Joaquim Nabuco enfrentou, em 1884, a mais célebre campanha eleitoral de sua trajetória. Concorrendo a deputado, em Recife, contra o conservador Machado Portela, Nabuco transformou a eleição em um plebiscito contra a escravidão.
Na eleição anterior, em 1882, Nabuco não conseguira ser eleito – mas concorrera por um distrito (a eleição no Império era distrital) da Corte, ou seja, da cidade do Rio de Janeiro.
Em 1884, foi eleito, mas “expurgado” pela Câmara – sua eleição não foi reconhecida, o que motivou um movimento de protesto em Recife, em que dois deputados liberais (Ermírio Coutinho e Joaquim Francisco de Melo Cavalcanti) renunciaram ao cargo para forçar a posse de Nabuco na Câmara dos Deputados.
Além de seu tempo, na campanha, Joaquim Nabuco abordou a relação entre a exploração sobre o proletariado supostamente livre da cidade do Recife e a existência da escravidão. É nesse momento que ele propõe uma reforma agrária – e uma reforma da propriedade. Nas suas palavras:
“Senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões, — a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão, não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão.”
Ainda que nos tempos de hoje as soluções de Nabuco – inspiradas nas ideias de André Rebouças – possam parecer limitadas, para a época, ele estava propondo uma revolução.
Em outro lugar, nós observamos que o Nabuco abolicionista é bem melhor e mais brilhante que o Nabuco pós-Abolição. Mas é necessário dizer que poucos homens públicos chegaram, em algum momento, a uma altura tão elevada quanto o abolicionista Joaquim Nabuco.
O discurso abaixo foi pronunciado no dia 5 de novembro de 1884, durante comício na Praça de S. José de Ribamar, bairro de S. José, em Recife.
Agradecemos ao jurista – e, mais, filósofo do Direito – Enoque Feitosa o envio e a sugestão de publicar este magnífico discurso de Nabuco.
O texto foi extraído da coletânea de discursos publicada pelo autor, em 1885, “Campanha Abolicionista no Recife (eleições de 1884)”. Atualizamos a ortografia, porém mantivemos palavras hoje em desuso (“dous” em vez de “dois”, “cousas” em vez de “coisas”) e a grafia do autor em outras palavras (por exemplo, a maiúscula em “Brasileiros”).
C.L.
JOAQUIM NABUCO
Eleitores de S. José, — A minha presença nesta reunião é uma homenagem ao eleitorado desta freguesia como entendo que se lhe deve render homenagem, isto é, considerando-o, primeiro, não uma serie de átomos dispersos, mas um todo consciente, que tem uma só vontade e por isso quer que se lhe fale uma só linguagem; e segundo, uma parte distinta do eleitorado desta capital, ciosa da sua reputação liberal, resolvida a que a sua voz não seja abafada pela das outras freguesias no grande dia do pronunciamento do Recife. Também, senhores, compareço perante vós certo de que estais resolvidos a que a batalha de 1º de Dezembro, se for uma vitória para a causa da civilização, não seja ganha sem os votos, e muito menos contra os votos de S. José, firmemente dispostos a não consentir que este baluarte histórico do liberalismo pernambucano se converta de repente em trincheira da escravidão. (Aplausos).
Candidato liberal, sustentado por todas as forças do partido liberal, posso ufanar-me de ter igualmente do meu lado todos os elementos progressistas da opinião, qualquer que seja o seu nome. Se não digo que sou abolicionista antes de ser liberal, é porque penso que o liberal deve começar por ser abolicionista, e não compreendo uma só hipótese em que, favorecendo o interesse do abolicionismo, eu prejudicasse os interesses do partido liberal. Mas, candidato, como sou, desse partido, represento acima de tudo uma ideia, a saber, que a escravidão, palavra que os brasileiros não deviam mais pronunciar porque queima como ferro em brasa a consciência humana, deve ser banida para sempre das nossas leis.
É triste, senhores, que até hoje, quando apenas cinco anos nos separam do centenário glorioso dos direitos do homem, nesta América que parecia dever ser o refúgio de todos os perseguidos, o asilo de todas as consciências, a praça inexpugnável de todos os direitos, a escravidão ainda manche a face do continente, e um grande país, como o Brasil, seja aos olhos do mundo nada mais, nada menos, do que um mercado de escravos. (Grandes aplausos)
Pois bem, é contra esse escândalo vergonhoso que nos levantamos e procuramos levantar-vos, e o que se passa aqui neste momento, esta insurreição da consciência publica, é um espetáculo que deve encher-nos de contentamento a nós abolicionistas, a nós que entramos nesta longa, áspera e difícil campanha contra alguns detentores da riqueza nacional só com este interesse: o de podermos confessar que somos Brasileiros sem que se nos lance em rosto o sermos os últimos representantes na América, e quase que no mundo, da instituição homicida e inumana que foi o verdadeiro Inferno da história. (Aplausos)
Vede também que forças nós criamos! Vede o entusiasmo, a dedicação, o desinteresse que nos acompanham; vede que ressuscitamos o espírito público, e que o país inteiro estremece de esperança como que nas vésperas de uma segunda Independência ! Vede tudo isto, eleitores de S. José, e dizei-me se forças tais são a criação da cabala, do empenho, da compressão, da venalidade. Se o governo podia unir esperanças e aspirações patrióticas, que nada pretendem do governo, que nada aceitariam dele. Se a miséria de alguns empregos ou um punhado de ouro das verbas secretas poderia criar assim a alma, a consciência de um povo.
O povo de S. José sabe que não tem escolha hoje senão entre dous nomes. A trégua de Deus assinada entre todos os partidos adiantados da opinião, para que a hora presente seja do abolicionismo, habilita-me a dizer-vos que não haveria candidato mais adiantado do que eu. A vossa escolha está, pois, limitada a dous homens: um que representa o movimento que já libertou três províncias, outro que assentou praça de soldado raso nas fileiras do Sr. Paulino… Porventura os vossos sentimentos serão conservadores? Conservar o quê? O que é que neste país não carece de reforma radical?
Para que os conservadores voltem ao poder é preciso que nós, homens da reforma e do movimento, lhes deixemos a eles, os homens da conservação, alguma cousa que mereça ser conservada! (Aprovação geral) O período atual, porém, não é de conservação, é de reforma, tão extensa, tão larga e tão profunda que se possa chamar Revolução; de uma reforma que tire este povo do subterrâneo escuro da escravidão onde ele viveu sempre, e lhe faça ver a luz do século XIX. Sabeis que reforma é essa? É preciso dizê-lo com a maior franqueza: é uma lei de abolição que seja também uma lei agrária.
Não sei se todos me compreendeis e se avaliais até onde avanço neste momento levantando pela primeira vez a bandeira de uma lei agrária, a bandeira da constituição da democracia rural, esse sonho de um grande coração, como não o tem maior o Abolicionismo, esse profético sonho de André Rebouças.
Pois bem, senhores, não há outra solução possível para o mal crônico e profundo do povo senão uma lei agrária que estabeleça a pequena propriedade, e que vos abra um futuro, a vós e vossos filhos, pela posse e pelo cultivo da terra. Esta congestão de famílias pobres, esta extensão de miséria — porque o povo de certos bairros desta capital não vive na pobreza, vive na miséria — estes abismos de sofrimento não têm outro remédio senão a organização da propriedade da pequena lavoura. É preciso que os Brasileiros possam ser proprietários de terra, e que o Estado os ajude a sê-lo. Não há empregos públicos que bastem às necessidades de uma população inteira. É desmoralizar o operário acenar-lhe com uma existência de empregado público, porque é prometer-lhe o que não se lhe pode dar e desabituá-lo do trabalho que é a lei da vida.
O que pode salvar a nossa pobreza não é o emprego público, é o cultivo da terra, é a posse da terra que o Estado deve facilitar aos que quiserem adquiri-la, por meio de um imposto — o imposto territorial. É desse imposto que nós precisamos principalmente, e não de impostos de consumo que vos condenam à fome, que recaem sobre as necessidades da vida e sobre o lar doméstico da pobreza.
A Constituição diz: “Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres.” Pois bem, senhores, ninguém neste país contribui para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres. O pobre carregado de filhos paga mais impostos ao Estado do que o rico sem família. É tempo de cessar esse duplo escândalo de um país nas mãos de alguns proprietários que nem cultivam suas terras, nem consentem que outros as cultivem, que esterilizam e inutilizam a extensão e a fertilidade do nosso território; e de uma população inteira reduzida à falta de independência que vemos. Se eu não estivesse convencido de que uma lei agrária prudente e sábia podia criar um futuro aos Brasileiros privados de trabalho, teria que aconselhar-lhes que emigrassem, porque a existência que levam não é digna de homens que se sentem válidos e querem dar a seus filhos uma educação que os torne independentes e lhes prepare uma condição melhor do que a da presente geração. (Adesão)
Senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões, — a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. (Longos aplausos.) Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão, não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão. Compreende-se que em países velhos, de população excessiva, a miséria acompanhe a civilização como a sua sombra, mas em países novos, onde a terra não está senão nominalmente ocupada, não é justo que um sistema de leis concebidas pelo monopólio da escravidão produza a miséria no seio da abundância, a paralisação das forças diante de um mundo novo que só reclama trabalho.
Sei que falando assim serei acusado de ser um nivelador. Mas não tenho medo de qualificativos. Sim, eu quisera nivelar a sociedade, mas para cima, fazendo-a chegar ao nível do art. 179 da Constituição que nos declara todos iguais diante da lei. (Aplausos.) Vós não calculais quanto perde o nosso país por haver um abismo entre senhores e escravos por não existir o nivelamento social.
Sei que nos chamam anarquistas, demolidores, petroleiros, não sei que mais, como chamam aos homens do trabalho e do salário, os que nada têm que perder. Todos aqueles que de qualquer modo adquiriram fortuna entre nós, bem ou mal ganha, entendem que são eles, eles os que têm que perder, quem deve governar e dirigir este país!
Não preciso dizer-vos quanto essa pretensão tem de absurda. Eles são uma insignificante minoria, e vós, do outro lado, sois a nação inteira. Eles representam a riqueza acumulada, vós representais o trabalho, e as sociedades não vivem pela riqueza acumulada, vivem pelo trabalho. (Aplausos.) Eles têm, por certo, interesse na ordem pública, mas vós tanto como eles, porque para eles mesmo grandes abalos sociais resultariam na privação de alguns prazeres da vida, de alguma satisfação de vaidade, de algum luxo dispendioso tão prejudicial à saúde do corpo como à do caráter — e vós, perdendo o trabalho, vos achais diante da dívida que é uma escravidão também, diante da necessidade, em cuja noite sombria murmuram os demônios das tentações mercenárias, os filhos sem pão, a família sem roupa, o mandado de despejo nas mãos do oficial de justiça, o raio da penhora trazendo sobre a casa todos os horrores da miséria! Quem tem à vista desse quadro mais interesse em que a marcha da sociedade seja tão regular e contínua como a de um relógio ou a das estações — o capitalista ou o operário? (Aplausos)
Quanto a mim, tenho tanto medo de abalar a propriedade destruindo a escravidão quanto teria de destruir o comércio acabando com qualquer forma de pirataria. Por outro lado, não tenho receio de destruir a propriedade fazendo com que ela não seja um monopólio e generalizando-a, porque onde há grande numero de pequenos proprietários a propriedade está muito mais firme e solidamente fundada do que onde por leis injustas ela é o privilégio de muitos poucos.
Eleitores de S. José, não é a minha causa que está em vossas mãos neste momento. Eu vos repito o que disse aos eleitores de Santo Antonio: já cheguei em nossa pátria à posição que, sem ousar aspirar a ela, me pareceu sempre a maior das medidas de uma ambição verdadeiramente patriótica, a de ser ouvido pela nação como um conselheiro leal e desinteressado.
Essa função de dizer o que me parece ser a verdade ao meu país, posso exercê-la onde quer que me ache. Se eu pudesse fazer uma distinção dentro de mim mesmo entre o particular e o homem público, eu diria que a derrota deste seria a Vitória daquele, mas não posso porque o indivíduo desapareceu no abolicionista, fez dos entusiasmos, das esperanças, das tristezas deste os seus entusiasmos, as suas esperanças e tristezas próprias, desde que entrou em campanha contra a escravidão. (Adesão.)
Liberais, Conservadores, Republicanos, Abolicionistas, vós tendes hoje duas únicas bandeiras diante de vós. A inscrição de uma é este brado da civilização: “— Abaixo a escravidão !” A inscrição da outra é um sofisma: “Respeitemos o direito de propriedade”, quando o objeto possuído é um homem como nós. Entre essas duas bandeiras a vossa consciência não deve hesitar — ela não há de sancionar por mais tempo os abusos e os horrores da escravidão que mancha a história da América; ela não há de ter compaixão de um regímen que degrada com uma das mãos o escravo na senzala e com a outra esmaga o operário nas cidades; ela não prolongará por um dia o prazo fatal dessa instituição que forma um Império no Império; para a qual vós, artistas e operários, não sois mais do que os substitutos dos escravos, e que se atreve a querer avassalar o eleitorado desta capital, juntando a todas as suas opressões mais esta: a opressão da consciência de homens livres, e a todos os seus tráficos da dignidade humana mais este: o tráfico do voto. (Ruidosos aplausos.) Sim, senhores, vós mostrareis que a escravidão não há de produzir neste país depois do mercado de escravos o mercado de eleitores. Ela pode ter por si todos os votos de partido, e além desses todos os votos venais e todos os votos que possam ser obtidos pela compressão, mas os votos livres, os votos independentes, hão de salvar na hora suprema o nome Pernambucano.
Senhores, um antagonista meu, o qual só poderia prejudicar-me inutilizando o grande esforço que está fazendo o partido liberal unido e dando ganho de causa ao partido conservador, alegou para merecer a vossa escolha o muito que tem sido preterido e o muito que tem esperado em vão… Mas há neste país quem tenha sido mais preterido, quem tenha esperado em vão, mais, infinitamente mais do que ele… São os escravos que esperam há três séculos (longos aplausos), é o povo Brazileiro preterido desde a Independência (continuam os aplausos), e é como representante dessa enorme massa de vítimas da escravidão que eu vos peço que me mandeis ao Parlamento… Votando por mim não votais por um indivíduo, não votais somente por um partido… votais pela libertação do nosso território e pelo engrandecimento do nosso povo, votais por vós mesmos, e vos elevais neste país de toda a altura da liberdade e da dignidade humana. (Prolongadas aclamações e vivas)