WALTER NEVES
CLÓVIS MONTEIRO
Núcleo de Pesquisa e Divulgação em Evolução Humana
Instituto de Estudos Avançados – USP
Reza a lenda que após 5 milhões de anos de evolução surgiu na nossa linhagem, a dos hominínios, uma espécie denominada Homo erectus, a partir da qual teria ocorrido todo o resto do processo evolutivo humano, incluindo o surgimento do Homo sapiens ou homem moderno há cerca de 250 mil anos atrás.
Até o momento, assume-se que o Homo erectus surgiu na África há cerca de 1,8 milhão de anos, tendo rapidamente se expandido para os demais continentes do velho mundo. O Homo erectus teria chegado ao Cáucaso por volta de 1,75 milhão de anos, no sudeste asiático por volta de 1,6 milhão de anos e na Europa por volta de 1,4 milhão de anos. Muitas vezes, alguns autores preferem denominar o Homo erectus que chegou na Europa por volta de 1,4 milhão de anos, de Homo antecessor, mas não há consenso sobre o assunto. Assumia-se, até recentemente, que o Homo erectus surgiu a partir do Homo habilis, também africano, cujas datações remontam há 2,4 milhões de anos. Em suma, o Homo erectus teria sido a primeira espécie de hominínio a sair do continente africano, tornando nossa linhagem cosmopolita.
Alguns achados recentes, entretanto, têm questionado esse quadro que já se mantinha na literatura especializada por pelo menos quatro décadas. O primeiro desses achados ocorreu nos anos 1990 e 2000, no sítio arqueológico de Dmanisi, na República da Geórgia, em pleno Cáucaso. Ali foram encontrados cinco crânios de hominínios datados de 1,75 milhão de anos, conforme já mencionado. Tendo em vista essa grande antiguidade dos achados de Dmanisi, alguns autores começaram a se questionar se realmente os hominínios teriam saído da África pela primeira vez por volta de 1,8 milhão de anos. Se isso fosse verdade, significaria que em apenas 50 mil anos nossos ancestrais teriam cruzado os milhares e milhares de quilômetros que separam a África do Cáucaso.
Algumas características da morfologia dos cinco crânios de Dmanisi também ajudaram a complicar o cenário. Quando esses crânios são comparados com seus congêneres africanos, eles não mostram uma morfologia totalmente compatível com a do Homo erectus. Na verdade, enquanto alguns crânios de Dmanisi lembram de fato essa espécie, outros ainda insinuam uma certa semelhança com o Homo habilis, que como já afirmamos, precedeu o Homo erectus na África. Mas isso também é uma questão extremamente debatida entre os especialistas.
Outros achados mais recentes somaram-se às dúvidas quanto à história oficial do Homo erectus. Há cerca de 10 anos, foram encontrados artefatos de pedra lascada por hominínios na China, datados por volta de 2,1 milhões de anos. Quase que simultaneamente, nosso grupo de pesquisa encontrou na Jordânia artefatos de pedra lascada datados em 2,5 milhões de anos. Oras, como vimos anteriormente, o Homo erectus só surgiu na África há 1,8 milhão de anos, então não poderia ter sido essa espécie de hominínio que primeiramente teria saído do continente africano, já que, tanto os vestígios da China, quanto os da Jordânia, indicam que essa saída teria ocorrido pelo menos 500 mil anos antes.
Assim, tem sido proposto recentemente na literatura, ainda que timidamente, que talvez o Homo erectus não tenha sido a primeira espécie de nossa linhagem a sair da África. Alguns especialistas, entre eles, os autores deste artigo, acreditam que a primeira espécie que de fato saiu da África foi o Homo habilis, diga-se de passagem, o autor dos primeiros artefatos de pedra lascada reconhecidamente feitos por humanos.
A questão só será resolvida, na verdade, quando fósseis humanos forem encontrados na China ou na Jordânia nos sítios acima mencionados, ou então esqueletos a eles contemporâneos em outras partes do velho mundo. De acordo com essa visão, o Homo habilis teria deixado a África por volta de 2,5 milhões de anos e dado origem no Cáucaso ao Homo erectus. Esse Homo erectus caucasiano (e não mais africano) é que teria se espalhado pelo resto do mundo inclusive voltado para a África, tendo ali chegado por volta de 1,8 milhão de anos. Embora não haja evidências empíricas suficientes para sustentar esse novo quadro, ele certamente explica melhor o caráter transicional dos crânios de Dmanisi.