidades para debelar o imenso diferencial no ingresso de negros nas universidades dos EUA, em que os negros estavam sub-representados em relação aos 13% que são da população do país.
Contra isso, trumpistas, fascistas em geral e racistas vinham se insurgindo há anos, sob a despudorada tese do “racismo reverso” e sua irmã siamesa, “daltonismo”.
Agora, sensibilizado pela argumentação racista e cínica, no voto vencedor o presidente da Suprema Corte, John Roberts, rechaçou o ‘favorecimento’ de negros, pardos e latinos supostamente cometido pelas duas universidades acionadas, e ainda teve o desplante de afirmar que “nossa história constitucional não tolera essa escolha”.
A decisão pretende estar consagrando o “princípio jurídico” do “daltonismo” – não distinguir as cores – em uma sociedade saída do escravismo e da segregação. Mas, como a máquina de guerra norte-americana não pode dispensar a carne de canhão negra ou parda, a douta corte decidiu que a decisão não se aplica às academias e institutos militares. Um escárnio.
Em sua dissidência, a primeira juíza negra da mais alta instancia legal dos EUA, Ketanji Brown Jackson, disse que o argumento da maioria da corte de que os programas de ação afirmativa são injustos “contradiz tanto a história quanto a realidade de maneiras numerosas demais para serem contadas”.
“A conclusão é que aqueles que exigem que ninguém pense em raça (um clássico paradoxo do elefante rosa) se recusam a ver, muito menos resolver, o elefante na sala – as disparidades ligadas à raça que continuam a impedir a realização plena de nosso potencial da nação”, ela sublinhou.
“O tribunal subverte a garantia constitucional de proteção igualitária ao consolidar ainda mais a desigualdade racial na educação, o próprio fundamento de nosso governo democrático e sociedade pluralista”, declarou Sotomayor. “Como a opinião do tribunal não é fundamentada em lei ou fato e contraria a visão de igualdade incorporada na 14ª Emenda, eu discordo.”
Foi somente após a instituição dos programas de ação afirmativa nas universidades que os negros norte-americanos começaram a fazer progressos substanciais nas matrículas. Em 1982, o número de estudantes negros matriculados em instituições de ensino superior nos EUA aumentou 164%, em comparação com 1970.
ESBULHO É RECHAÇADO
Todos os setores progressistas dos EUA, muitos setores liberais e até mesmo o porta-voz-mor do imperialismo, Joe Biden, rechaçaram o esbulho.
“Em uma sociedade ainda marcada pelas feridas das disparidades raciais, a Suprema Corte demonstrou uma ignorância deliberada de nossa realidade”, disse Derrick Johnson, o presidente da mais tradicional entidade que representa negros e pardos nos EUA, a NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor).
“Não permitiremos que pessoas inspiradas pelo ódio no poder voltem o relógio e prejudiquem nossas vitórias arduamente conquistadas”, prometeu Johnson. “Os truques do passado sombrio da América não serão tolerados. Deixe-me ser claro – a ação afirmativa existe porque não podemos confiar em faculdades, universidades e empregadores para promulgar práticas de admissão e contratação que abraçam a diversidade, a equidade e a inclusão.” A maioria dos americanos, 63%, concorda com a ação afirmativa e com o alcance dessas metas, ele observou.
“A decisão de hoje da Suprema Corte desmonta mais de 40 anos de precedentes para aumentar a representação de grupos marginalizados em universidades e campi universitários, apagando décadas de progresso”, disse a deputada Nanette Barragán, que preside a bancada hispânica do Congresso.
“É um golpe desnecessário na promessa da América de oportunidades iguais e justas. Não deve ser vista como uma vitória para a comunidade asiática nativa do Havaí e das ilhas do Pacífico”, manifestou-se o Congressional Asian Pacific American Caucus.
“Se a Suprema Corte estivesse falando sério sobre suas alegações ridículas de ‘daltonismo’, eles teriam abolido as admissões herdadas, também conhecidas como ação afirmativa para os privilegiados. 70% dos candidatos legados de Harvard são brancos. A SCOTUS não tocou nisso – o que teria impactado eles e seus clientes”, tuitou causticamente a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, eleita por um dos distritos mais pobres de Nova York.
FANTASIA JURÍDICA
O escritor Ibram X Kendi advertiu que ao banir a ação afirmativa, a Suprema Corte “não baniu” usar a raça nas admissões as universidades. “Racialmente neutro” é uma fantasia legal, a mais recente para conservar o racismo. Como Uma Jayakumar e eu escrevemos na The Atlantic, “racialmente neutro” é o novo “separado mais igual”.
Shahrzad Shams, do Roosevelt Institute, denunciou que a decisão de efetivamente derrubar a ação afirmativa “equipara as distinções feitas entre grupos raciais para fins de remediação com aquelas feitas para fins de subjugação”. Falsa equivalência – apontou – que “impede nosso progresso em direção à justiça racial e limita nossa capacidade de tomar medidas significativas para lidar com o racismo sistêmico”.
A presidente do maior sindicato dos EUA, a Associação Nacional de Educação, com três milhões de membros, Becky Pringle, acusou a Suprema Corte de “reforçar as barreiras” que por muito tempo foram usadas “para impedir que negros, pardos e indígenas tenham acesso às oportunidades que todos nós merecemos e buscamos para realizar nossos sonhos”.
“Quando garantimos que os muitos talentos e experiências dos alunos de cor não sejam negligenciados em processos de admissão tendenciosos contra eles, criamos escolas, um país e um futuro que inclui todos nós”. Ela concluiu chamando as escolas, faculdades e universidades a redobrarem “seus esforços para garantir que nossas instituições educacionais apoiem todos os alunos de maneira igualitária e equitativa”.
“NÃO É UM TRIBUNAL NORMAL”
“O tribunal acabou efetivamente com a ação afirmativa nas admissões em faculdades e eu discordo veementemente da decisão do tribunal”, afirmou o presidente Biden. Embora “talento, criatividade e trabalho duro estejam em todo o país”, a igualdade de oportunidades não está, ele acrescentou. Indagado por um repórter na Casa Branca se “este é um tribunal desonesto?”, Biden parou por um momento antes de dizer: “Este não é um tribunal normal”, e continuou porta afora.
Antes mesmo de a decisão sair oficialmente, Trump já andava se gabando de ter nomeado “três dos seis” juízes que votaram contra as cotas raciais.
Na sexta-feira, em mais uma decisão infame, a Suprema Corte pôs fim ao programa de perdão de empréstimos estudantis do governo Biden, que pretendia conceder um alívio de até US$ 20.000 em dívidas contraídas para cursar o ensino superior de 43 milhões de pessoas.
Mas o tiro pode sair pela culatra: com eleições marcadas para 2024, os trumpistas de toga estão dando aos negros em geral e aos estudantes uma razão maior, muito maior, para ir às urnas, do que a rala simpatia pela insossa Kamala Harris. Quando os eleitores negros vão às urnas em massa, a coisa costuma ficar difícil para os republicanos.
O que a decisão dos racistas de toga pretende alcançar já pode ser antecipado no que ocorreu nos nove estados norte-americanos onde já vigorava.
Na Califórnia, a ação afirmativa foi proibida em instituições públicas em 1996 com a aprovação da Proposição 209. A matrícula de estudantes negros da Universidade da Califórnia em Berkeley caiu de 5,9% em 1995 para 3,8% em 2022.
Na Universidade de Michigan, as matrículas de negros na graduação estavam em 7% em 2006, antes de uma proibição local. Caíram após a proibição para 4% em 2021, informou o New York Times.
Ao dar a vitória na primeira instância à manutenção das cotas raciais, em um caso contra a Universidade da Carolina do Norte, a juiza federal Loretta Biggs havia assinalado que a instituição “continua a enfrentar desafios para admitir e matricular minorias sub-representadas, particularmente homens afro-americanos, hispânicos e nativos americanos”, acrescentando que em 2013 a matrícula de homens negros na turma do primeiro ano havia caído para “menos de 100 alunos”.