Governo de um dos principais fornecedores de urânio para Europa, com bases militares dos EUA, França e Alemanha, enfrentava crescente insatisfação popular. Não está claro como o poder instalado lidará com a deteriorada condição da população do país que sofre sob regime neocolonial
O chefe da guarda presidencial do Níger, general Abdourahmane Tchiani, se autoproclamou chefe do “Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria” (CNSP) na sexta-feira (28) pela tevê estatal, dois dias depois que sua unidade derrubou e prendeu no palácio o presidente eleito Mohamed Bazoum.
Na véspera, o chefe do Estado-Maior, Abdou Sidikou Issa, havia comunicado a adesão do exército, para impedir a desestabilização do país, “preservar a integridade física” do presidente e da sua família e evitar “um confronto mortal… que possa criar um banho de sangue e afetar a segurança da população”.
Ex-colônia francesa de 25 milhões de habitantes e principal fornecedor de urânio para o sistema energético da França, o Níger fica no Sahel, a região subsaariana assolada por milícias jihadistas, um efeito colateral da destruição da Líbia pela Otan e sua tropa de choque jihadista e assassinato do líder Muammar Khadafi em 2011, que desestabilizou a região.
Desde a intervenção da Otan na Líbia, extremistas ligados ao Estado Islâmico e organizações análogas causaram milhares de mortes e deslocaram seis milhões de pessoas no Sahel. País sem litoral, o Níger abriga uma base de drones dos EUA e contingentes militares franceses e norte-americanos. Quando as tropas francesas foram expulsas do vizinho Mali no ano passado, Bazoum acertou com Paris a ida dessas forças para o Níger. Curiosamente, o Níger foi um dos três paises africanos que recusou o convite para a cúpula Rússia-Africa.
Bazoum era visto também como um parceiro imprescindível na estratégia neocolonial no Sahel, além de ser tido ainda como um colaborador exemplar dos países europeus na repressão aos migrantes que rumam ao Mediterrâneo, tendo concordado em receber de volta centenas deles oriundos dos centros de detenção na Líbia.
Em sua cobertura sobre o golpe, a CNN deixou patente a insatisfação de Washington, Berlim e Paris com a derrubada de Bazoum, que parece tê-los tomado de surpresa:
Vejamos trechos da reportagem da rede norte-americana:
“Qualquer ruptura na ordem constitucional terá consequências para a cooperação entre a UE e o Níger, incluindo a suspensão imediata de todo o apoio orçamentário”, disse o chefe de política externa da UE, Josep Borrell, nesta sexta-feira.
A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, disse que a cooperação com o governo do Níger depende de seu “compromisso contínuo com os padrões democráticos”.
Alemanha, Itália, França e Estados Unidos têm tropas no Níger em treinamento militar e missões de contrainsurgência.
O ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, disse que a situação ainda é dinâmica e que a prioridade é a segurança dos soldados no terreno.
“Ainda não está claro como a liderança se posicionará sobre o envolvimento de parceiros ocidentais no futuro”, disse ele à revista Spiegel.
Ao manifestar apoio a “saída constitucional para a crise”, o ministro do Exterior da Rússia, Sergei Lavrov, ironizou o intenso incômodo manifestado pelos EUA e UE quanto à troca de poder no Niger, apontando que – de forma contraditória – os mesmos governos sustentam, até hoje, a junta que é resultado do golpe de Estado que derrubou o governo legítimo da Ucrânia e mantém na ilegalidade todos os partidos de oposição aos golpistas.
“MORTE, HUMILHAÇÃO E FRUSTRAÇÃO”
O general de 62 anos asseverou que a virada de mesa foi para evitar “o fim gradual e inevitável” do país, atribuindo a Bazoum o desejo de tentar convencer as pessoas de que “tudo está indo bem… a dura realidade (é) uma pilha de mortos, deslocados, humilhação e frustração”. “Apesar dos grandes sacrifícios, a abordagem de segurança [de Bazoum] não trouxe segurança ao país”, acrescentou.
Ele prometeu ainda lutar contra “o desvio de fundos públicos, contra a impunidade, a corrupção em todas as suas formas e o nepotismo”, face ao que “o governo caído mostrara seus limites”.
A revista Jeune Afrique atribuiu o desenlace à intenção de Bazoum de destituir o general da chefia da Guarda Presidencial. Aparentemente, Tchiani sacou mais rápido. Segundo a Al Jazeera, o general Tchiani é considerado um “aliado próximo” do ex-presidente Mahamadou Issoufou, que liderou o país até 2021. Em março daquele ano, o general encabeçou a resistência a uma tentativa frustrada de impedir a posse de Bazoum. Esta, ainda assim, considerada a “única” transferência pacífica de poder desde a independência em 1960.
A União Africana bem como a organização regional Cedeao (África Ocidental) se posicionaram contra o golpe e o presidente do vizinho Benin tentou ir à capital Niamey para ajudar a encontrar uma saída para a crise. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, país que realiza neste momento uma cúpula em conjunto com o continente africano, pediu que o presidente Bazoum seja libertado e exortou por uma solução constitucional. A libertação dele foi exigida, também, pelo secretário-geral da ONU, Antonio Guterres. Paris e Washington condenaram o golpe.
A junta não retirou o celular de Bazoum, que continua conversando com o presidente francês Emmanuel Macron, com o secretário de Estado Antony Blinken e com Guterres, além de postar no Twitter. O porta-voz do CNSP anunciou a suspensão das instituições de poder e o estabelecimento de toque de recolher até segunda ordem. O CNSP reiterou a observância de todos os compromissos internacionais do Niger e pediu aos parceiros externos que “não interfiram”.
Na decisão do Estado-Maior de evitar o confronto com a Guarda Presidencial aparentemente pesou a ida às ruas de Niamey de centenas de pessoas, diante da Assembleia Nacional, exigindo a retirada das tropas francesas e com muitos, inclusive, exibindo bandeiras russas, como registrou a TV5Monde francesa.
Já conforme a Al Jazeera, um grande número de manifestantes violentos teria saqueado e incendiado a sede do partido governista na capital na quinta-feira: “colunas de fumaça preta saíram do prédio depois que centenas de golpistas que se reuniram em frente à Assembleia Nacional se mudaram para lá”.
Protestos semelhantes foram vistos anteriormente em Mali e Burkino Fasi, diante do fracasso das tropas francesas em protegerem os cidadãos dos terroristas em cuja gênese os próprios serviços secretos franceses e norte-americanos estiveram envolvidos, na sua guerra híbrida contra a Siria, e que se depois se metastizaram no Sahel.
“Estamos fartos”, disse Omar Issaka, um dos manifestantes de quinta-feira em Niamey. “Estamos cansados de ser alvo dos homens do mato. … Vamos apelar para a Rússia agora.” “Esperamos que se resolva a crise de segurança. Hoje o terrorismo erradicou muitos vilarejos… nossos filhos ficaram viúvos e nossos netos órfãos”, disse Hadjia Aiss, uma idosa que estava entre a multidão do lado de fora do Parlamento.
NEOCOLONIALISMO
E, claro, as contradições acumuladas não se limitam à incapacidade de conterem os terroristas, já que a França é a potência colonial e seu passivo é imenso. A BBC registrou em 2021 que a França “é agora alvo de amargas queixas e críticas africanas em uma escala provavelmente sem precedentes. No mês passado, um comboio de tropas francesas rumo ao norte para apoiar a luta contra militantes islâmicos foi repetidamente bloqueado por manifestantes ao cruzar Burkina Faso e Níger”.
E continua: “Em setembro, o primeiro-ministro do Mali, Choguel Maiga, foi recebido com uma onda de comentários simpáticos quando usou um discurso na ONU para acusar a França de ‘abandonar seu país no meio da fuga’, depois que Macron ‘começou a reduzir o envio de tropas no país’”.
“Entre os comentaristas progressistas da África Ocidental e a juventude urbana, agora é comum ouvir apelos pela abolição do franco CFA – a moeda regional usada por muitos países francófonos e que está atrelada ao euro sob uma garantia do governo francês. Seus críticos dizem que isso permite à França controlar as economias dos países que o utilizam, enquanto a França diz que garante a estabilidade econômica”.
A situação no Sahel “se deteriorou em uma ferida purulenta”, acrescenta. “A presença militar francesa alimenta um sentimento de ressentimento cada vez mais generalizado na África Ocidental. Apesar de um esforço militar maciço e sustentado – com mais de 5.000 soldados mobilizados e mais de 50 mortos – a França não conseguiu superar de forma decisiva a ameaça dos jihadistas, cujos ataques às comunidades locais e às forças de segurança continuam”.
GO HOME
Como registrou o portal Antiwar, os EUA têm uma presença militar significativa no Níger, com pelo menos 1.016 soldados no país. Os EUA construíram uma grande base de drones no Níger, a Base Aérea 201, que abriga drones armados MQ-9 Reaper e apoia as operações de contraterrorismo dos EUA na África.
Em 2002 e 2003, quando começou a “assistência antiterrorista” do Pentágono na África, mal chegaram a nove os ataques no continente inteiro. “No ano passado, o número de eventos violentos em Burkina Faso, Mali e no oeste do Níger chegou a 2.737, de acordo com um relatório do Centro Africano de Estudos Estratégicos, uma instituição de pesquisa do Departamento de Defesa. Isso representa um salto de mais de 30.000 por cento desde os EUA começaram seus esforços de contraterrorismo”, registrou o jornalista Nick Turse, no The Intercept.
Turse observou que pelo menos 10 golpes lançados na África Ocidental desde 2008 foram liderados por soldados treinados pelos EUA, inclusive em Burkina Faso, Mali, Gâmbia, Guiné e Mauritânia. Ele disse que não estava imediatamente claro se os soldados que tomaram o poder no Níger receberam treinamento dos EUA.
PADRÕES DUPLOS
Quanto à hipocrisia de Washington sobre essas questões, o chanceler Lavrov, depois de reafirmar a posição russa sobre a restauração da ordem constitucional no Níger, aproveitou para repudiar tais duplos padrões.
“O golpe (no Níger) foi condenado pelo secretário de Estado dos EUA Blinken, os britânicos o condenaram, o secretário-geral da ONU – todos disseram que é inaceitável mudar o governo de forma não democrática. A esse respeito, é claro, você se lembra do golpe de fevereiro de 2014 na Ucrânia e das perguntas ao Ocidente, que garantiu os acordos violados pela oposição, por que eles não podem chamar a oposição à ordem, fomos respondidos muito vagamente, que o processo democrático às vezes é imprevisível”, salientou Lavrov.
“Julgue por si mesmo como nossos colegas ocidentais tratam os golpes de Estado, por um lado, aqueles que acontecem longe e, por outro lado, aqueles que eles próprios organizam”, acrescentou.