Segundo o engenheiro Amauri Pollachi privatização proposta por Tarcísio acaba com autonomia dos municípios, desmancha a agência reguladora Arsesp e não prevê tarifa social para mais pobres
No dia 17 de fevereiro último, as entidades representativas da Sabesp encaminharam, por meio da APU (Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp), um e-mail a prefeitos e a presidentes de Câmaras Municipais dos 375 municípios que mantém contrato com a Sabesp, com apontamentos e contribuições para subsidiar as prefeituras nas decisões de cada município referentes à adesão à URAE (Unidade Regional de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário) 1 e ao novo contrato proposto pelo governo do estado de São Paulo. No dia 15 deste mês, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), lançou a abertura de consulta pública para debater o novo contrato de privatização da companhia. O prazo para análise, discussões e contribuições pelos municípios e pela sociedade civil é de apenas 30 dias, a contar da data da publicação do documento.
Em nova entrevista à Hora do Povo, o engenheiro Amauri Pollachi, conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e diretor de Relações Externas da APU, diz que o governo de São Paulo está “constrangendo os municípios” para que aceitem o novo contrato com a Sabesp.
Amauri critica a falta de participação popular no processo e o prazo espremido para a apresentação das contribuições pelo envolvidos em um contrato que é lesivo aos municípios e à sociedade. “Documentos que somam perto de 25 mil páginas. São mais de 430 horas de leitura”, diz.
Ele alerta para o aumento das tarifas e a queda da qualidade dos serviços que a privatização da estatal deve ocasionar, a exemplo da Enel em SP e da Água do Rio, essa última no estado do Rio de Janeiro.
Leia a entrevista:
HP: Em entrevista à Hora do Povo às vésperas da votação do PL que autorizou a privatização da Sabesp, em dezembro do ano passado, você disse que acreditava que o embate contra a continuidade do processo se daria no âmbito dos municípios. Isso ainda está valendo? O governador Tarcísio de Freitas declarou recentemente que o impasse com a Câmara de Vereadores de SP foi superado e que “virou a chave da resistência”.
Amauri Pollachi: Continua valendo, porque, primeiro você tem aí todas as manifestações da secretária Resende (Natália Resende, secretária do Meio Ambiente), no sentido de que ela reafirma que não precisa de consulta nenhuma com Câmara Municipal, o que não é verdade. A adesão à URAE (Unidade Regional de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário) – essa questão é um pouco complexa. A adesão à URAE é voluntária, não é mandatória, certo? Mas para você aderir da forma como está colocado, automaticamente você terá um novo contrato de concessão que se estende, por exemplo, no caso de São Paulo, de 2040 para 2060.
É uma nova concessão para prestação de serviço. E por isso a Câmara tem que ser consultada – inapelavelmente. Não só a Câmara de SP, mas todos os 375 municípios (atendidos pela Sabesp), tem que se levar essa consulta às suas respectivas Câmaras.
HP: Levando-se em conta esse ponto, a adesão não é assim, digamos, tão espontânea como alega o governo?
Amauri Pollachi: Essa é uma condição a nosso ver que é mandatória. Existem ações populares de vários municípios questionando – dezenas de municípios do Estado de São Paulo questionando isso e colocando essa obrigação de consultas por Câmaras Municipais. Existem prefeitos que já se comprometeram a fazer isso. No entanto, nós temos aí uma grande quantidade de prefeitos que estão sendo constrangidos pelo Estado, digamos assim, a não fazer esse procedimento. No caso de São Paulo, por exemplo, o contrato que está sendo proposto pelo Estado não tem as mesmas vantagens que tem o contrato atual. Existem condições no contrato (minuta) proposto que favorecem a futura empresa Sabesp privada.
E por que isso? Porque se tornará evidentemente um negócio mais atraente para os possíveis compradores. Essa é uma condição que está aí muito clara muito explícita. Inclusive há questionamento por parte da própria Câmara Municipal. A gente já teve conversa com vereadores, sabemos que identificaram essas diferenças e que, o presidente da Casa (vereador Milton Leite) exige que não haja nenhuma vantagem a menos, mas sim a mais para o município.
HP: Você citou que há outra questão que chama atenção com relação ao novo contrato com o futuro comprador da Sabesp. Qual seria?
Amauri Pollachi: A gente precisa destacar: essas audiências públicas poucos dias após o governo do Estado de São Paulo colocar para conhecimento público um conjunto de documentos que somam perto de 25 mil páginas. Se você ler cada página – somente ler, sem fazer uma interpretação, sem, eventualmente voltar para entender melhor algo que está colocado, algum item, simplesmente ler – você leva 17 dias. São mais de 430 horas de leitura para 25 mil páginas. Não Ação Civil Pública que nós protocolamos, nós apontamos que o processo de audiência pública é um processo que não está dando condições para a participação social e para que os próprios municípios se apropriem e façam uma análise crítica desse material. Você tem que dar no mínimo 60 dias pra isso, para você ter uma fase de esclarecimentos.
O que se está propondo, uma fase de consulta pública, as pessoas vão lá, vão criticar vão falar, mandar algum documento, criticando isso ou aquilo, depois eles consolidam e início de abril já fazem a reunião da URAE 1, sacramentam a coisa. Precisava dar pelo menos 60 dias para que se possa ter esclarecimentos ao longo desse período e aí se fazer as considerações em audiências públicas. O que está sendo feito agora é uma exclusão da participação social. E as outras três URAE’s? Ninguém fala delas, não interessa. Você está excluindo da possibilidade de acesso a saneamento público as outras três unidades. Por que você diz que diz que tem que eliminar 260 municípios que estão fora da URAE-1.
HP: Municípios menores terão a sua autonomia reduzida no modelo que está sendo proposto? O documento da APU aponta para isso.
Amauri Pollachi: Os outros municípios ficariam somente como figurantes do processo. O estado teria 37% por cento do total de votos nessa URAE; a capital, 19%. Ambos somados, 56%, os demais municípios estão com participação pífia. Você pega o município de 350 mil habitantes, ele vai ter 0,4%, quase nada. E o município de 30 mil habitantes (há vários), apenas 0,04% de votos, você vê, a exclusão é evidente. Um acordo entre a capital e o Estado, conforme o desenho que o próprio Estado traça, dá o controle total e o destino de todos os municípios. Pelo modelo atual cada município tem o seu próprio contrato e tem diálogo próprio, cada município tem o controle de si. O que está sendo proposto é uma coisa em que os municípios vão abdicar da sua autonomia em favor de um agrupamento, URAE, que eles não têm. Um município como Franca, por exemplo, vai ter só 0,4% (de poder de decisão).
HP: E os prefeitos destes municípios? Como está a movimentação deles?
Amauri Pollachi: A gente percebe um enorme desconforto por parte dos prefeitos, mas eles estão sendo coagidos – a palavra é essa – estão sendo coagidos a aceitar essa imposição pelo Estado. Por quê? Porque, se o prefeito falar não quero, o Estado está dizendo o seguinte: “ah, então você não aceita esse novo contrato, então o contrato atual está desfeito e você terá que pagar agora todo o investimento que ainda não foi amortizado”. Eu estive conversando com o prefeito de uma cidade de médio porte do interior (de SP), uma cidade de 150 mil habitantes, que me falou o seguinte: “eu pedi para fazer um levantamento junto à Sabesp, eles me falaram que eu devo 500 milhões de reais”. Esses 500 milhões de reais é praticamente o orçamento anual do município. É um município equacionado, está universalizado, está com as finanças em dia, mas como é que ele vai pagar 500 milhões no ato?
O Estado de São Paulo, o governo de São Paulo está constrangendo, está forçando a barra para que os municípios aceitem esse novo contrato e abram mão da sua autonomia. Pior: nesse novo contrato – é o que eu já falei – não está garantido que a dívida estaria zerada ao final de 2027. Pode ser que esse mesmo município que eu citei, lá pra frente, daqui a uns 36 anos tenha uma dívida de 500 milhões. E aí ele fica escravo, fica algemado. E não tem Lei Áurea, não.
HP: A Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo – ARSERP – corre o risco de ter enfraquecido o seu papel com a Sabesp nas mãos do capital privado? Como é a sua atuação?
Amauri Pollachi: Ela tem um perfil interessante, a grande dificuldade (para atuar) – ela melhorou muito nos últimos tempos, – é um quadro de pessoal ainda insuficiente, mas em termos de normativas, em termos de estudos, de procedimentos, hoje ela é, digamos, uma das melhores agências do país na questão da regulação e da fiscalização. Ainda há alguma deficiência no quadro da fiscalização, mas nada que não seria resolvido através de um concurso público. Inclusive a questão da tarifa social foi a partir de uma regulamentação da ARSERP, da obrigatoriedade de colocar a população que está no CadÚnico com benefício de tarifa social vulnerosa.
O que está proposto é o desmanche, praticamente, dessa agência. Estão colocando a contratação de um agente verificador independente e de uma empresa de auditoria independente também, ambas as empresas de consultoria remuneradas pela Sabesp. Então eles serão remunerados pela Sabesp para controlar a Sabesp.
HP: A tarifa social não aparece no esboço de contrato apresentado pelo governo. Essa conquista está ameaçada?
Amauri Pollachi: O critério não está posto, não está garantido. Ela (secretária do Meio Ambiente) diz que vai fazer, mas não tem nada tão definido assim.
HP: Há municípios de São Paulo que têm suas próprias empresas atuando no fornecimento de água e saneamento. Por exemplo, Guaratinguetá, no vale do Paraíba, que tem uma companhia de economia mista. Qual a avaliação que se faz dessas experiências?
Amauri Pollachi: Campinas, Araraquara, Jundiaí. Os serviços municipais são exemplares! Campinas, excepcional a qualidade, (o atendimento) está praticamente universalizado, tem muita tecnologia de ponta. A Sanasa de Campinas, que é uma empresa municipal, tem um funcionamento ótimo; Araraquara também, super bem avaliada, a gente tem ruim também, tem Bauru, Marília. Já empresas privatizadas, tem Limeira, que acho que foi privatizada em 97 e tem bom serviço, é uma empresa privada. No entanto, outros municípios que foram privatizados não têm essa mesma avaliação. Por exemplo, as tarifas são altas o pessoal deixando de fazer investimentos, aquela velha história que, via de regra, leva ao rompimento de contrato. Tarifas elevadas, investimento que não é feito, mal atendimento, metas que não são atingidas.
HP: A venda da Sabesp afetará a economia do estado e dos municípios? De que forma?
Amauri Pollachi: Sem dúvida. O que é que acontece com as empresas privatizadas? Elas reduzem o quadro de funcionários, contratam serviços e obras de empresas do próprio grupo, ou seja, uma verticalização, e muitas vezes como elas têm uma boa participação de capital internacional, acabam comprando equipamentos, mesmo prestação de serviços, de empresas de fora. E com isso regionalmente São Paulo vai perder dinheiro. Por quê? Porque muitas empresas do Estado dependem da Sabesp para fazer obras, para prestar serviços. Essas empresas não mais irão prestar serviços à Sabesp porque a nova controladora vai privilegiar os seus e não necessariamente os que estão sediados aqui em São Paulo. Haverá perda de receitas sim em termos de geração de impostos.
HP: O que a população pode esperar de um setor estratégico como água e saneamento nas mãos do mercado?
Amauri Pollachi: Uma elevação de conta da água no médio prazo. Talvez não aconteça no curto prazo porque o governo vai atuar para que a empresa privada segure a tarifa, mas isso só vai acontecer durante um ou dois anos. Depois disso se preparem, porque a conta vai subir. E a qualidade vai deteriorar porque a Sabesp é uma empresa super bem avaliada. Ela tem pesquisa de satisfação, de serviços obrigatórios para atender, inclusive à própria agência do governo. Na última avaliação que houve, a Sabesp teve em torno de 83% de satisfação, um número muito alto, bom. Eu não acredito que a empresa privada vá manter esse bom atendimento.
A tendência na prestação de serviço é o que tá acontecendo no Rio de Janeiro: dois anos depois (da privatização da CEDAE um decreto estadual majorou a tarifa dos hotéis e condomínios, alterando a sua composição de 50% residencial e de 50% comercial para 100% comercial, o que ocasiona um aumento do gasto do setor de aproximadamente R$ 65 milhões anuais). Então olhem o Rio de Janeiro! O “futuro” é o Rio de Janeiro.
JOSI SOUSA