CARLOS LOPES
A República foi, como vimos em nosso artigo anterior, a ruptura com a estagnação secular, cuja manutenção era o objetivo – e, mais do que o objetivo, a função – do Império. Com a Proclamação, o nosso país livrara-se de um trambolho, o Estado monárquico, que travava e sufocava o seu desenvolvimento (v. HP 05/02/2024, A República e a revolução).
A profundidade desse rompimento com o atraso ficou evidente na acirrada oposição que a República – em especial a política econômica do Governo Provisório e a política industrial do governo Floriano Peixoto, que será o nosso próximo tema – sofreria por parte dos setores reacionários do país, os mesmos que, durante o Império, haviam se beneficiado da estagnação agrária e da submissão financeira externa.
Como reconhece uma historiadora, por volta de 1892, “rompera-se, pois, a unanimidade republicana a favor da indústria nacional” (v. Nícia Vilela Luz, A Luta pela Industrialização do Brasil, 2ª ed., Alfa Omega, 1978, p. 111).
Mas a restauração do atraso e da estagnação, nos governos de Prudente de Moraes, e, sobretudo, de Campos Sales, somente seria possível debaixo de intensa luta política – cujo lado progressista ressurgiria quase 40 anos depois, com a Revolução de 30 – que afastou do poder, por algumas décadas, os setores nacionalistas e dinâmicos da sociedade.
Antes dessa restauração, no entanto, o que a luta política evidenciou foi a profunda ruptura com a ordem anterior.
Na noite de 15 de novembro de 1889 – portanto, logo após a derrubada da monarquia – o Governo Provisório da República emitiu seu manifesto e seu primeiro decreto:
“Proclamação dos membros do Governo Provisório.
“Concidadãos!
“O Povo, o Exército e a Armada Nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com nossos concidadãos residentes nas Províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e consequentemente a extinção do sistema monárquico representativo.
“Como resultado imediato desta revolução nacional, de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser instituído um Governo Provisório, cuja principal missão é garantir a ordem pública, a liberdade e o direito do cidadão.
“Para comporem este Governo, enquanto a nação soberana, pelos seus órgãos competentes, não proceder à escolha do Governo definitivo, foram nomeados pelo chefe do Poder Executivo os cidadãos abaixo assinados.
“Concidadãos!
“O Governo Provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o Governo da paz, da fraternidade e da ordem.
“No uso das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido para a defesa da integridade da pátria e da ordem pública, o Governo Provisório, por todos os meios ao seu alcance, promete e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as limitações exigidas pelo bem da pátria e pela legítima defesa do Governo proclamado pelo povo, pelo Exército e pela Armada Nacional.
“Concidadãos!
“As funções da justiça ordinária, bem como as funções da administração civil e militar, continuarão a ser exercidas pelos órgãos até aqui existentes, com relação às pessoas, respeitadas as vantagens e os direitos adquiridos por cada funcionário.
“Fica, porém, abolida, desde já, a vitaliciedade do Senado e bem assim o Conselho do Estado.
“Fica dissolvida a Câmara dos Deputados.
“Concidadãos!
“O Governo Provisório reconhece e acata os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a dívida pública externa e interna, contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas.
“Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, chefe do Governo Provisório.
“Aristides da Silveira Lobo, ministro do Interior.
“Tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, ministro da Guerra.
“Chefe de Esquadra Eduardo Wandenkolk, ministro da Marinha.
“Quintino Bocaiúva, ministro das Relações Exteriores e interinamente da Agricultura, Comércio e Obras Públicas” (cf. Hélio Silva e Maria Cecília Ribas Carneiro, Nasce a República, História da República Brasileira, Editora Três, 1975, pp. 69-70).
Quinze de novembro de 1889 foi uma sexta-feira. No dia seguinte, os jornais publicaram as primeiras decisões do governo republicano, inclusive o decreto/manifesto acima.
A composição do Governo Provisório seria alterada – mais de uma vez – até janeiro de 1891, quando ele foi encerrado. Sucintamente, essa composição foi a seguinte:
Chefe do Governo Provisório — Deodoro da Fonseca.
Ministério da Justiça — Campos Sales.
Ministério da Marinha — Eduardo Wandenkolk.
Ministério da Guerra — Benjamin Constant, Floriano Peixoto e Antônio Nicolau Falcão da Frota.
Ministério dos Negócios Estrangeiros — Quintino Bocaiúva.
Ministério da Fazenda — Rui Barbosa e Tristão de Alencar Araripe.
Ministério do Interior — Aristides Lobo, Cesário Alvim e Tristão de Alencar Araripe.
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas — Demétrio Nunes Ribeiro, Francisco Glicério de Cerqueira Leite e Henrique Pereira de Lucena.
Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos — Benjamin Constant.
Foi esse período que o principal ministro do governo, Rui Barbosa, chamou, diante da Constituinte, de “ditadura revolucionária”.
A defesa que Rui fez do projeto de Constituição do Governo Provisório é, aliás, uma das peças oratórias mais importantes da História do Brasil. Basicamente, ele demonstra que a federação dos Estados somente pode existir dentro da União – não fosse ele, com Júlio de Castilhos, o maior defensor da federação durante a fase final do Império. Mas, naquele momento, Júlio de Castilhos, na Constituinte, se encontra na posição daqueles que consideram a federação como geradora da União – e é isso o que Rui combate.
Não se trata de um debate filosófico ou teórico – ou apenas filosófico ou teórico. Uma ou outra posição têm uma consequência prática na distribuição da arrecadação dos impostos entre a União e os Estados. Para Rui, a União é inviável se os Estados absorvem a quase totalidade dos impostos – mas, nesse caso, também a federação é inviável, pois ela não existe sem a União.
Em novembro de 1890, falando, como ministro da Fazenda, à Constituinte, Rui Barbosa contesta os que apontam uma suposta “gastança” da ditadura revolucionária, ou seja, do Governo Provisório, instalado após 15 de novembro de 1889:
“… Tivemos a fortuna de mudar a nossa forma de governo por uma revolução sem sangue, nem desordem, sem espoliação, nem violências. Sob este aspecto, o nosso exemplo é singular na história das revoluções. Se a levássemos a cabo, sem ao menos aumentar o orçamento trivial da despesa, teríamos também nesta particularidade fornecido à história o primeiro espécimen conhecido até hoje. Mas, se o não fizemos, não deixamos de fazer muito, fazendo o que está feito.
“Quando se amontoam, porém, acusações, para nos esmagar sob o peso dos nossos erros em matéria de despesa, não esqueçam registrar, no balanço, os atos de severidade financeira, que assinalam, por outro lado, a nossa administração. Não esqueçam que, só no capítulo rotulado sob o título de auxílios à lavoura, poupamos ao Tesouro 40 mil contos de réis; que com o recolhimento, já quase concluído, do empréstimo de 1889, aliviamos o Orçamento numa soma anual que, de 3.400 contos nos primeiros exercícios, subirá a 4.455 contos nos exercícios subsequentes; que, com a conversão das apólices de 5 a 4%, teremos firmado ainda uma economia permanente e considerável; que outras economias de natureza constante e ordem elevada proporcionamos ao Tesouro, habilitando-o, pela cobrança dos direitos de importação em ouro, a efetuar o serviço das suas despesas no exterior, independentemente das flutuações do câmbio, verba correspondente, em todas as liquidações anuais, a muitos milhares de contos; que outra derivação anual de milhares de contos encaminhamos para o Tesouro, com a extinção do contrabando na fronteira do Sul; que, por último, acabamos de assegurar ao país o resgate gratuito do papel-moeda em dois terços de sua importância total” (cf. Pensamento e Ação de Rui Barbosa, SF, 1999, pp. 103-104, sessão da Constituinte de 16/11/1890, O.C., Vol. 17, t. 1).
Os “auxílios à lavoura” eram, em realidade, compensações estabelecidas pela monarquia, à custa de empréstimos públicos, aos senhores de escravos após a Abolição: “como solução de momento, imposta pela crise da lavoura, originada principalmente da Abolição, o gabinete Ouro Preto fazia com que o Tesouro fornecesse a alguns bancos, sem juros, até à soma de 84 mil contos, resultantes do empréstimo interno de 100 mil, para que os mesmos estabelecimentos os emprestassem à lavoura, a juros de 6% e prazo de 1 a 15 anos” (v. José Maria Bello, História da República, 3ª ed., Companhia Editora Nacional, 1956, p. 98).
Esses “auxílios” foram, na maior parte, suspensos pela República.
2
O objetivo da revolução republicana era romper com a estagnação e atraso imposto pela monarquia.
A própria República se estabelecera, como demonstramos em texto anterior, com base nas relações capitalistas que se desenvolviam no país e que eram, ao fim e ao cabo, incompatíveis com o Império, superestrutura político-jurídica do escravismo (v. HP 05/02/2024, A República e a revolução).
Após um certo ponto, a monarquia tornara-se um entrave às relações de produção capitalistas – ou, nas palavras de um historiador, um “trambolho” que sufocava a economia e o país.
O principal entrave ao crescimento do país era a política financeira da monarquia, que “por um lado conduzira a um grande aumento da dívida externa e por outro mantivera o sistema econômico em regime de permanente escassez de meios de pagamento”. Era um sistema adequado ao escravismo, com seu estreitíssimo mercado interno, mas completamente inadequado para uma economia baseada no trabalho assalariado – ou seja, uma economia capitalista: “O sistema monetário de que dispunha o país demonstrava ser totalmente inadequado para uma economia baseada no trabalho assalariado. (…) Enquanto prevalecera o regime do trabalho escravo, sendo reduzido o fluxo de renda monetária, não eram muitos os tropeços criados por esse rudimentar sistema monetário” (v. Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, 14ª ed., Companhia Editora Nacional, 1976, pp. 170-171).
O problema, portanto, depois de livrar-nos do trambolho estatal monárquico, era o que fazer para tirar o país da estagnação, sobretudo em uma situação na qual, com a revolução, “as desconfianças, principalmente nos meios europeus simpáticos à Monarquia, provocadas pelo levante republicano, o excesso das importações, o surgimento de empresas de toda espécie e outras circunstâncias ocasionais precipitaram a evasão do ouro” (José Maria Bello, op. cit., p. 99).
A política financeira da incipiente República, tendo Rui Barbosa à frente do Ministério da Fazenda, foi a de aumentar o crédito, o que redundou na reanimação frenética da economia: “A transição de uma prolongada etapa de crédito excessivamente difícil para outra de extrema facilidade deu lugar a uma febril atividade econômica como jamais se conhecera no país” (Celso Furtado, op. cit., p. 171).
O Brasil, há muito, usava o ouro como lastro de sua moeda – o que equivalia a fazer da libra esterlina o seu padrão. Algemado a esse padrão, uma evasão do ouro significava uma derrocada do mil-réis, a nossa moeda na época.
Diante disso, Rui Barbosa propõe, e obtém, do marechal Deodoro, a ruptura com o padrão ouro e sua substituição por títulos da dívida pública.
Ainda nas palavras de José Maria Bello: “A 17 de janeiro de 1890, Rui Barbosa faz o chefe da nação assinar longo e engenhoso decreto de reforma bancária. Os títulos da dívida federal substituíam o ouro como lastro das emissões bancárias, à semelhança do que se fizera nos Estados Unidos ao tempo de Lincoln, com os National Banks” (op. cit., p. 99).
Tratava-se de uma política de amplo crédito público, substituindo a política monárquica de restrição monetária, cuja principal expressão fora a “Lei dos Entraves” (lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860), que amarrava as emissões rigorosamente aos depósitos metálicos, ou seja, ao exíguo lastro em ouro.
A política de Rui tinha como objetivo, evidentemente, a industrialização do país. Sem crédito farto – e isso significava crédito público – ela era impossível.
Isso é claro em seu “Relatório do Ministro da Fazenda”, de 1891, em que ele expõe a sua política financeira. Nele, escreve Rui: “No regímen decaído, todo de exclusivismo e privilégio, a nação, com toda a sua atividade social, pertencia a classes ou famílias dirigentes. Tal sistema não permitia a criação de uma democracia laboriosa e robusta, que pudesse inquietar a bem-aventurança dos posseiros do poder, verdadeira exploração a benefício de privilegiados. Não pode ser assim sob o sistema republicano. A república só se consolidará, entre nós, sobre alicerces seguros, quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial, peça necessária no mecanismo do regime, que lhe trará o equilíbrio conveniente” (Rui Barbosa, Relatório do Ministro da Fazenda, 1891, Obras Completas, vol. XVIII, t. III, p. 143, grifo nosso).
Depois de se referir à difícil situação do início da República, ele passa às providências que tomou:
“… recorri à única salvação possível em semelhante conjuntura: assentar, como os Estados Unidos tinham feito, em circunstâncias análogas e sob a força de iguais necessidades, a garantia do meio circulante sob os títulos da dívida nacional. Indigitada pela malevolência e pela má-fé de uma reação furiosa e insensata como um sistema de monopólios fatais à liberdade do trabalho e à indústria nacional, essa instituição não tardou em se recomendar, pela experiência imediata dos seus efeitos, às simpatias de todas as classes laboriosas, como o maior acelerador, que jamais se concebeu neste país, da prosperidade do trabalho, como o maior difusor de crédito, o mais enérgico propulsor do nosso movimento industrial, a que veio imprimir inaudita atividade” (Rui Barbosa, Relatório do Ministro da Fazenda, 1891, Obras Completas, vol. XVIII, t. II, p. 53).
A consequência dessa medida é descrita exaustivamente, mas, também, sucintamente:
“O mercado monetário respirou então desassombrado, e o fôlego da renascença industrial, incipiente no dia imediato à abolição, dilatou-se, poderoso e criador, pelos amplos pulmões da República” (idem, p. 131).
Rui descreve, em seu relatório, a estagnação a que nos conduzira o Império – e que era necessário superar:
“Após mais de sessenta anos de administração monárquica, o trabalho industrial, entre nós, vegetava ainda raquiticamente no estado mais rudimentar. Contavam-se os estabelecimentos fabris de alguma importância; e nem o produto desses, nem o dos pequenos industriais, dispersos em exíguo número e circunscritos à esfera de suas tendas, representavam elemento considerável para a satisfação das nossas necessidades. Data do princípio de 1886, por assim dizer, a emersão, neste país, da grande indústria, que, a respeito de alguns artigos de produção, já dous anos depois começava a concorrer com os similares estrangeiros” (idem, pp. 141-142).
Em seguida, Rui apresenta os números que mostram como sua política estimulou a indústria, tirando-a do atraso em que a monarquia afundara-a:
“No longo curso de mais de sessenta anos, decorrido até a lei de 13 de maio, o movimento industrial desta praça, representado no capital das sociedades anônimas, circunscreve-se à soma de 410.579:000$. Nos dezoito meses compreendidos entre 13 de maio de 1888 e 15 de novembro de 1889 as associações do mesmo gênero, constituídas nesta cidade, exprimem um capital de 402.000:000$. De 15 de novembro de 1889 a 20 de outubro de 1890 (onze meses) as sociedades anônimas formadas nesta capital atingem a importância descomunal de 1.169.386:600$000” (idem p. 158).
“Acareemos estes algarismos.
“Sob a aliança da monarquia com a escravidão em cerca de 66 anos: 410.879:000$000.
“Sob a monarquia sem a escravidão, em três semestres: 402.000:000$000.
“Sob a república, em onze meses: 1.169.386:600$000.
“Medido por esses algarismos o nosso progresso, teríamos de concluir que, em dezoito meses, desembaraçados do cativeiro, andamos tanto, quanto em quase meio século sob o peso dele, e que, em menos de um ano sob a república, nos adiantamos 50% mais do que em toda duração do regímen imperial” (idem, grifos nossos).
“Tomada a porcentagem correspondente a cada um dos dous últimos períodos cada um de per si, e depois adicionados um ao outro, em relação ao primeiro, representado pela soma de 410.879:000$000, temos um acréscimo:
“Nos 18 meses seguintes a 13 de maio, de: 97,64%.
“Nos 11 subsequentes a 15 de novembro, de: 278,78%.
“Nos 29 meses, de 13 de maio de 1888 a 20 de outubro de 1890, de: 376,78%” (idem, grifos nossos).
“Note-se que este computo não abrange as empresas, em número considerável, que, tendo a sua sede em Minas, S. Paulo e outros Estados, aqui, todavia, foram lançadas, e aqui localizaram as suas ações. S. Paulo e Minas têm acompanhado galhardamente esse movimento, podendo-se depreender dos dados quotidianamente fornecidos pela imprensa que os cometimentos organizados nesses dous Estados elevariam a porcentagem supra-estabelecida a 500 ou 550%” (idem, p. 159).
Este foi o resultado da liberação do crédito público. Uma questão decisiva, frisa Rui Barbosa, é a manutenção dos juros em níveis baixos:
“A elevação dos juros da dívida pública desvia da indústria os capitais particulares, anima à indolência os que vivem dos títulos do Estado, e, contribuindo para erguer o nível geral à taxa do dinheiro no mercado, aumenta o custo da produção, reduzindo os salários, ou exagerando os preços” (idem, p. 189).
“Forçoso era, pois, abaixá-la [a taxa de juros]” (p. 198).
Como lembram dois autores, Rui é, de longa data, muito antes da República – e de sua conversão ao republicanismo – um defensor da industrialização. Em 1882, na inauguração do curso profissionalizante do Liceu de Artes e Ofícios, ele dissera:
“Mas somos uma nação agrícola. E por que não também uma nação industrial? Falece-nos o ouro, a prata, o ferro, o estanho, o bronze, o mármore, a argila, a madeira, a borracha, as fibras têxteis? Seguramente, não. Que é, pois, o que nos míngua? Unicamente a educação especial, que nos habilite a não pagarmos ao estrangeiro o tributo enorme da mão d’obra. Nenhum país, a meu ver, reúne em si qualidades tão decisivas para ser fecundamente industrial, quanto aqueles, como o nosso, onde uma natureza assombrosa prodigaliza às obras do trabalho mecânico e do trabalho artístico um material superior, na abundância e na qualidade” (cit. por Ivan Colangelo Salomão e Pedro Cézar Dutra Fonseca, Heterodoxia e industrialização em contexto agrário-exportador: o pensamento econômico de Rui Barbosa, Am. Lat. Hist. Econ., año 22, núm. 1, enero-abril, 2015, p. 169).
O estímulo à industrialização na política de Rui Barbosa, porém, vai além da liberação de créditos públicos e da educação profissionalizante. Pela primeira vez, o Brasil estabelece, com ele no Ministério da Fazenda, tarifas alfandegárias declaradamente protecionistas. Até então, os aumentos de tarifa, desde a Independência – inclusive a famosa tarifa Alves Branco – haviam tido caráter fiscal, ou seja, arrecadatório. As tarifas estabelecidas por Rui, pela primeira vez em nossa História, têm intenção abertamente protecionista, como ele mesmo explicou:
“Nenhum país reúne talvez, nos seus recursos naturais, proporções tamanhas e tão variadas, como este, para o desenvolvimento de indústrias poderosas e opulentas. Mas outros, em todos esses ramos de aplicação do trabalho, principiaram muito antes de nós; e, para esmagar a nossa concorrência, ou dificultá-la, condenando-a à inferioridade, à atrofia e ao marasmo, bastam-lhes as vantagens inerentes a essa prioridade. Impossível será, pois, estabelecer-se a concorrência em condições equitativas, proporcionar-se ao trabalho nacional esse fair play, em que aliás consiste o objeto e o atrativo do regímen livre, se não buscarmos ressarcir um pouco as desvantagens da nossa tardia entrada na arena da competência industrial mediante certa dose de proteção, moderada, temporária, mas compensadora” (Rui Barbosa, Relatório do Ministro da Fazenda, 1891, Obras Completas, vol. XVIII, t. III, p. 129).
Trata-se de uma política de substituição de importações, 40 anos antes de Getúlio e da Revolução de 30.
Não pretendemos, aqui, detalhar toda a política aduaneira de Rui Barbosa (para um resumo, bastante compreensível, ver o artigo citado de Ivan Colangelo Salomão e Pedro Cézar Dutra Fonseca).
É suficiente, aqui, assinalar que, além de estabelecer tarifas protecionistas, o governo decretou que os direitos de importação seriam pagos em ouro:
“O móvel dessa medida estava, evidentemente, na intenção, não de desenvolver a renda, mas de auxiliar o governo a reunir no erário público a soma de moeda metálica indispensável às despesas, cuja satisfação não se pôde realizar noutra espécie” (idem, p. 155).
Essa medida serviu como um freio poderoso às importações, que, no primeiro ano da República, haviam, como observamos, saído do controle – e sairiam de controle, outra vez, após a demissão de Rui do Ministério da Fazenda.
O industrialismo – permita-nos o leitor assim o chamar – de Rui é intrinsecamente ligado ao seu nacionalismo. Muito depois da sua passagem pelo Ministério da Fazenda, ele diria, em seu mais famoso discurso:
“… Não busquemos o caminho de volta à situação colonial. Guardemo−nos das proteções internacionais. Acautelemo-nos das invasões econômicas. Vigiemo-nos das potências absorventes e das raças expansionistas. Não nos temamos tanto dos grandes impérios já saciados, quanto dos ansiosos por se fazerem tais à custa dos povos indefesos e mal governados. Tenhamos sentido nos ventos, que sopram de certos quadrantes do céu. O Brasil é a mais cobiçável das presas; e, oferecida, como está, incauta, ingênua, inerme, a todas as ambições, tem, de sobejo, com que fartar duas ou três das mais formidáveis.
“Mas o que lhe importa é que dê começo a governar−se a si mesmo; porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva em conta uma nacionalidade adormecida e anemizada na tutela perpétua de governos, que não escolhe. Um povo dependente no seu próprio território e nele mesmo sujeito ao domínio de senhores não pode almejar seriamente, nem seriamente manter a sua independência para com o estrangeiro” (Rui Barbosa, Oração aos Moços, 1921, 5ª ed., Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997, p. 50).
Porém, já como ministro da Fazenda, Rui percebia nitidamente que a soberania do país era função do seu desenvolvimento econômico, do seu desenvolvimento nacional. Examinando o problema da remessa de lucros, escrevia ele, já naquele tempo:
“… o saldo favorável ao país vai escoar-se, em grande proporção, para o exterior, ou por lá se fixa, graças a um fato pouco levado em conta na apreciação deste assunto, mas da maior relevância na interpretação das anomalias do nosso câmbio. Ninguém ignora que o comércio, especialmente o grande comércio, das nossas praças mais importantes reside, na sua maior parte, para não dizer na sua quase totalidade, em mãos de estrangeiros. Esses acumuladores de riqueza reservam-na, em boa parte, para a pátria, onde concentram as suas aspirações, e para onde retiram o capital adquirido, ou a renda, que, até hoje, não foi convenientemente taxada, ao menos para salvarmos, a benefício do país, uma quota módica dessas fortunas amontoadas à custa dele. Essa tendência constitui um fator permanente de depauperação nacional, invertendo contra nós a proporção real entre o ativo e o passivo das nossas relações comerciais com o estrangeiro” (Rui Barbosa, Relatório do Ministro da Fazenda, 1891, Obras Completas, vol. XVIII, t. III, p. 180).
Ele defende medidas para que os lucros dos estrangeiros – ou parte deles – fiquem no país: “Assim cessará o monopólio da exportação dos nossos produtos, exercitada privativamente pelas casas estrangeiras no Brasil, filiais a casas matrizes situadas nos mercados europeus e americanos, as quais exploram o comércio dos frutos da nossa cultura a preços ditados pelo arbítrio dos interesses de uma especulação sem corretivos” (idem, p. 218).
3
A política econômica de Rui Barbosa foi desmontada por seus sucessores no Ministério da Fazenda – Tristão de Alencar Araripe, e, depois, o barão de Lucena. Seria o início de um terrível retrocesso do país à imobilidade agrária – ou seja, a uma política econômica anti-industrial. Todas as odes ao “Brasil, país essencialmente agrícola”, de origem inglesa, que embalaram o sono dos senhores de terras e de escravos no Império, voltaram, com o domínio das oligarquias na República, especialmente a oligarquia cafeeira, sobre a economia – e a política econômica.
Porém, essa política reacionária somente se consolidaria nos governos de Prudente de Moraes – e, sobretudo, Campos Sales.
Com isso – com a desindustrialização que sucedeu aos governos de Deodoro e Floriano – a política de Rui somente ressurgiria, sob forma renovada, após a Revolução de 1930. Nesse sentido, Ivan Colangelo Salomão e Pedro Cézar Dutra Fonseca têm plena razão ao apontar que “a heterodoxia do pensamento de Rui Barbosa não se singularizou apenas pelo combate aos ditames estabelecidos pelo padrão-ouro ou pela defesa de políticas fiscais anticíclicas em momentos de retração da atividade econômica. Indo além, Rui também ofereceu uma precoce defesa da industrialização e da necessidade de construção nacional, motivo pelo qual pode ser considerado como um dos precursores da política de governo levada a cabo a partir da Revolução de 1930” (art. cit., p. 152, itálico no original).
E, mais adiante:
“… a sua precoce heterodoxia antecipou traços basilares do que seria a ideologia norteadora da política econômica adotada por sucessivos governos ao longo do século XX no Brasil: o nacional-desenvolvimentismo” (idem).
Entretanto, a política de Rui (assim como o nacional-desenvolvimentismo de Getúlio) esteve debaixo de fogo, desde o primeiro momento. Em um país agrário – e, mais ainda, agrário-exportador – ela teve contra si o peso das oligarquias, então recém-saídas da escravidão, em especial da oligarquia cafeeira.
Daí a difamação dessa política, confundida com a bolha especulativa do “encilhamento”, com base (?!) em um romance, O Encilhamento – cenas contemporâneas (1893), escrito por um rancoroso monarquista, o visconde de Taunay.
No entanto, o “encilhamento” – além de suas origens além do Brasil, na crise do Barings e na bancarrota argentina – começou ainda sob a monarquia, quando o visconde de Ouro Preto, após a Abolição, passou a transferir dinheiro público para os bancos privados, sem juros, por prazos que variavam de sete a 22 anos. Os bancos, por sua vez, emprestavam esse dinheiro aos fazendeiros (isto é, aos ex-senhores de escravos) com prazo de um a 15 anos e juros de 6% ao ano (v. Encilhamento: crise financeira e República, Desafios do Desenvolvimento, IPEA, Ano 8, Edição 65, 05/05/2011).
Isso redundou em um festival especulativo desbragado e despudorado, ainda na gestão do visconde de Ouro Preto – ou seja, repetimos, ainda durante a monarquia – cujo centro estava em fundar bancos a granel para receber dinheiro do governo (foi o próprio Rui quem demonstrou isso, em seu discurso, no Senado, de 3 de novembro de 1891: v. Rui Barbosa, Finanças e Política da República, Discursos e Escriptos, Companhia Impressora, Capital Federal, 1892, p. 11).
Com a Proclamação da República, os especuladores começaram a remeter dinheiro – sob a forma de ouro, que era o lastro do mil-réis – para fora do país. Quando Rui Barbosa assume o Ministério da Fazenda, os negócios comerciais e bancários no Rio de Janeiro e São Paulo já estão sob histérica (e estéril) especulação.
Notemos que a expansão monetária a que Rui se refere acima, e que ele executou, foi em função da ampliação, sem precedentes, no número e no capital das empresas.
Rui não teve tempo de combater a especulação e colocar a economia nos trilhos produtivos e nacionais a que se propusera: saiu do Ministério em janeiro de 1891.
Como enfatizou um historiador, “a substituição de Rui Barbosa na pasta da Fazenda foi um sinal evidente do movimento para alijar a representação da classe média” (Nelson Werneck Sodré, Formação Histórica do Brasil, Brasiliense, 2ª ed., p. 300).
Mas, antes que as oligarquias se apossassem do governo, teriam que enfrentar o período de Floriano Peixoto.
Rui, porém, faria a sua defesa, em três discursos no Senado (a 3 de novembro de 1891; a 12 de janeiro de 1892; e a 13 de janeiro de 1892), todos reunidos no volume, citado acima, Finanças e Política da República.
O primeiro é sobre a taxa de câmbio. Os opositores da República acusavam o aumento do meio circulante (ou seja, as emissões de dinheiro), determinado por ele, quando ministro da Fazenda, pela derrocada do câmbio – a elevação da libra esterlina em relação ao mil-réis.
Rui demonstra que as emissões de mil-réis nada têm a ver com a taxa de câmbio e que o aumento do meio circulante era inevitável, em uma situação na qual o trabalho escravo fora substituído pelo trabalho assalariado. Senão, como os patrões pagariam os salários dos empregados?
Pelo contrário, o aumento do meio circulante (isto é, do dinheiro em circulação) não tem relação com a taxa de câmbio, mas com a taxa de juros. Quanto mais dinheiro em circulação, menor a taxa de juros, pois menor o preço do dinheiro.
O segundo discurso é a defesa da unidade e centralização das emissões (estabelecida com a fundação do Banco da República, a sete de dezembro de 1890) contra a pluralidade dos bancos emissores. Trata-se de um sistema que até hoje adotamos no Brasil. Além disso, esse discurso mostra que Rui estava em contradição com o sistema adotado nos EUA – e em contradição com a tentativa da “city” londrina de nos fazer regredir à pluralidade de bancos emissores.
A comparação entre a política econômica do Império e a política econômica da República é o tema do terceiro discurso. Rui examina essa questão a partir do pagamento em ouro do imposto sobre as importações, estabelecido por ele quando ministro da Fazenda, e que provocara a alvoroçada oposição dos monarquistas – a tal ponto que, então, a própria República propôs ao Congresso a sua abolição e substituição por uma sobretaxa de 50%. Essa proposta, ele demonstra, tinha o significado de regredir a política econômica da República ao que ela fora durante a monarquia.
Até o fim de sua vida, em 1924, Rui Barbosa defenderia a sua política econômica. Não passou despercebido a ele que os ataques de que era alvo partiam daqueles que se beneficiaram com a estagnação do Império, e, agora, na República, queriam a restauração, não propriamente da monarquia, mas da estagnação anti-industrial que caracterizara o período monárquico, isto é, o tacão agro-exportador, submisso aos bancos e companhias inglesas.
Seria demasiado longo estendermo-nos sobre a defesa de Rui Barbosa em 1891 e 1892. Até porque o núcleo dessa defesa acha-se resumido acima. Resta-nos apenas observar que não se trata de uma defesa pessoal, mas de uma defesa da República e de sua política econômica – que ele comandara. Mas Rui não se esquiva do ângulo pessoal:
“Perante à minha consciência, nada me honra mais do que essas investidas furiosas, pela natureza da sua origem, pela orientação das suas intenções. Quando a reputação de um homem político, em medidas que envolvem grandes interesses gerais do país, colide com vastos e poderosos interesses particulares, essas tempestades de afrontas são a dignificação imediata do bem praticado. Tentar retaliações, pois, seria lutar ridiculamente contra um triste fenômeno moral, cujo efeito é nobilitar as suas vítimas” (v. Finanças e Política da República, p. 7).
E, sobre o “encilhamento”, atribuído à República, e, particularmente, a ele e à sua política, Rui, depois de descrever a especulação desencadeada pelo visconde de Ouro Preto, após a Abolição, diz:
“A febre das especulações de bolsa não nasceu (…) das finanças republicanas. Era enfermidade preexistente, que, durante as últimas semanas da monarquia, se exacerbara até às proporções de delírio agudo. Não será, pois, estranha a impavidez, com que os representantes dessas tradições, os que nelas se opulentaram, apedrejam atualmente os governos republicanos como autores da propagação desse mal? (…) Para falar como Catão, não haverá nada mais do que disfarçar-se, a propósito, nos hábitos da austeridade e do desinteresse?” (p. 24).
“Não fomos nós os semeadores do jogo, como não fomos os criadores da crise, a que tivemos de acudir nos primeiros meses da revolução” (p. 25).
Eram injúrias, que repelia, bravamente. Mas ele mesmo, ainda no Império, escrevera, em um manifesto eleitoral:
“As injúrias, natural é que estejam, e sempre estiveram, e em toda a parte hão de estar, na razão direta da grandeza da obra consumada, na razão direta da vitória da moralidade sobre o abuso, da liberdade sobre a reação. Mas as injúrias são efêmeras”.
A essência – e, mais que a essência, a atualidade – da política de Rui Barbosa, é evidente em sua exposição de motivos, ao marechal Deodoro, sobre a situação econômica, feita logo após a Proclamação da República:
“Não nos basta, porém, ser austeros. Carecemos, não menos imperiosamente, de impulsar o espírito de progresso. Não nos encerremos nas teorias estreitas de certos utopistas, notáveis pela intransigência do seu fanatismo e pela sua incapacidade na prática das coisas humanas, que pretendem modelar o mundo por fórmulas abstratas, nunca experimentadas, querem reduzir o papel do Estado a uma perpétua desconfiança contra as maravilhas das grandes organizações industriais, e negam a vantagem, para as nações, da interferência discreta da administração provocando, acoroçoando, favorecendo os empreendimentos do capital, da riqueza acumulada, das grandes aglomerações do trabalho ao serviço da inteligência, da fortuna e da ambição temperada pelo patriotismo.
(…)
“Ao Estado, nesta fase social, cabe sem dúvida um grande papel de atividade criadora, acudindo a todos os pontos onde o princípio individual reclame a cooperação suplementar das forças coletivas” (Rui Barbosa, A Fazenda Nacional em 15 de novembro de 1889 – Exposição ao chefe do Governo Provisório, OC, v. XVI, t. VIII, p. 175-176).
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