O desfecho da Revolução Republicana/Abolicionista, um dos maiores movimentos da história do Brasil, significou uma ruptura radical com o velho regime escravista. Quem afirma que ela não passou de um golpe de Estado, pouca coisa, ou praticamente nada, sabe sobre o Brasil
SÉRGIO CRUZ (*)
O dia 15 de Novembro de 1889 representa o fim da monarquia no Brasil. O fim de um regime retrógrado e reacionário que cumpria o papel de sustentáculo da escravidão no país. Derrotado um ano antes, o latifúndio não pode resistir à derrocada de seu modelo. O regime dos escravocratas ruiu nesta data sob as marteladas do amplo e vigoroso movimento abolicionista e republicano, um dos maiores movimentos de massa da história do Brasil.
CAMPANHA DEMOLIU A MONARQUIA
Republicanos e abolicionistas, liderados por José do Patrocínio, André Rebouças, Luís Gama, Rui Barbosa, Castro Alves, Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo, Joaquim Nabuco, Lopes Trovão, Sólon Ribeiro, Benjamin Constant, Francisco Glicério, Barata Ribeiro, Joaquim Saldanha, Silva Jardim, Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e muitos outros venceram a batalha política e ideológica na sociedade e enterraram a tralha escravista e semifeudal.
Naqueles dias de novembro de 89, com a monarquia em frangalhos, os revoltosos ocuparam o quartel-general do Rio de Janeiro e depois o Ministério da Guerra. O marechal Deodoro da Fonseca e seus seguidores se dirigiram ao quartel-general, localizado no Campo do Santana, e exigiram a demissão do Gabinete chefiado pelo Visconde de Ouro Preto. Este tentou resistir pedindo ao comandante do destacamento local, general Floriano Peixoto, que enfrentasse os republicanos.
Floriano recusou-se a obedecer às ordens dadas pelo Visconde. Em seguida, aderindo ao movimento republicano, Floriano deu voz de prisão ao chefe de governo. Naquele mesmo dia, com o povo nas ruas festejando a vitória, os republicanos realizaram uma sessão extraordinária na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e fizeram a solenidade de Proclamação da República.
JOSÉ DO PATROCÍNIO: ESTÁ DECLARADA A REPÚBLICA
O novo regime foi anunciado oficialmente pelo então vereador e um dos grandes líderes da causa, José do Patrocínio. Um governo provisório foi formado e o marechal Deodoro da Fonseca foi nomeado presidente do Brasil. A família real foi expulsa no dia 16 de novembro e, no dia seguinte, seus integrantes embarcaram para Portugal.
Ao contrário de certas “análises” que afirmam que a conquista da República não passou de um golpe de Estado, dado por militares à revelia do povo, ela representou uma das mais importantes conquistas políticas da história brasileira. O desfecho da revolução republicana e abolicionista significou uma ruptura radical com o velho regime escravista. Uma revolução que abriu caminho para novas relações de produção no país.
É verdade que o regime monárquico/escravista não teve forças para reagir no momento de sua derrubada, mas a luta pelo seu fim foi longa, dura e difícil. As forças que defendiam a monarquia e a escravidão eram poderosas e levantaram fortes barreiras ao avanço social e econômico do Brasil. O punhado de escravocratas e monarquistas era sustentado por potências coloniais.
O fim da monarquia e da escravidão foi, portanto, o resultado de uma intensa jornada de lutas que perpassou praticamente todo o século XIX, e envolveu o país inteiro, reunindo líderes políticos de várias classes sociais. Quem afirma que toda essa luta heroica não passou de um golpe de Estado, pouca coisa, ou praticamente nada, sabe sobre o Brasil.
O centro do embate ideológico entre republicanos e monarquistas se deu em torno da questão da escravidão. Os republicanos lutavam pela abolição, enquanto os monarquistas se aferravam à permanência deste regime. Por ser a monarquia o principal sustentáculo da escravidão, a luta pela República e a abolição caminharam juntas. A esmagadora maioria dos republicanos era abolicionista e os abolicionistas, em sua grande parte, eram republicanos.
RUI BARBOSA E A ESCRAVIDÃO
Em seu artigo “A formação do abolicionista Rui Barbosa”, de 2016, o jornalista e dirigente político, Carlos Lopes, diretor da Hora do Povo e vice-presidente nacional do PCdoB, destaca a importância e o papel decisivo desempenhado nesta luta por líderes como Rui Barbosa, um dos fundadores da nação brasileira que melhor expressa a síntese abolicionista e republicana. (A formação do abolicionista Rui Barbosa)
Diz ele:
‘Em 1884, Rui Barbosa, então deputado federal elaborou um “Parecer” como relator das Comissões de Orçamento e de Justiça Civil sobre a escravidão. Levou 19 dias para escrever as quase 200 páginas desse relatório, tentando transformar o projeto de lei dos sexagenários, enviado ao Congresso pelo senador Dantas – então Presidente do Conselho de Ministros – em uma base para a emancipação geral dos escravos”.
Carlos Lopes cita a opinião do estudioso Nelson Werneck Sodré sobre esse vigoroso documento de Rui Barbosa. “Em sua obra “O que se deve ler para conhecer o Brasil”, Nelson Werneck Sodré diz a respeito do “Parecer sobre a Emancipação dos Escravos”, de Rui Barbosa:
“Não há, talvez, em toda a literatura sobre a campanha abolicionista estudo tão profundo e tão circunstanciado como o parecer de Rui Barbosa. Com a sua capacidade de captar as razões, de alinhá-las, num encadeamento cerrado, Rui mostra todos os aspectos da questão do trabalho escravo, analisando detalhadamente cada um deles. Na fase em que o problema, colocado no campo partidário, motivaria o parecer de Rui Barbosa, aumentavam as resistências a todos os passos no sentido de concretizar, de uma forma ou de outra, com indenização, sem indenização, depressa ou com prazo marcado, a abolição do trabalho escravo. Rui foi derrotado em seus propósitos, mas a sua contribuição continua a ser das mais importantes fontes para o estudo do problema. Um lustro depois, a Abolição seria consumada, e a República viria em seguida” (Nelson Werneck Sodré, op. cit., Civ. Bras., 3ª edição, 1967, pp. 174-175).
Lopes prossegue: “Além de complexas questões – por exemplo, a relação do escravismo com a estagnação econômica – Rui Barbosa enfrentou algumas outras que não são estranhas à grosseria atual de certas argumentações, sobre outros problemas, que se lê e vê, atualmente, na mídia, no Congresso e no governo” (o artigo é de 2016). [Parêntese nosso]
“Houve, por exemplo, quem sacasse a antiguidade da escravidão como motivo para mantê-la. A resposta de Rui, em seu parecer, é uma das melhores que já houve no país. Rui começa por chamar a atenção sobre “o espetáculo dado, em todos os tempos e países, pelas camadas sociais diretamente interessadas nos proventos da instituição servil, sempre que se trata de aboli-la, ou atenuá-la”.
E continua:
“Os interesses opressores do escravismo, ainda hoje, entre nós mesmos, não recuam ante a ingenuidade característica de invocar a antiguidade remotíssima do cativeiro, como valente argumento contra os que julgam exagerado o prazo extintivo desse flagelo, no sistema de emancipação que entrega mais ou menos exclusivamente à morte a solução do problema. Como se, por mais antediluviana que seja a escravidão, a liberdade não fosse ainda mais antiga do que esta!”, argumentava o jurista maior, demolindo a hipocrisia dos “argumentos” dos senhores de escravos.
TIRADENTES FOI PATRONO DO MOVIMENTO
Um fato a ser destacado é que a bandeira republicana não era uma novidade no Brasil. Ela já tremulava no país há muitas décadas. Tiradentes era um republicano. Defendia a Independência com a República, além da industrialização e o ensino público. Fazia isso, mesmo sem obter um consenso entre todos os inconfidentes.
Não foi por acaso que o movimento abolicionista e republicano adotou o alferes de Minas Gerais como símbolo e patrono da causa. Entre os alfaiates baianos as aspirações republicanas eram ainda mais fortes e, em 1817, durante a Revolução Pernambucana, a República chegou a ser proclamada.
Nas jornadas pela independência, em 1822/23, a luta pela libertação dos escravos, por sua vez, também já ganhara contornos políticos mais amplos. Isso se deveu, entre outras coisas, à atuação dos irmãos Andradas, José Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos. José Bonifácio, o Patriarca da Independência, por exemplo, era um ardoroso defensor da abolição da escravatura.
IRMÃOS ANDRADAS E A ABOLIÇÃO
Sua prisão e o exílio de seis anos a que foi submetido após o golpe na Assembleia Constituinte de 1823, se deveu exatamente à sua proposta de acabar com a escravidão no Brasil. Em seu projeto de lei, que José Bonifácio defenderia na Constituinte, pode-se ler:
“Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa Pátria, sabeis que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará como imperiosamente o deve, um exército brioso e uma marinha florescente. Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade e justiça; e sem estas filhas do Céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações”. (Biblioteca do Pensamento Vivo. Pag. 48).
Nesta ocasião, os donos de engenho e senhores de escravos conseguiram afastar o imperador de seu maior e mais importante conselheiro e impuseram a manutenção da escravidão, tanto durante o período regencial, como em praticamente todo o segundo reinado.
Apesar de, oficialmente, o movimento pela República ter se iniciado com a criação do Clube Republicano, em 3 de Dezembro de 1870, através do lançamento do “manifesto republicano”, pode-se dizer que as manifestações populares pela abdicação do imperador (1831) e as revoltas do período regencial (1831 a 1840) já eram reflexo do crescimento das aspirações republicanas e antiescravistas.
OS ESCRAVOS SE REBELARAM
A luta conduzida pelos próprios escravos também possuía raízes muito antigas e profundas no país. Desde os primeiros desembarques de negros no país, trazidos à força do continente africano, teve início a resistência e as lutas pela liberdade. Os quilombos foram as primeiras formas organizadas desta resistência.
Zumbi dos Palmares travou uma forte batalha e deu a vida pela sua liberdade e a de seu povo. Foi exemplo de coragem e transformou-se – nos dias de hoje – no grande símbolo da consciência negra.
O Ceará conseguiu acabar com a escravidão quatro anos antes da aprovação da Lei Áurea. Sem poder possuir escravos, os senhores de terra cearenses tentavam embarcá-los para vendê-los aos produtores de café em São Paulo. Foi nesse cenário que surgiu um outro grande herói abolicionista. Francisco José, um jangadeiro cearense negro. Ele se destacou liderando um boicote contra os donos de escravos e impedindo os seus embarques.
O “Dragão do Mar”, como ficou conhecido Francisco José, e seus companheiros abordavam embarcações negreiras, arrancavam os escravos encontrados nos seu interior e os libertavam. Não era raro ver Francisco entrando em confronto físico com policiais e liderando grupos para sabotar embarcações que não aderiam ao movimento. Sua ação destemida contra o tráfico e seu exemplo de coragem aceleraram a libertação dos escravos em terras cearenses. Fruto desta determinação popular, a abolição da escravatura foi proclamada no Ceará em 25 de março de 1884.
Luís Gama, um ex-escravo, tornou-se nesta época, depois de conquistar sua liberdade, uma grande personalidade, com uma voz forte na imprensa, na política e na Justiça pela libertação dos escravos e pela implantação da República. Como advogado, defendeu e libertou mais de 500 escravos, desmontando as falsas interpretações que os escravistas e seu sistema judicial faziam das leis. Foi um dos fundadores do Partido Republicano Paulista.
Entre as mulheres escravizadas, destacam-se Dandara dos Palmares e Luísa Mahin. Elas foram duas mulheres escravas que dedicaram a vida à luta. Luíza Mahin atuou na Bahia, onde liderou diversas revoltas de escravos. Dandara era companheira de Zumbi. Ajudou a levar escravos para Palmares.
As duas foram recentemente reconhecidas como heroínas pelo Senado brasileiro. Seus nomes foram para o Livro dos Heróis da Pátria.
Em Minas Gerais, destacou-se Galanga, o rei do Congo, um escravo capturado com a família por portugueses e enviado para as minas de ouro de Vila Rica. Chico Rei, como passou a ser chamado, conquistou sua própria liberdade e se transformou num lutador pela liberdade dos demais escravos. Centenas deles foram libertos pela ação de Chico Rei. Entre outras coisas, ele e seus companheiros desviavam ouro dos mineradores mais ricos e usavam-no para comprar cartas de alforria.
A CULTURA E A LUTA CONTRA O ATRASO
A luta direta dos negros escravizados por sua liberdade viu crescer de forma avassaladora as ideias abolicionistas e republicanas no conjunto da sociedade. A imprensa progressista foi um expressivo porta-voz desta grande virada. Nesta época já circulavam jornais como “A Abolição, Oitenta e Nove, A Liberdade, O Amigo do Escravo, A Gazeta da Tarde etc.”
A literatura, como não podia deixar de ser, expressou de várias formas este novo período de ascensão do movimento popular. “O Navio Negreiro”, de 1870, um poema épico dramático de Castro Alves (1847-1871), que faz a denúncia contundente da escravidão, foi uma obra decisiva para ganhar as mentes e corações dos brasileiros. Além disso, o poema de Castro Alves passou a ocupar um lugar de destaque no grande tesouro literário do país.
O escritor negro carioca, Machado de Assis, que enchia de orgulho a cultura nacional com suas obras literárias, seus contos, romances e críticas na imprensa carioca, não aliviou a hipocrisia da sociedade monarquista. Machado tornou-se o maior escritor do Brasil e um crítico sarcástico da forma de pensar e agir da elite escravocrata brasileira. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1880, o escritor, que mais tarde fundaria a Academia Brasileira de Letras, desnuda a a decadência, a iniquidade e o parasitismo da sociedade monarquista.
EXÉRCITO SE RECUSOU A SER CAPITÃO DO MATO
O Exército brasileiro, que havia lutado na Guerra do Paraguai, entre dezembro de 1864 e março de 1870, quando de sua volta ao Brasil, não aceita mais ser manipulado pelo latifúndio que pretendia usá-lo para capturar escravos foragidos. O Exército se recusou a ser o “capitão do mato” dos latifundiários.
As tropas brasileiras contaram com muitos negros em suas fileiras e cresceu nelas a simpatia pelas ideias abolicionistas. Os escravos haviam sido alforriados pelo Estado e recrutados às pressas devido ao fato de que, no início da guerra, o Exército brasileiro contava com apenas 18 mil soldados, enquanto o do Paraguai era formado por 80 mil militares.
A recusa do Exército em perseguir escravos representou um duro golpe para a máquina de repressão do regime escravista. A crise da monarquia só se agravou desde então.
Se a ideologia do iluminismo havia influenciado positivamente os inconfidentes e outros defensores da independência, a luta pela República e a abolição já recebia os ventos de outra corrente filosófica, o Positivismo, do francês Augusto Conte. Esta corrente burguesa, diferente do que ocorreu na Europa, cumpriria, pelo menos por algum tempo, um papel progressista no Brasil. Sua influência maior se deu no sul do país, com Júlio de Castilhos, e entre os militares, liderados por Benjamin Constant.
Dentro do Exército, as ideias de Benjamin Constant, professor da Escola Militar e líder inconteste dos republicanos – considerado por Rui Barbosa como a “alma do movimento” -, empolgavam a jovem oficialidade que não aceitava mais o arbítrio e o atraso da monarquia e dos senhores de escravos.
Para se ter uma ideia da influência política de Benjamin Constant, em 10 de novembro de 89, ele se reúne com Deodoro, que ainda relutava em liderar o movimento. O velho militar concordara em derrubar o gabinete do Visconde do Rio Preto. Benjamin argumenta que a crise era grave e que a hora não era só de uma mudança de ministério. Depois de ouvir atentamente Benjamin Constant, Deodoro exclamou: “Leve ao diabo o trono; estou às suas ordens”. No dia seguinte, reúnem-se em sua na casa, além de Benjamin, Rui Barbosa, Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo, Francisco Glicério e Sólon Ribeiro.
CLUBES REPUBLICANOS
O primeiro Clube Republicano foi fundado em 1870 e foi presidido por Quintino Bocaiúva e Joaquim Saldanha Marinho. Mais adiante, em 1883, foi criada a Confederação Abolicionista, a associação abolicionista de maior destaque da história brasileira. Esta entidade foi criada por José do Patrocínio e André Rebouças.
O Manifesto Republicano trazia 57 assinaturas de comerciantes, fazendeiros, profissionais liberais e políticos de expressão. Após seu lançamento, mais de 20 jornais e clubes republicanos surgiram nas províncias. Um dos mais importantes era o de São Paulo, que realizou uma convenção em Itu, no interior do estado, em 18 de abril de 1873. Além de fundar o Partido Republicano Paulista (PRP), eles lançaram uma proposta de Constituição para seu estado, fiéis à ideia do federalismo.
A carta dos paulistas defendia que cada unidade da futura federação tomasse a sua decisão sobre a escravidão, sempre indenizando os donos de terras. O historiador José Murilo de Carvalho, na biografia de dom Pedro II, chama a atenção para o fato de que boa parte dos republicanos paulistas eram fazendeiros de café e donos de escravos, como Campos Sales, que seria eleito presidente do Brasil em 1898, pelo PRP.
LUÍS GAMA E A LUTA DENTRO DO PRP
Mas, entre os republicanos paulistas havia também os abolicionistas. O maior deles foi Luís Gama, o “advogado dos escravos”, como já nos referimos acima. A partir da década de 1860, ele iniciou a carreira como jornalista e tornou-se um dos grandes jornalistas da cidade de São Paulo. Luís Gama trabalhou em vários jornais, como Diabo Coxo, Cabrião, Radical Paulistano, Correio Paulista e Polichinello. Gama era um defensor da República e um abolicionista radical. Ajudou a fundar o PRP e travou no seu interior uma luta intensa pela República e pelo fim da escravidão.
Todo esse acúmulo das lutas de décadas da sociedade conflui para o seu desfecho em 15 de Novembro de 1889. Ali foi colocado um ponto final no regime monárquico e escravista no Brasil. Foi uma grande derrota da reação.
Mas, há, como dissemos, quem descreva estas mudanças revolucionárias – o fim da escravidão, a derrubada da monarquia e o início do trabalho assalariado – como um mero “golpe de Estado”. Insiste-se ainda na tese de que o fim da monarquia interessava apenas aos representantes da oligarquia cafeeira paulista. Nada mais míope e fora da realidade. Tanto a conquista da abolição como a República representaram aspirações de praticamente toda a sociedade brasileira. Só resistiam a elas o latifúndio e os donos de escravos.
DESFECHO FOI A DERROTA DO LATIFÚNDIO ESCRAVISTA
O 15 de Novembro, portanto, foi uma vitória espetacular de todo o povo brasileiro. “Um avanço civilizacional extraordinário, alcançado por uma ampla frente política”, como bem caracterizou recentemente a jovem ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação do governo Lula, Luciana Santos, presidente nacional do Partido Comunista do Brasil, ao falar sobre o racismo que ainda perdura no país.
As novas relações de produção – capitalistas – que se abriam interessavam profundamente a toda a sociedade naquele momento. O país via nelas o germe de um futuro mais promissor. A começar pelo fato de se ter colocado um ponto final na hedionda escravidão negra. A oligarquia, inclusive, como já comentamos, não tinha interesse na abolição. Ela foi literalmente arrastada pela força do movimento.
É verdade que o Partido Republicano Paulista, representante da oligarquia cafeeira, apoiou a campanha republicana. Mas, evidentemente, ele esteve muito longe de ser o grupo mais interessado ou a vanguarda deste processo. A vanguarda estava com a intelectualidade combativa, com pequenos comerciantes, com os militares progressistas e com servidores urbanos. Tanto isso é fato que os republicanos paulistas só chegaram ao poder cinco anos depois da ruptura com a monarquia..
A tomada do poder pela oligarquia paulista em 1894 significou uma vitória dos setores mais atrasados sobre a vanguarda da revolução. Isto permitiu a manutenção de uma política antidemocrática. Além disso, a submissão externa, neste caso, ao imperialismo inglês, efetivamente, atrasou o desenvolvimento das forças produtivas do país. Elas só foram libertadas completamente com a eclosão do movimento revolucionário de 1930, liderado por Getúlio Vargas, que, com o tenentismo, o nascente trabalhismo e já com a simpatia de parte dos marxistas, afastou definitivamente a oligarquia paulista do poder.
NELSON WERNECK E O COMPLEXO DE VIRA-LATA
Esta “miopia de análise”, que alega que a República só interessava à oligarquia, não existe por acaso. Ela faz parte do arsenal de instrumentos ideológicos dos inimigos de nossa independência para enfraquecer a autoestima e a disposição de luta dos brasileiros. O plano é criar internamente os espíritos de vira-lata. Desmerecer a história do país, diminuir a importância das conquistas populares e não reconhecer o papel desempenhado nela pelo povo e seus líderes é o principal mecanismo de dominação ideológica das grandes potências.
Em seu livro “Ideologia do Colonialismo”, Nelson Werneck Sodré, um dos maiores intelectuais brasileiros, demonstra que a dominação política e econômica de um país pelas potências coloniais e imperialistas demanda um esforço para que uma parte da elite seja “convencida” de que se associar a eles é bom para o país. Esta parte da elite, além de vínculos econômicos com as metrópoles, se comporta como quinta coluna também por pura submissão ideológica.
Para que se consiga emplacar as “opiniões” pró-imperialistas dentro do país dominado, é necessária uma doutrinação permanente contra as forças políticas que se opõem ao colonialismo e ao imperialismo.
Desdenhar, portanto, os feitos históricos de um país e enlamear seus líderes, tem como objetivo fazer com que a sociedade, e, principalmente, a juventude não se orgulhe de seu país e de seu passado e acabe se afastando da luta. No Brasil todos os líderes que lutaram e lutam pela independência foram e são atacados pela elite pró-imperialista e seus porta-vozes.
RETOMAR O FIO DA HISTÓRIA
Ao pesquisar dados para o livro “Pátria Livre Ainda que Tardia”, há cerca de 10 anos, detectei, já naquela época, um grande empenho em difamar a imagem de Tiradentes e dos inconfidentes. O principal instrumento usado para isso foi o livro “Devassa da Devassa”, do angloamericano Kenneth Maxwell, funcionário do Concil on Foreign Relations Latin America Studies Programs, um dos antros criados pelos Rockfellers para dominar a América Latina. Seu livro – que virou “referência acadêmica” no Brasil – era repleto de deturpações sobre os objetivos do movimento mineiro. (v. Tiradentes e os intelectuais escroques do imperialismo).
Avançando mais, observamos que não eram só os inconfidentes os “difamados”. O alvo, na verdade, é toda a história do Brasil. Tudo na trajetória do país é interpretado como farsa. A Independência foi uma “negociata das elites”. A República foi um mero “golpe de Estado”. Getúlio Vargas foi um “ditador”, um “autoritário”, a revolução de 30 foi um movimento “fascista”, Tiradentes foi um boquirroto e um bode expiatório da oligarquia mineira, e assim por diante. Impregnaram o país com a ‘visão’ deturpada e negativa sobre praticamente toda a trajetória da luta pela construção da nação brasileira.
Com a ditadura entreguista de 1964, os caluniadores não se contentaram em apenas infamar verbalmente os líderes populares e os patriotas. Os partidos e líderes que apoiavam as transformações progressistas e anti-imperialistas foram banidos e seus líderes perseguidos. O grande centro formulador do pensamento anti-imperialista no Brasil, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), foi literalmente destruído no dia seguinte ao golpe. Os intelectuais que atuavam no ISEB foram presos e exilados.
“Novos núcleos de pensamento”, passaram a ser apoiados e incentivados pelo regime e por fundações como Ford, Rockfeller & Cia. O critério para receber esse apoio era ser hostil à luta de libertação nacional.
Foram apoiados intensamente os “núcleos” que pregavam a inexistência do imperialismo. Que afirmavam que a luta anti-imperialista é uma quimera inventada pelos comunistas. Também decretou-se nestes novos “centros do pensamento” que não existe mais burguesia brasileira. Ela teria, segundo eles, se “associado” às matrizes. Que a “globalização” era irreversível, que o conceito de nação estaria ultrapassado e que a Era Vargas deveria ser “enterrada”.
Foram teses como estas, abraçadas por parte de nossa elite, que facilitaram a entrada do neoliberalismo no país. O caminho a ser seguido é exatamente o contrário de tudo isso. Temos que derrotar essas visões equivocadas, resgatar nossa história e retomar a trajetória de libertação nacional. Desta forma poderemos enterrar definitivamente o neoliberalismo, bem como a sua degeneração, o fascismo, que ressurgiu no país.
Combater a ideologia do colonialismo – presente ainda com força no Brasil – e resgatar a verdadeira história de lutas do país, bem como o papel do povo e de seus líderes em todo esse processo, é o passo decisivo a ser dado. É neste sentido que a conquista da República e o fim da escravidão devem ser comemorados: como um ponto alto na trajetória de construção da nação brasileira.
(*) Redator Especial do HP e membro do Comitê Central do PCdoB