
O Disque 100, serviço do governo federal que recebe denúncias e proteção contra violações de direitos humanos vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, mostrou um avanço dessa prática no país. Apesar de ser o Brasil um país laico, ou seja, que aceita todos os credos, e de ter definido na legislação que intolerância religiosa é crime, só em 2023 foram registradas 1.418 denúncias sobre o assunto no país. O dado representa um aumento de 60% em relação a 2022, quando foram registrados 898 casos e segue tendência de crescimento dos últimos anos.
Para se ter uma ideia, em 2018, foram contabilizados 615 registros do tipo pelo Disque 100. O número saltou para 1.418 em 2023, um aumento de 140,3%. Já o número de violações passou, no mesmo período, de 624 para 2.124, um salto de 240,3%.
Entre as denúncias, as de violação à liberdade de crença ocupam o primeiro lugar, seguidas das de violação à liberdade de culto e, por fim, as de violação à liberdade de não crença. Os estados com mais casos são Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Em 2023, os registros saltaram. “Esses dados são alarmantes. Cada vez mais a população tem compreendido que cenários, situação onde há violência, agressão em razão da religiosidade da pessoa se trata, sim, de uma violação de direitos humanos”, afirma o secretário nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Bruno Renato Teixeira.
“Esses dados são alarmantes. Cada vez mais a população tem compreendido que cenários, situação onde há violência, agressão em razão da religiosidade da pessoa se trata, sim, de uma violação de direitos humanos”, destaca o secretário nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Bruno Renato Teixeira.
Neste domingo (21) foi lembrado o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída em memória a Iyalorixá baiana e fundadora do Ilê Asé Abassá, Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, que morreu em 2000. A religiosa, que já tinha a saúde debilitada, então com 65 anos de idade, teve seu terreiro invadido naquele ano e sofreu ataques físicos e verbais que pioraram a sua saúde cardíaca.
No mesmo ano, Mãe Gilda sofreu outra violência de racismo religioso. A Igreja Universal do Reino de Deus publicou sua foto no jornal Folha Universal com uma tarja preta nos olhos junto às palavras: “macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes”. Deprimida, ela teve uma parada cardíaca e foi a óbito.
Apesar do aumento dessa prática, o crime por motivação religião agora é punido com mais severidade. Em 2023, a pena para quem pratica intolerância religiosa foi aumentada. Desde o ano passado, quem comete esse crime pode pegar de dois a cinco anos de prisão. É a mesma pena prevista para o crime de racismo.
O número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil cresceu 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia. O Estado recordista foi São Paulo (270 denúncias), seguido por Rio de Janeiro (219), Bahia (172), Minas Gerais (94) e Rio Grande do Sul (51).
TERRREIROS ALVOS DE ATAQUES
Dentre as vertentes religiosas, as de matriz africana, são as que mais sofrem perseguição, conforme ilustra o caso de Mãe Gilda e os que relatamos a seguir.
Em agosto de 2023, a mãe de Santo Solange de Arruda Machado foi apedrejada enquanto realizava um ritual religioso em uma área de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, ao lado de outras pessoas. Quem jogou as pedras ainda estava gritando: “Morre, macumbeira. Não conseguimos ver quem era. Foi assustador, ficamos com muito medo”, relatou Solange. A violência contra ela e o grupo foi registrada na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).

Em novembro de 2022, também no Rio, outra mãe de santo foi impedida de entrar em um hospital estadual para atender a um paciente na UTI. Segundo ela, que dirige um terreiro de candomblé em Guapimirim, na Baixada Fluminense, os funcionários alegaram que a família não teria autorizado sua entrada. Após esperar por cinco horas do lado de fora, ela registrou um boletim de ocorrência e denunciou o caso à Comissão de Combate à Discriminação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O paciente morreu cinco dias depois.
Já na Bahia, em janeiro de 2022, um pai de santo celebrava um culto em um terreiro de candomblé em Vitória da Conquista, quando começou a ouvir, em altíssimo volume, frases como “Jesus Salva!”. Um homem em um carro de som tentou interromper a cerimônia para “exorcizar” os participantes. O líder religioso registrou um boletim de ocorrência e fez uma denúncia à Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia.
Em São Paulo, no primeiro trimestre de 2023, a Polícia Civil de São registrou 181 casos de intolerância religiosa em todo o estado, o que pode estar subestimado, já que muitas vítimas preferem não recorrer às autoridades para prestar queixa. O total equivale a 87,4% das ocorrências reportadas entre janeiro de 2019 e março de 2023.
As ocorrências se deram em contextos de confronto físico, tipificados como “vias de fato”, ameaças, injúria, difamação, lesão corporal, dano, ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo, praticar a discriminação e até mesmo violência doméstica.
Um dos episódios emblemáticos da violência contra os cultos de origem africana, ocorreu em março de 2023 contra o terreiro de candomblé Egbé Odé Àkuerãn, em Cajati, município de 28 mil habitantes, a cerca de 230 quilômetros da capital paulista. “Só não machucou as pessoas embaixo porque o tijolo ficou preso no forro”, comentou o líder do terreiro, Eric Ty Odé.
O agressor, um vizinho do espaço, já era reincidente no caso e os boletins de ocorrência não adiantavam. “Até que perdemos a paciência e abrimos um processo contra ele, por danos morais e danos patrimoniais, que está correndo na justiça. Foram registrados seis boletins de ocorrência. Ele ameaçava as pessoas que iam ao terreiro, ficava armado na rua, andando para lá e para cá, chamando os integrantes da casa para ir lá conversar”, completa Àkuerãn.
No boletim de ocorrência, o que ficou documentado, com citação do artigo 163 do Código Penal, foi o dano que o agressor, um vizinho do terreiro, causou à estrutura física, ao jogar um tijolo sobre o telhado local.
Para o psicanalista e historiador Fred Tomé, a intolerância surge em razão de uma criminalização imposta por parte da sociedade. “Essa perseguição está associada à sua criminalização. Uma ideia de bem contra o mal, bastante alimentada pelo discurso evangélico que cresce a cada eleição, fazendo mais votos”.
Na avaliação do presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, Rafael Moreira, a principal ponte para uma convivência harmônica é a manutenção de políticas públicas junto ao governo. “A gente vem tentando atuar junto ao governo para a diminuição desses casos”, diz.
Para combater a intolerância religiosa e garantir a diversidade religiosa e a laicidade brasileiras, o governo criou uma Coordenação de Promoção à Liberdade Religiosa, liderada por uma Ialorixá Mãe Gilda de Oxum. “Esse é o ponto fundamental da discussão, que é a promoção da tolerância e a garantia da diversidade religiosa no Brasil”, completa Teixeira.