Após a bancada bolsonarista na Câmara conseguir aprovar, numa votação que durou 23 segundos, o pedido de urgência para a votação do PL 1904/24, equipara aborto a homicídio e criminaliza vítimas de estupro, diversos setores da sociedade se manifestaram contrários ao projeto. Na noite desta quinta-feira (13) milhares de pessoas participaram de atos em ao menos 10 cidades contra o projeto que favorece os estupradores e criminaliza vítimas.
Atualmente, o Código Penal garante às brasileiras o direito de interromper a gestação em caso de estupro e risco à vida. E em 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal estendeu a permissão para casos de anencefalia fetal. E não há limite de tempo para o procedimento.
Hoje, o Código Penal brasileiro determina que uma mulher que provoque a interrupção da gestação em si mesma ou consinta para que outro o faça podem ser sentenciadas de 1 a 3 anos de detenção.
Com o projeto, mulheres adultas e meninas, crianças vítimas de estupro, que passarem pelo procedimento ou os profissionais que fizerem o aborto podem ser presos. O texto além de equiparar o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, também criminaliza o procedimento em casos como estupro e risco de morte para a mãe.
A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, criticou a aprovação do requerimento de urgência do Projeto de Lei 1904/24. A urgência na tramitação do projeto implica que ele não passará por comissões e será encaminhado diretamente ao plenário. Para Anielle Franco, isso representa uma falta de espaço para discussão com a sociedade e especialistas sobre a proposta. “As discussões sobre essa proposta desastrosa para a vida de meninas e mulheres no país tramitam com velocidade e pouco espaço para discussão com a sociedade e especialistas”, criticou.
A ministra também ressaltou a gravidade da situação de violência sexual no país, citando dados de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Os dados são alarmantes: o Brasil registrou cerca de 75 mil casos de estupro – o maior da série histórica. Seis a cada dez vítimas eram crianças de até 13 anos, 57% eram negras e 68% dos estupros ocorreram na residência das vítimas. Outro dado revela a gravidade deste cenário: em 64% dos casos, os autores eram familiares das vítimas”, detalhou.
Ela concluiu a publicação alertando sobre os impactos do projeto. “Esse projeto representa retrocesso e desprezo pela vida das mulheres. Esse não é o Brasil que queremos”, escreveu.
INVERSÃO DE VALORES CIVILIZATÓRIOS
De acordo com o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio de Almeida o projeto “é uma imoralidade, uma inversão dos valores civilizatórios mais básicos”.
“É difícil acreditar que sociedade brasileira, com os inúmeros problemas que tem, está neste momento discutindo se uma mulher estuprada e um estuprador tem o mesmo valor para o direito. Ou pior: se um estuprador pode ser considerado menos criminoso que uma mulher estuprada. Isso é um descalabro, um acinte”, disse o ministro.
“Em segundo lugar, é um PL vergonhosamente inconstitucional, pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres violentadas a uma indignidade inaceitável, a tratamento discriminatório, o que não é permitido por nenhum parâmetro normativo nacional, ou internacional a que o Brasil tenha aderido”, destacou Silvio de Almeida.
“Esse projeto empurra a sociedade brasileira para um abismo de violência, de indiferença, de violação institucional dos direitos humanos de meninas e mulheres. Coloca em descrédito ainda maior as instituições de Estado. Que mulher vítima de violência sexual irá buscar apoio do Estado sabendo que pode ser mais penalizada do que quem a violentou? Que mulher irá confiar no sistema de justiça brasileiro quando for estuprada?”, questionou o ministro.
Ele ainda destacou: “este PL acelera a falência moral e jurídica do Estado. Trata-se da materialização jurídica do ódio que parte da sociedade sente em relação às mulheres; é uma lei que promove o ódio contra mulheres. Como pai, como filho, como cidadão, como jurista, como Ministro de Estado eu não posso jamais me conformar com uma proposta nefasta, violenta e que agride as mulheres e beneficia estupradores”, finalizou o ministro.
“Não podemos retroceder! A extrema direita está tentando aprovar o PL 1904/24, que impõe a mulheres e crianças vítimas de violência sexual a obrigação de levar adiante uma gravidez indesejada. Em busca de likes, esquecem do mais importante: a vida e o bem-estar dessas pessoas. Criança não é mãe! Estuprador não é pai! Não vamos aceitar isso”, destacou a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ).
Em discurso no Plenário, a parlamentar lembrou que o aborto já é ilegal no Brasil e que já existe pena no Código Penal. “Isso não é matéria de religião nem de polícia, isso é uma matéria da saúde pública brasileira, e como tal deveria ser debatida. Desde 1940, o Código Penal coloca três possibilidades em que a mulher pode abortar sem que seja considerado crime: no caso do próprio risco de vida dela; no caso de ser uma gestação resultante de estupro; no caso da anencefalia, por decisão do Supremo Tribunal Federal. A maioria das estupradas são as mais pobres, as mais vulneráveis e as mais jovens, que são meninas e adolescentes que são estupradas, na maioria dos casos, pelo pai biológico, pelo padrasto ou por alguém da família. São essas pessoas que vocês estão criminalizando aqui”, disse Jandira.
“É um absurdo! Para a extrema direita, uma mulher ou criança que foi violentada sexualmente deve ser presa em até 20 anos por homicídio se interromper a gestação a partir da 22ª semana. Criança não é mãe e estuprador não é pai”, disse a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) em suas redes.
A deputada Daiana Santos (PCdoB-RS) também condenou o avanço da matéria. Para ela, a aprovação da urgência demonstra “o descaso com a vida das mulheres”.
O líder do PCdoB na Câmara, deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA), também repudiou a aprovação da urgência e classificou a proposta como um “absurdo”. “O PL do aborto carrega em si a possibilidade de condenar com pena severa quem já foi vítima do hediondo crime de estupro. Absurdo!”.
A deputada federal Samia Bonfim (PSOL/SP) destacou que os fundamentalistas do Congresso se preocupam mais em revitimizar meninas e mulheres do que em avançar no rigor da investigação e responsabilização de estupradores. “O PL 1904 é uma aberração, que retrocede em direitos garantidos desde a década de 40, como o aborto em caso de estupro”.
“No Brasil, cerca de 20 mil partos de meninas com menos de 14 anos ocorreram nos últimos 10 anos. É um número assustador! Atacar o direito ao aborto legal em casos de estupro e de risco de morte materna é violentar duplamente as vítimas”, ressaltou a deputada.
“É um absurdo tentar aprovar esse projeto, principalmente a toque de caixa, em regime de urgência, na tentativa de impedir que a sociedade tenha condições de opinar e se mobilizar. Nós vamos até o fim na luta pra barrá-lo!”, afirmou a deputada.
“De forma atropelada e sem sequer o anúncio de qual projeto estava sendo votado, a Câmara aprovou a urgência do PL 1904, que equipara o aborto, inclusive nos casos em que ele é legal, ao crime de homicídio”, afirmou a deputada Fernanda Melchionna (PSOL/RS).
“Ou seja, para a maioria da Câmara, meninas que engravidam de estupradores e recorrem aos seus direitos devem ser presas, com pena muito maior do que a do próprio estuprador.Absurdo!”, disse a deputada.
Artistas como a cantora Teresa Cristina, Anitta, Luísa Sonza, Débora Falabella e mais famosas foram às suas redes sociais criticar o projeto.
Em vídeo publicado no Instagram, a cantora pediu para os seguidores pressionarem as lideranças da Câmara dos Deputados para que o texto do PL não seja aprovado. “Crianças vítimas de abuso podem perder o direito ao aborto legal, caso a gestação tenha mais de 22 semanas. Nos casos de violência sexual infantil, é mais difícil identificar a gravidez, por isso a demora no reconhecimento”, escreveu na legenda.
“Não vamos deixar esse projeto passar”, afirmou em vídeo.
Anitta repostou uma publicação, nos stories do seu perfil do Instagram, que dizia: “Você já imaginou ser vítima de estupro, engravidar do seu estuprador e ser presa por mais tempo do que seu estuprador porque interrompeu a gestação fruto da violência?”.
Sonza, por sua vez, republicou uma série de frases reflexivas, como: “Criança não é mãe”; “É isso que os fundamentalistas querem: torturar meninas vítimas de violência” e; “A vida de uma mulher vale menos que a vida de um estuprador?”. Já Falabella compartilhou notícias sobre o projeto e disparou: “É sobre o ódio às mulheres”, e outra postagem, que dizia: “O crime mesmo é ser mulher”.
PROJETO É CONTRA AS MULHERES E CRIANÇAS
Em entrevistas concedidas no Prêmio da Música Brasileira, na última quarta-feira (12), a cantora Daniela Mercury também se pronunciou sobre o projeto. Ela afirmou que confia que o presidente Lula não sancionará a lei, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) pode declarar o projeto como inconstitucional.
“Acho que eles não estão querendo gastar energia com um assunto dessa magnitude e que não vai passar mesmo. Não vai ser aprovado, não vai chegar a virar lei. Mas isso mostra a cabeça da Câmara, com o que ela está preocupada em vez de a gente avançar em direitos. Estão preocupados em votar algo que é afrontoso contra as mulheres brasileiras, contra as crianças brasileiras, contra os direitos já adquiridos. Isso é um absurdo e fere a nossa alma”, afirmou ao F5, da Folha.
“Não podemos deixar um congresso machista e desrespeitoso como esse tirar os direitos conquistados pelas mulheres há mais de 40 anos. Em uma democracia, quando se tira o direito da mulher é porque essa democracia está enfraquecida”, acrescentou.
Luana Piovani também postou sobre a PL nº 1.904/24 nas suas redes sociais. “A gente lutando para poder decidir sobre nossos corpos, a favor do aborto como direito para mulher, eles aparecem e querem tirar o direito da criança em fazer aborto em caso de violência sexual e risco de morte”, afirmou a atriz.
Outra voz que se levantou contra o PL 1904/24 foi a do comediante e ator Paulo Vieira.”A pessoa é estuprada. Aí ela fica grávida. Aí ela faz um aborto do estupro. Aí ela é PRESA. Aí,s e o estuprador for preso, ele pega 6 anos. Ela pode pegar 20 ANOS DE PRISÃO! A vida de uma mulher vale menos que a de um estuprador. Isso é um resumo dessa desgraça de PL”, disse o ator no X.
O regime de urgência da matéria foi aprovado na quarta-feira, em votação simbólica relâmpago. Com isso, o projeto poderá ser votado diretamente no plenário da Câmara, sem precisar passar pelas comissões.
Lira avisou a interlocutores e deputados que pretende “esperar a poeira baixar” para marcar a votação do mérito da proposta. A ideia é discutir o texto nas próximas semanas para rebater as críticas.