Em sua entrevista, no Jornal Nacional, da TV Globo, Marina Silva, candidata da Rede a presidente da República, afirmou, sobre a Previdência, que “a gente tinha que transitar para um regime de capitalização e contribuições. Agora nós sabemos que com o problema do déficit público, essa transição tem que ser bem construída, mas devemos ir para um regime de capitalização e combater os privilégios”.
No Brasil, somente um terço dos aposentados ganha mais do que um salário mínimo – e o salário mínimo é menor que, por exemplo, o salário mínimo do Paraguai, para citar um país mais pobre que nós.
Além disso, uma parte dos idosos nem aposentadoria tem.
Esse é o problema – o maior deles – que existe na Previdência.
No entanto, certas palavras acabam por se transformar em um fetiche.
Por exemplo, a palavra “capitalização”, que Marina – e também Ciro – apontaram como suposta solução para o problema da Previdência.
Antes de apontar “soluções”, seria melhor descobrir se existe algum problema no sistema em que os trabalhadores da ativa, e as empresas – assim como o conjunto da sociedade, através dos tributos sociais -, contribuem para que aqueles que se aposentaram tenham os seus proventos.
Pois, os problemas da Previdência – uma parte da “seguridade social” estabelecida pela Constituição de 1988 – nada têm a ver com “transição para um regime de capitalização”.
Pelo contrário, como aconteceu em outros países (o Chile, por exemplo), esse regime é, na melhor das hipóteses, um modo de torturar e matar os mais idosos.
Não se trata, como veremos, de uma figura de linguagem.
Poderíamos – aliás, deveríamos – acrescentar que esse sistema é também um meio de locupletar parasitas financeiros à custa da aposentadoria dos que trabalham, pois a “capitalização” é, necessariamente, uma privatização da Previdência.
Além disso, do ponto de vista mais geral da economia, esse sistema de “capitalização” joga sempre contra a produção e a favor da especulação – inclusive da manutenção de juros altos (uma demonstração muito interessante desse caráter da “capitalização” na Previdência pode ser encontrado no artigo de Leda Maria Paulani, “Seguridade social, regimes previdenciários e padrão de acumulação: uma nota teórica e uma reflexão sobre o Brasil”, in Debates Contemporâneos: economia social e do trabalho 4, Unicamp, 2008).
Porém, Marina disse que não pretende impor a “capitalização” da Previdência ao povo brasileiro, se for eleita, mas, antes de tudo, debater as alternativas. O que não deixa de ser positivo.
Sendo assim, para contribuir com o debate, vejamos os resultados do atual sistema, estabelecido por Getúlio Vargas e atualizado pelos constituintes de 1988, nos 12 anos que vão de 2006 a 2016.
A tabela abaixo é um resumo daquela organizada pela Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP):
Somente em um ano, 2016, houve déficit.
O superávit somado, em 12 anos, ascende a R$ 602 bilhões e 220 milhões. Na média anual, um superávit de R$ 50 bilhões e 200 milhões.
A causa do déficit em 2016 foi a recessão provocada por Dilma e continuada por Temer (e seus respectivos gênios econômicos, Levy e Meirelles).
Tanto é verdade que a Previdência é superavitária, que o governo, através da Desvinculação das Receitas da União (DRU), estabeleceu um desvio de 30% nas contribuições sociais que fazem parte da base de financiamento da Previdência, que seria inexequível se não fosse o superávit acumulado.
Como dizem os auditores da Receita Federal:
“Apesar de o resultado ter sido negativo em 2016, a Seguridade é estruturalmente superavitária. Os números variam ano a ano. As receitas crescem mais ou menos em resposta à economia. As despesas atendem às prioridades políticas; determinando mais ou menos gastos sociais, seja pela definição do salário mínimo, pelo nível de gastos em saúde ou pela criação de novos programas e ações. Mas, de 2005 a 2016, apenas no último ano não houve superavit” (cf. ANFIP, Análise da Seguridade Social em 2016, p. 53, grifo nosso).
Por que o resultado de 2016 foi negativo?
A causa é apontada, aqui, com exatidão: “a economia ficou próxima da estagnação em 2014 e caiu 7,6% pelo biênio seguinte. Com isso, a arrecadação regrediu 12,4%, em termos reais no período” (idem, grifo nosso).
Quanto mais gente desempregada – e sem carteira assinada – menos a Previdência arrecada.
Além disso, as desonerações (R$ 427 bilhões entre 2012 e 2016) tiveram um impacto direto na arrecadação da Previdência.
Em termos reais (descontada a inflação), devido a essas causas, a arrecadação vem caindo desde o último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff:
2013: R$ 819 bilhões e 664 milhões;
2014: R$ 818 bilhões e 72 milhões;
2015: R$ 758 bilhões e 583 milhões;
2016: R$ 729 bilhões e 549 milhões.
(idem, p. 55, valores atualizados a preços de dezembro de 2016)
É óbvio que o sistema atual da Previdência não foi construído para conviver eternamente com a recessão, com o desemprego, com a marginalização do trabalho, com a crise provocada por políticas econômicas antinacionais, antipopulares, em resumo, neoliberais.
O Brasil também não foi construído para isso.
Nem o povo brasileiro, que forma o Brasil – e a quem interessa a Previdência.
TRAGÉDIA
Um sistema de “capitalização” da Previdência significa ancorar as aposentadorias e demais benefícios na especulação financeira – retirando a responsabilidade do Estado e das empresas. Ainda que possam existir projetos “mistos”, a essência é essa.
Esse é o motivo pelo qual o economista chileno Orlando Caputo, já em 1998 – portanto, há 20 anos – advertia para a quebra desse sistema, instalado por Pinochet no Chile, falando do “risco de que ocorra um desequilíbrio entre os ativos e os passivos desses fundos no futuro, já que tiveram prejuízos de cerca de U$ 4 bilhões com a queda recente das bolsas” (O Globo, 19/04/1998).
No Chile, para garantir os ganhos dos elementos que dominam essas empresas e fundos, as aposentadorias foram brutalmente reduzidas: 90,9% dos aposentados ganham, hoje, até 66% do salário mínimo chileno (cf. Fundación Sol, Porcentaje de jubilados con pensiones menores a $149.435; v., também, Fundación Sol: “En el Chile de hoy las pensiones son miserables y en diez años serán más bajas”).
Uma boa descrição do regime de capitalização é a seguinte: “cada trabalhador faz a própria poupança, que é depositada em uma conta individual, em vez de ir para um fundo coletivo. Enquanto fica guardado, o dinheiro é administrado por empresas privadas, que podem investir no mercado financeiro” (v. Paula Reverbel, BBC Brasil, Como é se aposentar no Chile, o 1º país a privatizar sua Previdência, 16/05/2017).
Como isso funciona, na prática, é bem ilustrado em um artigo nosso:
“… o desmantelamento do Estado serviu tão somente para beneficiar as corporações privadas que assaltaram o sistema público de pensões e aposentadorias chileno sob o pretexto que era deficitário, (até nisso os ladrões e a grande mídia tupiniquins demonstram a mais completa falta de criatividade), por outro de capitalização administrado pelo ‘mercado’. A ‘justificativa’ era de que assim seria resolvido o problema fiscal e se abririam as portas ao crescimento econômico. Assim, foram montadas as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), instituições financeiras privadas encarregadas de administrar os fundos e poupanças de pensões. O rendimento destes fundos, com base nas flutuações do ‘mercado’, determina a quantidade de dinheiro que cada pessoa acumulará quando chegar o momento da aposentadoria.
“Desta forma, com a capitalização para fins de aposentadoria integralmente bancada pelo trabalhador, milhões de pessoas foram obrigadas a entregar 10% de seus salários a arapucas especulativas, sem haver nenhuma contribuição dos empregadores, nem do Estado. ‘Houve crises financeiras nas que perdemos todas as economias depositadas ao longo da vida, porque ficamos sujeitos aos vaivéns do mercado’, explicou Carolina Espinoza, dirigente da Confederação de Funcionários de Saúde Municipal (Confusam) e porta-voz da Coordenação ‘ No Más AFP’” (Leonardo Severo, Sem previdência pública, Chile tem suicídio recorde entre idosos com mais de 80 anos).
PILARES
A origem desse método (?) de arrancar o couro da população está, como seria inevitável, nos EUA – onde os fundos de pensão deixaram milhões de pessoas sem aposentadoria, com a crise que eclodiu no final de 2008, após a quebra do Lehman Brothers.
No Chile, foi sob os neoliberais – Milton Friedman e von Hayek – que Pinochet entronizou como gurus econômicos, que esse sistema foi instalado, aliás, com sangue batendo na canela dos seus promotores.
Que os “socialistas” tipo Bachelet tenham mantido esse sistema – ou, no máximo, se limitado a mudanças cosméticas – diz quase tudo o que é necessário saber sobre eles. Nós, aqui, conhecemos o PT.
Entretanto, existe uma variante nos EUA, que foi exposta, aqui, pelo economista Mauro Benevides Filho, responsável pelo programa econômico de Ciro Gomes: uma Previdência para pobres, outra para “menos pobres”, e, acima do limite atual da Previdência (R$ 5,6 mil), a “capitalização”.
É isso o que Benevides chama de “sistema multipilar”.
Ou seja, ao invés de mais direitos, institucionalizar a miséria atual das aposentadorias e uma desigualdade maior ainda na Previdência.
MISTURA
Algo evidente nas colocações dos defensores da “capitalização” é a confusão entre o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e o Regime Próprio da Previdência Social (RPPS) – o regime dos funcionários públicos – como se fossem a mesma coisa.
Na verdade, o primeiro, que atende aos que trabalham em empresas privadas, tem (ou deveria ter), legalmente, um orçamento próprio, porque suas fontes específicas são definidas pela Constituição (além da contribuição de trabalhadores e patrões à Previdência, a Cofins, a CSLL, o PIS).
Por isso, culpar o RGPS pelo déficit público (o déficit do orçamento fiscal) é uma falácia – ou um desconhecimento. O RGPS, simplesmente, não pertence ao orçamento fiscal. Mecanismos como a DRU são, exatamente, maneiras de desviar dinheiro do orçamento da Previdência (RGPS) para o orçamento fiscal, ou seja, o orçamento do Tesouro, do governo.
A distinção entre esses dois regimes previdenciários (RGPS e RPPS) foi estabelecida, na Constituição de 1988, exatamente para que o Orçamento da Previdência não entrasse na mesma conta que o Orçamento Fiscal (a arrecadação dos impostos e os gastos gerais do governo).
No entanto, Mantega, Levy, Meirelles, Barbosa e outros degenerados têm, sistematicamente, misturado uma e outra coisa.
Portanto, não é uma surpresa que Marina (e, aliás, também Ciro) repita essa confusão, até mesmo de maneira bem intencionada. Por exemplo, disse ela:
“A Previdência não pode permitir que no Executivo você tenha aposentadorias que são muito altas, no Legislativo você tenha aposentadorias muito altas, no poder Judiciário, comparada à iniciativa privada, que é em torno de R$ 1,5 mi.”
Dificilmente o problema, aqui, são as “aposentadorias muito altas”, quando dois terços dos aposentados recebem apenas um salário mínimo, quando recebem alguma coisa (v. Apenas um terço dos aposentados recebe acima do salário mínimo).
Quanto às supostas “aposentadorias muito altas”, isso é fácil de resolver, se elas forem realmente excessivas. Para isso existe a lei (ou, se não existirem leis, existem os projetos de lei).
Nem por isso é lícito confundir o RPPS, que é o regime previdenciário dos funcionários públicos, com o RGPS, que é o regime dos demais trabalhadores.
IDADE
Uma observação sobre a “idade mínima” para se aposentar, aludida pelos entrevistadores de Marina.
É uma conquista da Humanidade que – como disse Marina – “pessoas estão conseguindo viver muito mais”.
Exatamente por isso, querer aumentar a idade mínima para se aposentar porque o tempo médio de vida aumentou, é transformar essa conquista em maldição.
Marina, como disse, é “mulher, negra, mãe de quatro filhos, fui seringueira, empregada doméstica, me alfabetizei aos 16 anos”.
Portanto, sabe disso. Não por acaso, falou em “debater” a questão – e não em impô-la.
Somente aqueles que nunca trabalharam – ou, como Lula, renegaram essa parte da sua vida – são capazes de falar com tranquilidade em aumentar a idade mínima para a aposentadoria de pessoas que passaram décadas, como se diz, pegando no pesado.
C.L.
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De quatro em quatro anos, destilam salivas, não apagam o fogo e a ira da cobiça, enganação, torpeza.
Quando o desejo se apodera dos sentidos, a mente se corrompe, a discriminação se obscurece e a razão se arruína. Cruz credo!