Entidades de defesa dos direitos humanos e institutos ligados à segurança pública entregaram na noite da última segunda-feira (26), ao procurador-geral de Justiça, Mario Sarrubbo, um relatório de denúncias de abusos e violência policial durante a operação na Baixada Santista. No relatório constam ao menos oito execuções sumárias, tortura, abordagens truculentas e invasões de domicílio. O relatório foi entregue após uma reunião fechada na sede do Ministério Público de São Paulo, no centro da capital.
O documento é resultado de uma visita organizada pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos e a Ouvidoria de Polícia de São Paulo no último 11 de fevereiro às comunidades ocupadas militarmente pela mais recente fase da fase da Operação Escudo, também chamada de Operação Verão. Foram ouvidos familiares de vítimas, testemunhas, lideranças comunitárias e moradores de Santos e São Vicente.
As entidades observaram, a partir de relatos de familiares e testemunhas, “assassinatos, tortura, socorro dificultado, mudança de cena do crime”, de 7 a 9 de setembro durante a Operação Escudo.
A Operação começou em 28 de julho de 2023 e foi finalizada, temporariamente, em 5 de setembro do ano passado, deixando 28 mortos. Retomada no início deste ano, e com menos tempo em vigor, a operação já matou 33 pessoas no litoral paulista. Em ambos os anos, a operação foi deflagrada depois que policiais militares foram mortos.
O documento apresenta um caso de tentativa de execução, cinco casos de execução sumária, duas invasões ilegais de domicílio e seis relatos de abusos policiais durante as abordagens. Ao todo, foram oito vítimas fatais da Operação Escudo nas cidades de Santos e São Vicente em apenas três dias. “Todos os casos ouvidos apresentam relatos de brutalidade e uso indevido da força policial”, dizem as entidades.
As organizações e parlamentares que participaram da comitiva, que colheu os depoimentos e assinam o relatório, são Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), Comissão Arns, Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, Instituto Vladimir Herzog, Mandato da Deputada Federal Juliana Cardoso, Mandato da Deputada Estadual Mônica Seixas, Mandato da Vereadora Débora Alves Camilo de Santos, Mandato do Deputado Estadual Eduardo Suplicy, Mandato do Vereador Tiago Peretto de São Vicente, Ouvidoria das Polícias do Estado São Paulo, Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica, Rui Elizeu de Matos Pereira e Patrícia Bueno Resende.
CASOS
Um dos casos de execução, segundo o relatório, é o do Hildebrando Simão Neto, de 24 anos. Na versão da polícia, ele foi baleado junto com outro jovem, depois de ambos apontarem armas contra policiais, dentro de uma casa, em São Vicente.
A família contesta, com base em uma evidência clínica: “segundo laudo médico, desde 2016, o jovem sofria com um quadro de Cerratocone Bilateral avançado. O jovem era cego de uma vista e tinha baixa visão na outra, sendo capaz de enxergar a apenas poucos centímetros de distância.
“Ele não amarrava um sapato sozinho. As roupas muitas das vezes colocava ao avesso. Tudo a gente ajudava ele. A minha casa é um sobrado. Eu que levava ele, ou os irmãos dele que levavam ele pro banheiro, porque ele não subia nem descia as escadas com medo de cair. Não tinha condições nenhuma do meu filho fazer nada com ninguém. Meu filho era totalmente cego”, diz mãe da vítima.
O relatório, que também é assinado pela Ouvidoria das Polícias, destaca duas invasões ilegais de domicílio. E ainda um caso específico, envolvendo um funcionário da Prefeitura de São Vicente.
Outros casos apontados no relatório, um chama atenção pois é o de um um jovem, primo de uma vítima da operação, que teve sua casa invadida por policiais do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep).
Os agentes teriam colocado uma arma em seu peito, perguntado se ele conhecia os “bandidos” que foram executados e, na sequência, torturado o jovem a com um saco plástico em sua cabeça. O relato foi feito pela tia da vítima.
A namorada de outra vítima da PM relatou que, ao tentar se aproximar, “foi agredida por um policial com uma ‘gravata’ e jogada ao chão”. “Este incidente agravou o clima de medo e insegurança na comunidade, com relatos de que os policiais não usavam identificação nos uniformes e que alteraram a cena do crime para indicar um confronto”, segue o documento.
Ainda segundo o relatório, uma das vítimas, um homem adulto morto no dia 9 de fevereiro, estava conversando com um amigo, que também teria sido assassinado no mesmo local, quando os dois foram surpreendidos por policiais saindo de uma área de mata e acabaram atingidos por disparos de fuzil.
As autoridades alegam que ambas as vítimas estavam armadas e reagiram à abordagem, versão contestada por familiares e vizinhos, que dizem se tratar de uma execução.
“Após os tiros, os policiais isolaram o local e proibiram que os moradores saíssem de suas casas. Os policiais teriam tirado fotos para postagem nas redes sociais. Familiares das vítimas afirmaram que os corpos foram colocados um sobre o outro, formando uma cruz, e que os policiais dificultaram o socorro”, afirma ainda o documento.
Para Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o objetivo do relatório entregue nesta segunda, não é apenas cobrar a investigação dos casos passados, mas evitar episódios futuros.
“Cabe ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, então, nossa expectativa é mobilizar e sensibilizar ainda mais a instituição para acompanhar os casos que estão acontecendo na Baixada Santista. Viemos com uma demanda de uma força tarefa para monitorar esses casos, todos os homicídios, as mortes por intervenção policial ocorridas na Baixada Santista, e designação de promotores exclusivos para acompanhar esses casos, que tem vitimado muita gente, inclusive os próprios policiais”, diz.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) nega abusos. A pasta tem afirmado que as forças de segurança “atuam no estrito cumprimento do seu dever constitucional”. E que todos os casos de morte em confronto são “rigorosamente investigados”.
O relatório apresenta uma série de recomendações que já foram feitas em outros momentos, com o objetivo de melhorar as condições para os próprios agentes de segurança e para a população como um todo. O uso de câmeras corporais, a realização de investigações autônomas, proteção para testemunhas e familiares, adoção de protocolos para o uso da força policial e prevenção de chacinas são as principais indicações.
Nos últimos 24 dias, o número de mortes pela PM na região já superou as 28 da primeira fase da Operação Escudo, entre 28 de julho e 5 de setembro do ano passado. Com nomes diferentes, mas estabelecendo uma política repressiva contínua comandada pelo secretário de Segurança Pública e ex-policial da Rota, Guilherme Derrite, as Operações Escudo e Verão são as mais letais ações oficiais das forças de segurança de São Paulo desde o massacre do Carandiru em 1992.
Em comum, aconteceram na Baixada Santista como operações institucionais de vingança após a morte de policiais e acumulam denúncias de tortura e execuções sumárias.
Veja o relatório na íntegra: