Documentos se mantiveram sigilosos até agora. Eles alertavam que Brasil poderia viver uma tragédia por campanha contra vacinas e insistência no uso de cloroquina. Mais de 700 mil pessoas morreram
A abertura de relatórios sigilosos da Agência Brasileira de Informações (Abin) confirma as denúncias, feitas à época da pandemia por especialistas, sobre a atuação criminosa de Jair Bolsonaro diante da maior crise sanitária já vivida pelo país. Reportagem da Folha de S. Paulo desta sexta-feira (28) mostra mais de mil relatórios da Abin e do GSI, que ficaram sob sigilo, alertando sobre os perigos da postura do governo diante da doença.
Os documentos projetavam o aumento no número de casos e mortes no Brasil, enquanto o ex-presidente Jair Bolsonaro boicotava medidas de combate à Covid-19 e o acesso às vacinas. Os relatórios foram produzidos entre março de 2020 a julho de 2021. O material tem folhas com carimbos da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), GSI (Gabinete de Segurança Institucional) ou sem identificação.
Os relatórios confirmavam que o distanciamento social e a vacinação eram formas efetivas de controlar a doença, enquanto o governo combatia publicamente essas medidas sanitárias. Eles citam também estudos que desaconselham o uso da cloroquina, na mesma ocasião em que Bolsonaro fazia propaganda da droga. Os estudos, desconsiderados por Bolsonaro, alertavam também sobre a possibilidade de colapso da rede de saúde e funerária no Brasil.
Os agentes da Abin e GSI elaboraram relatórios apontando falta de transparência do governo Bolsonaro na divulgação dos dados da pandemia, além de lentidão do Ministério da Saúde para definir estratégias de testagem e combate à doença. Dezenas de especialistas alertaram o governo para as consequências trágicas para a população brasileira de suas atitudes negacionistas.
O professor Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas-RS, afirmou na ocasião que pelo menos metade das mais de 700 mil mortes provocadas pelo vírus poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse seguido as orientações da ciência e da medicina. O Brasil, com 2,63% da população mundial, teve 12,9% do total das mortes por Covid-19.
Segundo a reportagem ao menos 18 relatórios elaborados nos primeiros meses da crise citam risco de “colapso” em diversas regiões do Brasil. Outros 12 documentos de maio de 2020 afirmam que o Brasil não havia atingido o pico da doença. Em março de 2020, Bolsonaro dizia que a doença “é muito mais fantasia”, “não é isso tudo que a grande mídia propaga”.
Documento da Abin de março de 2020 afirmava que “medidas como essas [distanciamento social] podem reduzir o tempo para que a epidemia alcance o pico do número de caos de contágio”. Em fevereiro do ano seguinte, ele voltou a afirmar que ainda havia “idiotas que até hoje ficam em casa”. No mês seguinte, quando o Brasil chegou a marca de 320 mil mortos, Bolsonaro pediu o fim das “frescuras” e do “mimimi” sobre a doença.
Em 7 de abril de 2021, o Brasil registrou 341.097 mortos, conforme dados do consórcio de veículos de imprensa. A projeção que havia sido feita em 26 de março pelo setor de inteligência era de atingir de 330.216 a 338.558 mortos, no melhor e pior cenário, respectivamente, para esta data.
Os relatórios citam a vacinação como medida efetiva contra a Covid. “Em um cenário de descontrole da pandemia no país, maior seria a chance do vírus sofrer mutações em série e, consequentemente, afetar a eficácia das vacinas desenvolvidas”, afirma o relatório que leva carimbo do GSI. Dias mais tarde, em 11 de fevereiro, Bolsonaro disse que “o cara que entra na pilha da vacina, só a vacina, é um idiota útil. Nós devemos ter várias opções”.
Esses papéis foram originalmente produzidos para as discussões do comitê chefiado pela Casa Civil sobre as ações do governo durante a pandemia, segundo integrantes da gestão passada. Três membros da cúpula do Ministério da Saúde de Bolsonaro disseram à Folha que desconheciam os relatórios. Mais de 1.100 arquivos foram disponibilizados à Folha após diversos pedidos baseados na LAI (Lei de Acesso à Informação).