CAROLINA MARIA RUY
A pauta identitária tem um verniz de movimento social, mas, por dentro, seu modo de ação desorganiza a esquerda, rompendo com sua premissa: a luta por igualdade e justiça social.
Ao mesmo tempo em que esse discurso busca se sobrepor a instituições como partidos e sindicatos, colocando-se como “a nova esquerda” no lugar da “velha política”, por trás, ele aproveita a criação de nichos de mercado a partir das conquistas dessas próprias instituições (partidos e sindicatos). Ou seja, se hoje grupos historicamente oprimidos como mulheres, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, têm maior capacidade de consumo, isso é resultado de conquistas sindicais e de políticas públicas. O problema não é se tornar mercado consumidor. O problema é o livre mercado sequestrar causas ideológicas, castrando seu ímpeto união e de luta.
A ideia de que o fim da União Soviética representou também o fim da ação política de base classista está na base do discurso identitário. A “abundância” da produção capitalista teria contemplado a massa popular e, assim, dissolvido os ideais socialistas. Restaria para a esquerda dedicar-se à luta pela representatividade dos grupos oprimidos em espaços de poder.
Este argumento foi exposto sem rodeios no jornal Folha de São Paulo de 23/09/2023, em uma matéria que se propõe “explicar” o que é a esquerda. Segundo a Folha:
“Com a queda do Muro de Berlim e o fracasso do projeto da União Soviética a esquerda passou a incorporar cada vez mais bandeiras relativas aos direitos de grupos marginalizados. Inserem-se nesse contexto o feminismo e os movimentos antirracista e LGBTQIA+”.
O cientista político convidado pelo jornal para falar do assunto, Bruno Bolognesi, diz na matéria que: “De forma geral, a esquerda hoje não é mais uma esquerda de combate ao capitalismo, é por igualdade para os oprimidos’”. Ele diz mais: “Os valores mudaram porque o bloco socialista acabou como ideal histórico e também porque essas pessoas vivem em um mundo de maior abundância’”.
As afirmações do professor e a definição de esquerda da Folha estão alienadas da realidade. A abundância de produtos no mundo capitalista é muito mal distribuída. Além disso, no artigo é negligenciada a ascensão da China comunista nos últimos 40 anos.
O problema é ainda mais profundo. Nos anos que se seguiram ao fim da URSS, ideias como a de um mundo de liberdade e sem fronteiras ganharam força no Ocidente. A tese do fim da história, reeditada por Francis Fukuyama, segundo a qual a democracia capitalista seria o auge da civilização humana, marcou o espírito daquela época. A hegemonia liberal pós Guerra Fria também ficou impressa na sentença da primeira ministra do Reino Unido, Margareth Tatcher, que disse, em 1993: “Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”.
Mas “O fim da história” e o “mundo de indivíduos” eram dogmas que entravam em contradição com a nítida falência do capitalismo. A incapacidade de dar soluções para os problemas da pobreza e da desigualdade refletia-se na situação de pessoas vivendo nas ruas, no mais completo abandono e marginalidade.
Em “Era dos Extremos – O Breve Século XX” (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), Eric Hobsbawn descreve como a mendicância tornou-se parte da paisagem nas grandes cidades após o fim da Era de Ouro do capitalismo (1945 a 1973):
“Na década de 1980 muitos dos países mais ricos e desenvolvidos se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de mendigos nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de desabrigados protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão, quando não eram recolhidos pela polícia. Em qualquer noite de 1993 em Nova York, 23 mil homens e mulheres dormiam na rua ou em abrigos públicos, uma pequena parte dos 3% da população da cidade que não tinha tido, num ou noutro momento dos últimos cinco anos, um teto sobre a cabeça. No Reino Unido (1989), 400 mil pessoas foram oficialmente classificadas como sem-teto. Quem, na década de 1950, ou mesmo no início da de 1970, teria esperado isso?”.
Quatro décadas depois, a situação se agravou. A crise de 2008 e a pandemia da Covid-19 escancararam a incapacidade do livre mercado em atender às demandas decorrentes da recessão, do desemprego, da falta de moradia e dos despejos em massa, da rápida disseminação do coronavírus e da explosão do número de mortes. O resultado não poderia ser diferente: aumento da pobreza, da desigualdade, da violência e da opressão sobre as chamadas minorias.
Ao mesmo tempo, a precarização das relações de trabalho a partir da década de 1980, levou à desarticulação de partidos políticos de esquerda e de sindicatos em detrimento de movimentos pretensamente independentes com pautas específicas.
A valorização da pauta identitária como a “nova esquerda”, ou seja, como uma militância mais “moderna” do que a tradição de lutas de partidos e sindicatos, que seria, nesta lógica, “antiquada”, resulta do modelo social imposto pelo neoliberalismo estadunidense.
Segundo Hobsbawm, “desde a década de 1970 jovens da classe média abandonavam os principais partidos da esquerda por movimentos de mobilização mais especializados como os de defesa do meio ambiente, feministas e outros chamados novos movimentos sociais, assim enfraquecendo-os”. Ele frisa que mesmo “administrações nominalmente encabeçadas por socialistas abandonavam suas políticas tradicionais”. Para o historiador o mais importante a ressaltar sobre esses movimentos é a rejeição à “velha política”.
Na mesma série de matérias sobre a esquerda, a Folha publicou no dia 24/09/2023, o texto “Sindicalismo que gerou Lula e base do PT sofre com perda de influência”, assinado pela jornalista Anna Virginia Balloussier, que aponta a ascensão da pauta identitária e a suposta decadência do movimento sindical. Balloussier afirma que hoje o sindicalismo “se acotovela para ganhar espaço entre causas mais midiáticas, como a questão identitária protagonizada por feministas, antirracistas e ativistas LGBTOIA+”. A matéria diz que a diminuição do emprego na indústria é uma das causas da perda da influência dos sindicatos. E coloca a uberização como uma “nova lógica trabalhista” que “colabora para a decadência do monopólio sindical”.
O texto defende que o sindicalismo perde força em um contexto de mudanças no mundo do trabalho e agarra-se à pauta identitária para sobreviver. Mas a leitura correta da situação é: a perda de força do sindicalismo está diretamente ligada à perda de direitos dos trabalhadores e ao aumento da informalidade no lugar de uma empregabilidade mais segura, que proporciona mobilidade e planejamento, seja na indústria, no serviço ou no comércio. Não é que o sindicalismo perdeu espaço. O trabalhador perdeu direitos, poder e representatividade desde a década de 1970. E, como reação à crise de 2008 e à pandemia, o mundo já vive uma retomada da ação sindical, a exemplo da histórica greve das montadoras nos EUA, da ocorrência da primeira greve no Japão em seis décadas, e da eleição do ex-sindicalista Lula, no Brasil, em um contexto de revalorização dos trabalhadores.
Sobre os sindicalistas “se acotovelarem” para “ganhar espaço entre causas mais midiáticas, como a questão identitária”, sendo o movimento sindical formado por pessoas que também podem ser suscetíveis aos efeitos do imperialismo identitário, é verdade que esse discurso, na forma liberal como está colocado, ressoa internamente. Entretanto, demandas específicas, como as das mulheres, dos negros, dos homossexuais, das pessoas com deficiência, ou temas como a trabalho infantil e a preservação ambiental, estão presentes na agenda sindical desde muito antes de a linguagem neutra virar o modismo que é. Com secretarias especializadas, os sindicatos, assim como os partidos, conquistaram espaço e poder para estes grupos. O que ajudou a aquecer o mercado, despertando o interesse liberal em investir nas pautas identitárias.
O mundo pós Guerra Fria, moldado a partir da imposição de ditaduras na América Latina e de guerras em países estratégicos, é um mundo de hegemonia cultural dos EUA. De modo geral, a “esquerda” estadunidense fala muito mais sobre direitos individuais do que sobre organização social coletiva. É uma concepção apoiada na liberdade de expressão e em traços de identidade, mas que não atinge as causas da geração de pobreza. A esquerda americana é, enfim, a esquerda liberal que o artigo da Folha apresenta.
Mas esta é apenas uma versão, limitada, por sinal. E, embora este discurso, que se apresenta como esquerda tenha uma base simplória, ele se apoia em um marketing global, algo como o imperialismo cultural hollywoodiano. É uma jogada que pretende validar sua versão não só como a mais evoluída, mas como a versão padrão. Isso não tem nada de novo ou de moderno. É a velha disputa de poder global.
O problema da pauta identitária não são as causas que ela defende. O problema é despolitizar e descontextualizar essas causas, deixando de questionar a raiz de um sistema opressor que atinge os mais pobres, independentemente da cor, sexo e orientação sexual.
Os direitos individuais e a representatividade de grupos oprimidos em espaços de poder são objetivos nobres e de esquerda. Mas considerar que preencher o quesito identitário em um mundo em que a desigualdade é naturalizada, sem pensar antes em mudar esse mundo, só ofusca o problema, minando a resistência contra ele.
Todo debate sobre a situação de grupos historicamente oprimidos deve ter como pilar a história econômica da divisão da riqueza e da divisão do trabalho. Somente em uma sociedade em que o povo tem melhores condições de vida e de trabalho, prosperidade, incentivo ao crescimento e segurança financeira, esses direitos individuais serão plenamente assimilados e realizados. E a história prova que a boa e velha esquerda, com seus partidos, sindicatos e movimentos universais, agregadores e populares, é o campo que pode semear esta mudança.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical