
Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços alerta para “cooptação voraz de mão de obra brasileira de elevada qualificação”, que “por si só teria relevante potencial danoso para a economia brasileira”
Em meio à investida predatória da contração de engenheiros altamente qualificados da Embraer, a fabricante norte-americana de aeronaves Boeing inaugurou na terça-feira (10) um Centro de Engenharia e Tecnologia em São José dos Campos, no interior de São Paulo. A medida ocorre três anos após a investida predatória da multinacional para comprar a divisão comercial da empresa brasileira de aviação Embraer.
“Este é um local muito lógico para nós investirmos”, argumentou à Reuters o presidente mundial da Boeing responsável por estratégia e operações fora dos Estados Unidos, Brendan Nelson. “Este investimento é de longo prazo”, alegou o executivo, que também afirmou que o Brasil tem engenheiros altamente qualificados e está bem-posicionado para liderar os esforços de descarbonização do setor. O escritório é um dos 15 que existem no mundo e é o segundo centro da empresa no Brasil.
O alvo da Boeing são engenheiros de nível sênior, principalmente da área de estratégia e aviônica, que têm anos de experiência, lideram importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves. São profissionais que detém informações que envolvem segredos industriais, como os caças Gripen – que o governo brasileiro comprou da sueca Saab, em 2013, os projetos de aviões elétricos e do carro voador desenvolvidos pela empresa brasileira, ou o recente sucesso de vendas da Embraer Defesa, o KC-390, cargueiro militar que desponta mundialmente como o sucessor do norte-americano Hércules.
As contratações, que começaram em meados do ano passado e seguem avançado, envolvem funcionários não só da Embraer, mas também de empresas do polo aeroespacial brasileiro, que se desenvolveu nas últimas décadas no Vale do Paraíba devido à empresa e ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). A Boeing emprega no novo centro de engenharia 500 trabalhadores, a maioria oriundos da Embraer.
“O Brasil é parte da estratégia global, e de longo prazo, da Boeing. O Centro de Engenharia e Tecnologia da Boeing no país integra uma rede de 15 centros em todo o mundo que desenvolvem tecnologia de ponta para impulsionar a inovação aeroespacial, declarou o vice-presidente sênior e estrategista-chefe da Boeing, Marc Allen. “Hoje, cerca de 15% dos nossos 17 mil engenheiros estão fora dos EUA”, completou.

A investida predatória da Boeing no Brasil levou dois grupos do setor aeroespacial — a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abinde) e a Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (Aiab) Abimde — a processar a companhia estadunidense por entenderem que essa política draconiana de cooptação de talentos prejudica a própria indústria brasileira e afeta a soberania nacional.
A medida é para impedir a Boeing de contratar mais do que 0,6% do quadro de engenheiros por ano de cada uma das Empresas Estratégicas de Defesa (EED) e das Empresas de Defesa (ED), que atuam no desenvolvimento de Produtos Estratégicos de Defesa (PED).
Se a exigência for atendida, a Boeing será limitada a contratar 21 engenheiros da Embraer por ano no Brasil. Até março de 2023, a multinacional brasileira tinha cerca de 18 mil funcionários, dos quais 3,5 mil são engenheiros, e praticamente nenhum profissional das empresas menores do polo aeroespacial de São José dos Campos.
Inicialmente a Justiça Federal negou a ação, mas, no final de agosto a 3ª Vara Federal de São José dos Campos decidiu que o processo para descobrir se os americanos estão praticando concorrência predatória no polo aeroespacial da cidade, deve avançar para a fase de produção de provas e testemunhos.
As entidades sustentam que a indústria aeroespecial e de defesa do Brasil não conseguem fazer frente à barganha. “O faturamento da Boeing é de R$ 500 bilhões. Isso é quase um terço de todo o PIB industrial brasileiro”, afirma o presidente da Abimde. Ele classifica a conduta da empresa como “agressiva” e “absolutamente atípica e deletéria”. “Do ponto de vista de poder econômico, ela [a Boeing] pode fazer qualquer coisa”.
COOPTAÇÃO VORAZ DE MÃO DE OBRA
O governo federal, que inicialmente havia entendido que as contratações não ameaçavam à soberania brasileira, reviu sua postura e pediu para integrar à Ação Civil Pública (ACP).
“Não há dúvidas de que a expertise brasileira nos setores de defesa/aeroespacial e aeronáutico, conquistada após uma trajetória de muito trabalho e estreito suporte estatal, possui caráter estratégico para a soberania nacional”, diz a Advocacia-Geral da União (AGU) no novo posicionamento anexado no processo.
A decisão se apoiou em parecer técnico do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). A pasta fala em “amplo arcabouço constitucional e legal corroborando o entendimento de que a livre iniciativa não é absoluta” e “cooptação voraz de mão de obra brasileira de elevada qualificação”, que “por si só teria relevante potencial danoso para a economia brasileira”. “E parece estar assentado não sobre uma concorrência saudável e legal da empresa estadunidense”.
“É uma questão de soberania, não de protecionismo. A Boeing tem faturamento equivalente a 1/3 do PIB industrial brasileiro”, diz o presidente da Abimde, Rogério Gallo. Ele ressalva que a “livre concorrência é assegurada, nos termos do artigo 170 da Constituição, mas que é relativizada em nove situações específicas —a primeira delas, questões de soberania nacional”, alega.
O presidente da Aiaba e coautor da ação, Julio Shidara, considera fundamental a participação do Estado brasileiro na questão. “Já não falamos mais da indústria aeronáutica, é sobre o talento brasileiro. Temos de nos preocupar com o engenheiro, o salário dele, mas ele é só uma face de um cubo mágico [de fatores envolvidos]”, defendeu.
Além do interesse — dissimulado — de espionar segredos da indústria brasileira, a Boeing também está de olho no potencial energético que o Brasil representa, conforme deixou transparecer o presidente global da companhia ao tratar dos esforços do país para à política de contenção de carbono.
A fala vai de encontro à posição manifestada anteriormente por outro executivo da gigante norte-americana. “O Brasil é líder na América Latina com estabilidade social, econômica e financeira e, portanto, um destino para investimentos de longo prazo. No caso da Boeing, temos demonstrado nosso compromisso com o Brasil investindo nas áreas de sustentabilidade, iniciativas de segurança e colaboração com agências reguladoras”, declarou o presidente da Boeing para América Latina e Caribe, Landom Looni.
No que diz respeito à espionagem, “a Boeing teve acesso a um volume de informações extremamente alto sobre a Embraer”, denunciou em 2022 o Dr. Oswaldo B. Loureda, fundador da Acrux Aerospace e professor de engenharia aeroespacial da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), ao Sputnik.
“Um volume de informações que, em uma situação natural, nunca seriam dados para uma empresa concorrente”, observou o especialista. As declarações foram proferidas no contexto das negociações envolvendo a compra da Embraer pela empresa norte-americana, acordo que não prosperou.
JOSI SOUSA