2,2 milhões de encarcerados estão disponíveis como mão de obra quase gratuita às corporações, que pagam de 20 cents a 1 dólar a hora. O salário mínimo, congelado há 10 anos, está em US$ 7,25
Para protestar contra o trabalho escravo nas prisões dos EUA e as condições desumanas, detentos em vários presídios federais e estaduais iniciaram uma greve de três semanas, em resposta à recente rebelião no centro correcional de Lee, na Carolina do Sul, onde sete detentos – seis deles negros – foram mortos e outros 17 ficaram feridos em abril.
Os EUA são o país com a maior população carcerária do planeta, mais de 2,2 milhões de pessoas, desproporcionalmente negras, o que por si só é uma confissão de racismo e mal disfarçada prevalência de apartheid. Sendo 13% da população dos EUA, os negros são 37% da população carcerária, resultado evidente da política racista de encarceramento em massa.
As entidades Advogados de Cárcere Falam, Comitê de Trabalhadores Presos da União Internacional Industrial e a União Americana pelos Direitos Civis (ACLU) estão apoiando a manifestação, assim como a escritora Heather Ann Thompson, vencedora do Prêmio Pulitzer pelo livro sobre a mais famosa revolta prisional dos EUA, Ática, durante o governo Nixon.
Devido ao caráter compulsório e paga mínima, o trabalho prisional nos dias de hoje EUA não passa de escravidão moderna, denunciam as entidades e os presos. É por isso que exigem “fim imediato à escravidão nas prisões”, acrescentando que todas as pessoas presas em qualquer lugar de detenção sob jurisdição dos Estados Unidos “devem receber o salário prevalecente em seu estado ou território por seu trabalho”.
Não é a primeira vez que a questão vem à tona. A jurista norte-americana Michelle Alexander, autora de “A Nova Segregação – Racismo e Encarceramento em Massa”, assinalou como após a Guerra Civil (1861-1865), quando os escravos foram libertos, surgiu um sistema de “arrendamento de condenados, em que negros eram presos por crimes insignificantes, como vadiagem e embriaguez, e obrigados a trabalhar em plantations, às vezes as mesmas das quais tinham sido libertados”.
É que a 13ª Emenda, a que libertou os escravos, possivelmente para apaziguar o Congresso racista que se dobrou à luta do grande Lincoln, incluiu o trabalho sem remuneração em caso de prisão – ou foi assim que foi interpretado.
Questão sensivelmente registrada no documentário “13ª Emenda”, em que a autora, a cineasta Ava DuVemay, de “Selma”, compara as atuais mortes de negros desarmados aos linchamentos dos anos das leis Jim Crow, e a persistência da segregação, travestida de encarceramento em massa a partir dos anos 1980, quando, em função da profundidade da luta pelos direitos civis, se tornou impossível sustentar o racismo das mesmas formas de antes.
O racismo teve que recuar, e se assanhar como defesa da ‘lei e da ordem’, da ‘guerra às drogas’, cujos antagonistas eram, claro, a gente de cor, os pobres, os latinos. Foi assim que, entre 1983 e 2000, a taxa de encarceramento de negros foi multiplicada por 26, enquanto a de brancos aumentou oito vezes. Desde 1980, segundo Alexander, 31 milhões de americanos – “90% negros ou latinos” – foram presos como parte da “guerra às drogas”.
O que não teria sido possível se aliados da luta pelos direitos civis, como setores democratas, no caso o governo Bill/Hillary Clinton, não tivessem legalizado o discurso contra os “superpredadores” ou “os bebês do crack”.
O racismo era tão descarado, que a legislação estabelecia um fator de punição de 100 para 1, caso a droga aprendida se tratasse de crack (droga de negro pobre) ou cocaína (droga predileta de Wall Street). A população dos presídios foi multiplicada por cinco em algumas décadas. E as prisões privadas de detenção, que surgiram na guerra às drogas, servem agora de armazéns de imigrantes até a deportação.
A greve em nível nacional dos detentos norte-americanos chama a atenção para o uso do imenso contingente de presos – o maior do mundo – para fornecer mão de obra quase de graça e praticamente sempre à disposição, já que, se o detento recusa, vai para a solitária, onde fica por 23 horas diárias em isolamento.
Nos chamados ‘empregos institucionais’ – na cozinha, lavanderia ou zeladoria da prisão – os detentos nada recebem em muitos estados e, em outros, não mais que um dólar por dia. Os “empregos industriais” – ou seja, em oficinas ou call centers nas prisões, são geralmente pagos por hora, com salários a partir de 20 centavos por hora, até US$ 1,15 quando o salário-mínimo, congelado há quase uma década, está em US$ 7,25 a hora, e os sindicatos pedem que seja reajustado para o dobro, US$ 15. Em suma, um maná para as empresas e os administradores que fazem os acertos.
AUTOFISCALIZAÇÃO
Outro aspecto posto em pauta pela manifestação é a reformulação da legislação de Clinton que restringiu enormemente a capacidade dos presos de questionarem erros do sistema judicial, que determina que sejam esgotadas todas as vias ‘internas’ – ou seja, a própria instituição é que se autofiscaliza. Para não falar de casos como a condenação de inocentes, como os “Três de Angola”. Os presos também pedem a revogação das leis estaduais arbitrárias, as chamadas “três ataques”, em que se o réu tiver três condenações, mesmo que por um crime menor, fica sujeito à prisão perpétua. (Haveria uma penalidade mais conveniente para o dono de uma prisão privada?)
As datas escolhidas para o início e o final da greve são altamente simbólicas. Em 21 de agosto de 1971, o Pantera Negra preso George Jackson foi assassinado por guardas na prisão de San Quentin, na Califórnia, após suposta tentativa de fuga. Em 9 de setembro do mesmo ano, os detentos da prisão estadual de Attica, em Nova York, organizaram uma revolta contra as condições brutais que enfrentavam. Rebelião esmagada quatro dias depois, sob ordens do governador Nelson Rockefeller, com 29 presos mortos pela polícia. Para o diretor da ACLU, Udi Ofer, que expressou o apoio da principal entidade de direitos civis dos EUA, “nosso país é mais forte quando as pessoas mais marginadas e diretamente afetadas por políticas injustas, levantam suas vozes em sinal de protesto e exigem um futuro diferente”.
ANTONIO PIMENTA