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João das Neves, que deixou este mundo na sexta-feira, dia 24, fazia parte de uma geração de homens de teatro que acreditava no que disse Federico Garcia Lorca, em uma de suas Charlas sobre el teatro: “Un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está moribundo”.
Talvez, por isso, as principais manifestações culturais, logo após o golpe de 1964, foram no teatro.
João das Neves, que se formara ator e diretor na década de 50 do século XX, estava, como Lorca, ligado ao povo – a uma vertente popular de teatro – praticamente desde o início de sua trajetória.
Nos anos 60, fundou o grupo Os Duendes e assumiu a direção do Teatro Arthur Azevedo, no então longínquo bairro carioca de Campo Grande. Seu grupo, no entanto, foi colocado para fora do Teatro Arthur Azevedo pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que o acusou de “comunista” e de “fazer propaganda subversiva”.
Foi, então, ainda antes do golpe, que João das Neves dirigiu o teatro de rua do Centro Popular de Cultura da UNE (CPC/UNE).
Algum tempo depois, com o fechamento do CPC – e da UNE, que passou à clandestinidade – ele participaria, com Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira e Ferreira Gullar, da fundação do Grupo Opinião.
Começaria, então, uma longa luta da cultura contra a estupidez. Anos depois, quando a transmissão pela TV do ballet “Romeu e Julieta”, pelo corpo do Teatro Bolshoi, de Moscou, foi proibido por um ministro da Justiça – por sinal, um civil – alguém diria que o pior da ditadura não era o seu caráter entreguista, antinacional, antipopular, antidemocrático, mas sua burrice. Na verdade, essas expressões eram redundantes.
O Grupo estreou com “Opinião”, que reunia Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Depois vieram “Liberdade, Liberdade” (1965), “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come” (1966), “Jornada de um Imbecil até o Entendimento” (1968), e, com direção de João das Neves, “A Saída, Onde Fica a Saída?” (1967), texto de Armando Costa, Antônio Carlos Fontoura e Ferreira Gullar.
Em 1968, o Grupo comemoraria quatro anos com “Antígona”, de Sófocles, dirigida por João das Neves.
É nessa época (1964-1965) que João das Neves escreve “O Último Carro”. A peça foi premiada, em 1966, no Seminário de Dramaturgia Carioca, mas somente foi encenada em 1976, com um sucesso incomum – mais de 2 anos em cartaz.
Um dos maiores críticos teatrais do país, Sábato Magaldi, observou como, nessa peça, João das Neves conseguiu transportar para o plano simbólico um contexto social poucas vezes abordado: o cotidiano da população que, diariamente, é transportada pelos trens da Central.
O próprio João das Neves diria, depois:
“A grande personagem da peça é o trem. Que com a sua capacidade de abrangência ela cerca todos os outros. Ela vira um sujeito. Não só um sujeito, ela vira uma metáfora do Brasil”.
Com “O Último Carro”, João das Neves ganhou os prêmios Mambembe e Molière – pelo melhor texto e melhor direção. Levada à cena na 14ª Bienal Internacional de São Paulo, a peça recebeu o Grande Prêmio da Bienal (1977).
Algo que hoje, ainda, impressiona neste texto é como, na voz dos passageiros do trem, o autor conseguiu se apropriar da dicção típica do subúrbio carioca.
Embora, é verdade, nascido no Rio, ele sempre foi bem carioca. Estudante do Colégio Mallet Soares, em Copacabana, ele atravessara a cidade, até a zona norte – e até o que então se chamava “zona rural” do Estado da Guanabara (Campo Grande, Santa Cruz, Sepetiba).
Numa trajetória de mais de 60 anos de atividade, João das Neves dirigiu dezenas de peças e espetáculos como “Tributo a Chico Mendes” (1986), “A Missa dos Quilombos“, “Primeiras Estórias” (1991-1992), “A História do Soldado” (1997), “Uma Noite com Brecht” (1998), “Pedro Páramo” (2001), “Território Interno” (2006), “Madame Satã” (2015) e “A Lenda do Vale da Lua” (2015).
Especialmente importante foi sua parceria com Paulo César Pinheiro, de quem levou ao palco “Besouro Cordão de Ouro” (2006), “Galanga” (2011) e “Chico Rei” (2011).
João das Neves também foi um estupendo diretor de espetáculos musicais, por exemplo, com Baden Powell, João do Vale, Chico Buarque, Milton Nascimento e Geraldo Vandré.
Em 2013, João das Neves encenou “Arena conta Zumbi”, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, montagem da peça de maior impacto, após o golpe de 1964 (v. HP 06/05/2009, Augusto Boal, uma vida e uma obra dedicadas ao Brasil e ao seu teatro).
Em 2014, o grande diretor realizou um fenomenal reencontro. Dirigiu “Os Azeredo mais os Benevides”, de Oduvaldo Vianna Filho, no Cine-Teatro Denoy de Oliveira, em uma iniciativa do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC/UMES).
A peça de Vianinha iria estrear no dia 1º de abril de 1964, no teatro da UNE, na sede da entidade, no Rio de Janeiro.
Mas… naquele dia houve um golpe de Estado, que derrubou o governo constitucional e eleito do presidente João Goulart. No mesmo dia, o prédio da UNE foi incendiado pelos golpistas e o teatro, destruído.
Apesar de um prêmio, conferido em 1966 à “Os Azeredo mais os Benevides”, pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), do Ministério da Educação e Cultura, e da publicação da peça dois anos mais tarde, ela jamais fora levada à cena.
Somente cinquenta anos depois, em 2014, ela seria encenada – tendo como diretor, João das Neves (v. HP 16/05/2014, João das Neves monta Os Azeredo mais os Benevides no Teatro Denoy de Oliveira, e, também, HP 11/04/2014, O diretor João das Neves).
Em 2016, João das Neves retornou aos palcos como ator em “Lazarillo de Tormes”.
Foi, também, um produtivo escritor, desde livros sobre teoria e história do teatro – “Análise do Texto Teatral”, “1950-1980: Trinta anos de Teatro Brasileiro” – até obras de literatura infantil como “História do Boizinho Estrela”, além de 20 peças teatrais.
“Seu teatro”, declarou a atriz Rebeca Braia, que foi dirigida por João das Neves em “Os Azeredo mais os Benevides”, “nos dizia das diferentes raças, dos tantos ritmos e músicas, dos nossos modos de viver, dos jeitos nossos de cantar, de lutar, de falar, de rezar e de cantar e de cantar. No dia da estreia Dos Azeredo mais os Benevides, fez uma grande roda e nos disse emocionado que agradecia a todos que estavam ali por terem concretizado um sonho que tinha sido interrompido. Naquela noite nós, com os olhos marejados, estreamos finalmente! Nós é que agradecemos, Mestre! Por tantos ensinamentos, por tantas estórias contadas, por dirigir com mãos mágicas que faziam as cenas nascerem sob nossos olhos, pela generosidade, por nos mostrar que o teatro é a arte da coletividade. Ele tinha os pés fincados na história do Brasil, o coração ligado ao povo e na cabeça sonhos, sonhos de liberdade”.
Em janeiro, quando fez 84 anos, João das Neves lançou seu mais novo livro “Diálogo com Emily Dickinson”.
O diretor faleceu em Belo Horizonte, vítima de câncer. À sua esposa e companheira, Titane, e a suas filhas, Maria João e Maria Íris, nossa solidariedade, neste momento em que João das Neves, definitivamente, passou para a eternidade.