O texto abaixo é uma conferência da professora Laura Tavares Soares, que surpreende pela atualidade.
Pois, a professora Laura proferiu esta conferência em 2003, portanto, há 15 anos. No entanto, veja o leitor essa exposição do “modelo de previdência” do Banco Mundial:
“O modelo do Banco Mundial tem três pilares. Uma Previdência básica, fundamentada num sistema ainda de repartição, gerenciado pelo Estado, embora de caráter assistencial. Ou seja, é o que alguns autores chamam de Previdência para os pobres, que, no fundo, é o que eles consideram a assistência social, mas assim mesmo garantindo alguma renda mínima para isso. O financiamento desta Previdência ‘básica’ é fiscal.
“O segundo pilar é baseado no modelo de seguro social, em que os planos de poupança individuais ou planos ocupacionais – os chamados Fundos de Pensão – são considerados essenciais e financiados pela contribuição de salários. Esse pilar seria obrigatório e gerenciado pelo sistema privado, aberto ou fechado.
“O terceiro pilar é, aí sim, voluntário. Seria uma espécie de poupança adicional ao seguro, em que cada pessoa, individualmente, vai buscar um Fundo de Pensão privado, bancário, para complementar a sua renda”.
O leitor já deve ter ouvido, na atual campanha eleitoral, essa proposta, como se fosse uma grande novidade. Até mesmo se pespegou um nome pedante para essa porcaria: “modelo multipilar”.
Pois é apenas a cópia do modelo do Banco Mundial, que, lembra a professora, levou à desgraça a Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, México, Nicarágua, Peru, República Dominicana e Uruguai.
Qual a essência desse modelo? A chamada “capitalização”. Como aponta Laura Tavares Soares:
“Quais são os principais problemas da capitalização? E aqui vale tanto para os fundos abertos como para os fechados. Primeiro, a taxa de reposição extremamente incerta, um custo altíssimo de transição e manutenção, e nenhum poder redistributivo. (…) Sistemas de capitalização, seja qual for a forma (aberta ou fechada), não têm poder distributivo, pois seu modelo é individualizado. Há uma brutal transferência da poupança pública para a poupança privada, e nenhum retorno para os empregos.”
Laura Tavares Soares é autora de “Ajuste Neoliberal e Desajuste Social na América Latina” (Vozes, 2001); “Os Custos Sociais do Ajuste Neoliberal na América Latina” (Cortez, 2002); e “O Desastre Social” (Record, 2003).
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi Pró-Reitora de Extensão daquela universidade.
Pode hoje parecer inacreditável ao leitor – depois que Lula e Dilma seguiram o caminho oposto em relação à Previdência – que esta conferência tenha sido pronunciada em um evento do PT. Mas assim foi. Os governos petistas foram pelo caminho contrário, mas não foi por ignorância (cf. “A Previdência Social no Brasil”, Editora Fundação Perseu Abramo, 2003).
O título original desta conferência é “Reforma da Previdência: a experiência da América Latina”.
Por razões de espaço, condensamos o texto.
C.L.
LAURA TAVARES SOARES
Venho estudando o impacto do ajuste neoliberal há pelo menos 13 anos. Defendi uma tese sobre o impacto do ajuste neoliberal nas políticas de Seguridade Social na América Latina em 1995. Era o início do governo Fernando Henrique Cardoso, e eu e outros tantos neste país fomos tachados de neobobos, pessimistas, catastrofistas. O que tentávamos dizer na ocasião, e continuamos tentando dizer agora, refere-se aos riscos que o Brasil corria, e que ainda pode correr, do ponto de vista do seu projeto social e de construção, se não de um Estado de bem-estar social, de algo equivalente, de um sistema de proteção social que vá em direção à universalidade.
O processo de ajuste neoliberal teve um duplo impacto: o agravamento da situação anterior e o surgimento de novas situações de desigualdade e exclusão. Quer dizer, além de não resolver a nossa antiga estrutura de miséria e de desigualdade, gerou uma nova exclusão, com todo esse contingente de desempregados e com a classe média em condições precárias. A classe média hoje também sofre com o desemprego de pessoas qualificadas.
Além do impacto direto do ajuste, houve uma sinergia perversa entre esse agravamento da situação social da população e o chamado desmonte das políticas sociais. Ou seja, não contente em provocar um impacto social direto na vida das pessoas, também foram desmontadas as precárias e preexistentes políticas sociais da América Latina.
O Chile sofre há muitos anos, a destruição lá foi monumental, foi a experiência neoliberal mais radical da América Latina.
Existe uma relação entre a estruturação anterior das políticas sociais e as mudanças sofridas pelo ajuste. Dessa forma, existem diferenças entre os países do ponto de vista do impacto sobre a política social. Um primeiro padrão seria o impacto radical sobre a política, como foi o caso chileno. Houve uma total privatização do sistema de proteção social, radicalmente oposto ao modelo e ao sistema anteriores.
Um segundo tipo de impacto é quando as estruturas – e isso vale para a grande maioria dos países americanos – eram já, anteriormente, muito frágeis quanto ao bem-estar social, a aparatos públicos de proteção social e a políticas sociais.
Nesses países, o neoliberalismo deu “de lavada”, porque diante de estruturas frágeis de proteção ele se introduziu com uma avalanche de políticas focalizadas de combate à pobreza, de substituição do Estado por organizações não-governamentais etc. O caso do Peru é um dos mais radicais nesse sentido. Lembro-me de ter dado um curso de mestrado em Saúde Pública no norte do Peru em que todos os meus alunos eram de organizações não-governamentais. Quer dizer, o Estado não assume sequer a Saúde Pública.
Uma outra estrutura, à qual o Brasil pertence, é a da tentativa de destruição ou de desmontagem de estruturas já consolidadas (como a da Previdência) ou de sistemas em processo de construção em novas bases (como o Sistema Único de Saúde). Nós nunca tivemos um processo de destruição tão radical como a maioria dos países latino-americanos, mas sim a desmontagem de um processo que estava em andamento. Estávamos avançando na segunda metade dos anos 1980 – culminando com a Constituição de 1988 e com a construção da Seguridade Social, o projeto de proteção social mais generoso da América Latina. Nos anos 1980, quando estávamos definindo e votando a nossa Constituição, éramos considerados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial a “ovelha negra” da América Latina. Éramos o único país da América Latina, na ocasião, que não seguia à risca o modelito. Ao contrário, votamos uma Constituição que ampliava a proteção social brasileira.
Portanto, no nosso caso, o modelo é de uma tentativa de interrupção, mediante o desmonte e a deterioração. Nós preservamos o sus, um patrimônio do Brasil: é a única possibilidade de acesso aos serviços de saúde para a grande maioria da população sem capacidade de “comprá-los no mercado”. E, no entanto, por meio do desmonte, dos baixos salários e das más condições de trabalho dos servidores, bem como de nenhum investimento durante toda a década de 1990, os serviços caíram muito de qualidade. Esta foi a estratégia utilizada em toda a América Latina: desmontar e tornar o serviço público tão ruim que as pessoas deixassem de procurá-lo, sobretudo a classe média. O crescimento dos seguros privados de saúde prosperou nesse modelo.
Existem diferentes configurações de Seguridade Social na América Latina. Evidentemente os sistemas – quando as políticas neoliberais bateram na América Latina nos anos 1980 e, no caso brasileiro, nos anos 1990 – tinham configuração diferente, de acordo com a sua história. O Brasil certamente foi o que conseguiu construir um sistema mais abrangente, inclusive do ponto de vista da cobertura, desde a unificação da Previdência Social.
A unificação da Previdência Social significou a possibilidade de construir um sistema cuja cobertura superou em muito a média da América Latina. Isso permitiu, entre outros pontos, a cobertura dos trabalhadores rurais, que na maioria dos países permaneceram excluídos.
O Chile foi o modelo inaugural de reforma, e a partir dele é que se construiu o famoso Consenso de Washington. Lá, as reformas da Seguridade Social sempre foram acompanhadas pelos pacotes de financiamento do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ou seja, a Reforma da Previdência estava rigorosamente incluída nos acordos com o FMI. A ideologia que passou a ser dominante, em todos os governos latino-americanos, foi a do caráter “imprescindível” das reformas para o ajuste, seguido pela estabilização e – quiçá – pelo crescimento econômico. Este é um debate central.
Todos conhecem as condicionalidades do fmi: diminuir o déficit fiscal, promover a reforma do Estado, aumentar a competitividade das empresas reduzindo os custos sociais e flexibilizando a mão-de-obra, e as reformas da Seguridade Social.
O Brasil foi retardatário no processo de entrada do neoliberalismo e eu gostaria de citar as palavras da professora Sulamis Dain, que escreveu o prefácio da minha tese – e ela escreveu isso em 1999, logo depois da Reforma da Previdência do governo Fernando Henrique:
“Para nós, brasileiros, a comparação com a América Latina é particularmente dolorosa por demonstrar que, assim como na industrialização, também no plano das políticas sociais o Brasil foi a região que mais avançou na direção da construção de um modelo de base sólida na garantia de direitos universais [não estou dizendo aqui que conseguimos construí-lo, mas, se comparado com o resto da América Latina, nós fomos o que mais avançamos] e que resistiu por mais tempo ao ideário ortodoxo. Nele, e em suas consequências, estamos entretanto mergulhados [naquela ocasião, em 1998, com Fernando Henrique] numa adesão tardia, porém profunda, às virtudes do mercado”.
O IMPACTO
Qual foi o impacto econômico e social das reformas da América Latina? Baseio-me no último relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que é um órgão das Nações Unidas, sobre o panorama social da América Latina nos anos 1990. Mesmo para mim, que venho acompanhando esses relatórios e sou estudiosa do assunto, os indicadores são impactantes. Em todos os países envolvidos as reformas foram feitas. E quais foram os resultados?
(Continua)
Matéria relacionada:
O Banco Mundial e a farsa da capitalização da Previdência – 2