De acordo com o Anuário, redução nas mortes tem relação direta com o investimento dos Estados em segurança e no combate ao crime organizado
As regiões Nordeste e Norte puxaram para baixo o número de mortes violentas intencionais ocorridas em 2022, com queda de 4,5% e 2,7% para cada grupo de 100 mil habitantes de acordo com o Anuário Brasileiro do Fórum de Segurança Pública 2023 (FBSP), divulgado nesta quinta-feira (20). No geral, a taxa de mortes violentas intencionais caiu 2,4% no país em 2022 na comparação com 2021 na média nacional.
São consideradas mortes violentas não intencionais aquelas decorrentes de homicídios dolosos, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, intervenção policial e morte de policiais.
A taxa de mortes violentas intencionais (MVI) recuou de 24 para cada 100 mil habitantes em 2021, para 23,4 a cada 100 mil no ano passado. Em números absolutos, a quantidade caiu de 48.431 em 2021, para 47.508 em 2022 – a menor desde 2011, desde o início do monitoramento.
Para Isabela Sobral, supervisora do Núcleo de Dados do FBSP, a queda nacional foi puxada principalmente pela diminuição da violência nos estados do Norte e Nordeste. Nas regiões Sul e Centro-Oeste, as taxas de MVI cresceram 3,4% e 0,8%, respectivamente. As demais regiões registraram queda: Sudeste (-2%); Norte (-2,7%); e Nordeste (-4,5%).
De acordo com Isabela, a queda na taxa de MVI nos estados do Norte e Nordeste em 2022 é uma acomodação dos números, que pode ser explicada pelo patamar alto de comparação dos anos anteriores, a partir de 2016. “E essa explosão no Norte e Nordeste é muito devida à questão do crime organizado”, analisa.
“A baixa [no Norte e Nordeste] está muito relacionada a essa questão de ter tido uma explosão muito grande de violência nos últimos anos lá. Agora, está voltando ao patamar anterior a essa explosão. E essa explosão no Norte e Nordeste é muito devida à questão do crime organizado”, avalia. “Facções como o PCC e o Comando Vermelho, que surgem no Sudeste nos anos 2000, migram para as regiões Norte e Nordeste e as mortes explodem”, destaca Isabela.
“E essa redução que a gente observa agora tem a ver com o passar desse momento de conflito maior que ocorreu a partir de 2016”, continua.
Por sua vez, Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do FBSP, avalia que “O Nordeste se virou por conta própria, começou a fazer política com orçamento próprio. O Ceará contratou mais pessoal. Vários estados investiram na modernização da gestão”, analisa. “Os números começam a sugerir que esses governos estão começando o movimento de investimento e capacitação que aconteceu no Sudeste nos anos 1990”, disse Lima.
O governo Bolsonaro cortou recursos para a segurança pública. Em 2018, o governo federal alterou as regras das Loterias da Caixa para que o setor obtivesse também os repasses oriundos dessas apostas. Assim, além do recurso orçamentário, a área passou a receber verbas das loterias. Posteriormente, porém, o governo federal decidiu por financiar o repasse aos estados do Fundo Nacional de Segurança Pública exclusivamente com os recursos das loterias.
Embora a queda nos índices gerais da violência no país, o Norte e o Nordeste ainda têm os estados mais violentos. O Amapá lidera o ranking de estado mais violento do Brasil em 2022, com taxa de MVI de 50,6 por 100 mil habitantes, mais que o dobro da média nacional (23,4/100mil). O segundo estado mais letal foi a Bahia, com taxa de 47,1 por 100 mil habitantes, seguido do o Amazonas (38,8/100 mil).
Já as unidades da federação com as menores taxas de violência letal foram São Paulo, com 8,4 mortes por 100 mil habitantes, Santa Catarina, com 9,1 por 100 mil, e o Distrito Federal, com taxa de 11,3. Ao todo, 20 estados registraram taxas de MVI acima da média nacional.
A queda desacelerou entre 2021 e 2022, mas mantém uma tendência verificada desde 2018. Foram 47.508 vidas perdidas no conjunto que inclui os crimes de homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial. Entre 2020 e 2021, por exemplo, os números caíram 4%. Agora, a redução foi de apenas 1,9%.
A taxa de homicídios dolosos —indicador que reúne a maior parte das mortes violentas intencionais — ficou em 19,5, com queda de 2,2% entre 2021 e 2022. No 16ª anuário, o Brasil era o oitavo país com mais mortes violentas por 100 mil habitantes do mundo. A edição atual não tem dados atualizados e cita que o país ainda não incluiu informações sobre 2021 e 2022 no banco da ONU.
Já as mortes por intervenção de agentes policiais chegaram a 6.430, com tímida redução de 1,4%. A Amazônia Legal, que havia registrado aumento em homicídios na edição anterior da publicação, concentrou, no ano passado, uma em cada cinco mortes violentas intencionais.
VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES E CRIANÇAS EM ALTA
Apesar da melhora nos números de modo geral, recortes do levantamento mostram particularidades preocupantes, quando se trata da violência praticada contra mulheres e crianças.
Os casos de estupro e estupro de vulnerável notificados no ano passado às autoridades policiais chegaram a 74.930, o que representa 36,9 em cada grupo de 100 mil habitantes. O número é 8,2% maior do que o registrado em 2021. Os casos de estupro somaram 18.110 vítimas em 2022, crescimento de 7% em relação ao ano anterior, e os de estupro de vulnerável, 56.820 vítimas – 8,6% a mais do que no ano anterior.
24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram capazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). Outro fator preocupante mostrado no levantamento, é que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. Assim, conforme a estimativa, o patamar de casos de estupro no Brasil é de 822 mil casos anuais.
Crianças e adolescentes continuam sendo as maiores vítimas da violência sexual: 10,4% das vítimas de estupro eram bebês e crianças com idade até 4 anos; 17,7% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 33,2% entre 10 e 13 anos, segundo o relatório. Ou seja, 61,4% tinham no máximo 13 anos. Aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade. Pela legislação brasileira, uma pessoa só passa a ser capaz de consentir a partir dos 14 anos.
No ano passado, segundo o anuário, 88,7% das vítimas eram do sexo feminino e 11,3%, do masculino; 56,8% eram pretas ou pardas (no ano anterior eram 52,2%); 42,3%, brancas; 0,5%, indígenas; e 0,4%, amarelas.
“Embora não tenhamos pesquisas sobre o tema no Brasil, é comum ouvir relatos de profissionais de educação, ou mesmo de policiais, que indicam que foi o professor ou a professora que notou diferenças no comportamento da criança e primeiro soube do abuso”, cita o relatório.
“Assim, a escola tem papel fundamental para identificar episódios de violência, mas, principalmente, em fornecer o conhecimento necessário para que as crianças entendam sobre abuso sexual e sejam capazes de se proteger”, aponta o estudo.
Ainda segundo o anuário, é comum a criança não ser capaz de reconhecer o abuso, seja por falta de conhecimento, seja por vínculo com o agressor. “O abuso é praticado por pais, padrastos, avós e outros familiares”.
“É compreensível que a criança tenha algum sentimento de amor, ou mesmo lealdade, pelo agressor, já que em geral o abuso é praticado por pais, padrastos, avós e outros familiares. Além disso, o abusador tende a manipular a criança com ameaças ou subornos, o que garante o silêncio da vítima”.
Conforme os registros 82,7% dos agressores são conhecidos das vítimas e 17,3%, desconhecidos. Entre as crianças e adolescentes com idade até 13 anos, os principais autores são familiares (64,4% das ocorrências) e 21,6%, conhecidos da vítima, mas sem relação de parentesco.
Já entre as vítimas de 14 anos ou mais, chama a atenção que 24,4% dos abusos foram praticados por parceiros ou ex-parceiros íntimos delas, 37,9% por familiares e 15% por outros conhecidos. Apenas 22,8% dos estupros de pessoas com mais de 14 anos foram praticados por desconhecidos.
Segundo Juliana Brandão, que também integra o Fórum de Segurança Pública, o número de casos de estupros é o maior desde que a instituição começou a acompanhar tais ocorrências. Para a pesquisadora, é difícil atribuir o aumento a um único fator, principalmente porque se trata de um crime extremamente complexo.
“Neste caso, estamos falando de crianças com até 13 anos, consideradas vulneráveis. Esse aumento dos números é apenas o aumento das notificações, porque o crime de estupro por si só já é um crime que, pela natureza que carrega, já tem muita subnotificação. Quando estamos olhando para esse universo mais de crianças e adolescentes, é mais difícil ainda imaginar que crianças e adolescentes foram responsáveis por notificar a grande violência que sofreram”, afirmou.
É possível que esse resultado seja fruto de um conjunto de fatores que pode ser explicado, em parte, pelo maior empoderamento das vítimas, mas não se pode desconsiderar que há pessoas que estão sendo os autores dessa comunicação oficial para as autoridades, os adultos, explica Juliana.
“E são esses adultos que conseguiram, de alguma forma, funcionar fazendo essa mediação, ouvindo o relato das crianças e adolescentes e levando para a polícia para que o registro fosse efetivado”, acrescentou.
DESMONTE DA POLÍTICA DE PREVENÇÃO
No caso da violência contra às mulheres, a assessora internacional do Ministério das Mulheres Rita Lima, acredita que o crescimento no número de homicídios tem relação direta com o desmonte de políticas de prevenção.
“A ausência de equivalentes públicos da violência contra mulher é um prato cheio e faz com que pessoas e instituições reproduzam opressões”, afirmou, ao participar nesta quinta durante o seminário “Combate ao feminicídio: uma responsabilidade de todos”, promovido pelo Correio Braziliense.
Para a servidora, as políticas públicas precisam garantir que os direitos humanos e das mulheres integrem o currículo das escolas. “É preciso fomentar um novo olhar sobre as mulheres, reconfigurar a nossa mente. Mas para isso é necessário transformar uma cultura de visão de mundo”, defendeu Rita Lima.
Também no encontro, a secretária nacional de enfrentamento à violência contra mulheres do ministério, Denise Motta Dal, anunciou que a pasta tem atuado na reestruturação do programa Mulher Viver Sem Violência, lançado em 2013 e extinto no governo de Jair Bolsonaro. O projeto foi relançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 8 de março, e prevê a implementação de ações de enfrentamento à violência contra as mulheres.
O ponto alto do projeto é a implementação das casas da Mulher Brasileira, onde, no mesmo local, funciona a Vara de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça, a Promotoria Pública, e a Defensoria Pública, bem como atendimento social e psicológico, hospedagem por até 48 horas e o trabalho na área de autonomia econômica.
“A integração desses serviços é fundamental, não só para facilitar a mobilidade física da mulher em situação de violência em busca de serviços, mas para que todas as áreas acompanhem o atendimento às mulheres, buscando melhores soluções e encaminhamentos”, explicou Denise
A secretária pontuou ainda que, após a extinção do programa, algumas casas da Mulher Brasileira foram construídas com emendas parlamentares. Com a retomada do projeto Mulher Viver Sem Violência, o Ministério das Mulheres, construirá, em parceria com o Ministério da Justiça, 40 casas da Mulher Brasileira.
“Pretendemos que todas as capitais tenham uma. Atualmente, as casas estão em funcionamento em São Paulo, Boa Vista, Ceilândia, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza e São Luís”, acrescentou Denise.
As informações presentes no 17º Anuário Brasileiro de Segurança Públicas foram fornecidas pelas secretarias de Segurança Pública e órgãos correlatos nos estados. Para os cálculos de população, são usadas estimativas e o número indicado em 2022 pela edição mais atualizada do Censo Demográfico.
Acesse aqui a íntegra do Anuário:
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf