LAURA TAVARES SOARES
Pois bem, em relação a toda aquela alegação de que as reformas eram imprescindíveis para o crescimento, as evidências não demonstram isso, pelo contrário. São países que tiveram um crescimento econômico medíocre ou inexistente, cuja vulnerabilidade financeira se aprofundou, em que o endividamento público aumentou, em que houve uma generalização da precarização do trabalho, taxas de desemprego inéditas na história desses países – obviamente o caso da Argentina é o mais gritante -, o desmonte das instituições públicas estatais, a redução e a eliminação da universalidade dos serviços, a focalização com acompanhamento da exclusão.
Há um comentário inédito nesse relatório da Cepal, em que se reconhece que a perda da universalidade das políticas sociais latino-americanas levou a um aumento da exclusão. E que o excesso de focalização do gasto social nos pobres não só não incluiu todos os pobres, como também deixou de fora boa parte da classe média precarizada, sem emprego, que hoje está numa grave crise de acesso a serviços de infraestrutura básica na América Latina.
Nesse ponto, o relatório da Cepal conclui que a classe média latino-americana provavelmente está “em extinção”, em contraponto a uma tendência histórica de 30 anos, crescente, de formação das classes médias latino-americanas. E isso é visível a olho nu. Nos cursos que dou na América Latina, constato que a nossa classe média ainda tem alguma “gordura” a perder – resta saber para quê. Mas a classe média dos países latino-americanos vive em condições próximas da pobreza. Só que a pergunta é: o empobrecimento da classe média resolveu a pobreza dos outros? Não! Esse empobrecimento nem resultou na melhoria das condições de pobreza nem num padrão de maior igualdade social.
Além de não resolver a pobreza, a consequência mais grave dessas reformas que supostamente iriam promover o crescimento econômico foi um brutal aumento da precarização, com uma queda generalizada de todos os empregos, mas principalmente dos empregos públicos. Quer dizer, o Estado se fragilizou no social na maioria dos países, com péssima qualidade dos seus serviços, com servidores mal-remunerados e com perda de emprego. Aliás, o texto também ratifica que com isso se perdeu uma importante arma da política social latino-americana.
Quanto à situação do emprego, os autônomos ou os chamados “por conta própria” aumentaram a sua participação. As pequenas empresas privadas aumentaram apenas 3%. De 65% a 95% dos ocupados hoje, na América Latina, não têm nenhum contrato de trabalho. De 65% a 80% da população latino-americana não têm proteção social nem de saúde. E a cada dez novos empregos criados na América Latina, na década passada, nove foram na área de serviços e 8,1 foram informais. Ou seja, nessa condição se encontram 80% dos empregos gerados na América Latina na década de 1990.
Sabemos que o chamado setor “informal” é heterogêneo, e que existem trabalhos bem-remunerados na informalidade, mas a Cepal também afirma que a grande maioria da informalidade latino-americana é precária, com empregos de baixa produtividade e baixos salários.
O desemprego aberto atingiu na última década a sua maior taxa histórica, quase 12% em média. Se forem analisadas as regiões metropolitanas, as regiões mais deprimidas da América Latina e os trabalhadores de baixa renda, esse desemprego chega, em alguns casos, a 30% ou 40% da população.
BANCO MUNDIAL
Vamos ver quais foram as bases, os pilares da reforma neoliberal. O modelo do Banco Mundial tem três pilares. Uma Previdência básica, fundamentada num sistema ainda de repartição, gerenciado pelo Estado, embora de caráter assistencial. Ou seja, é o que alguns autores chamam de Previdência para os pobres, que, no fundo, é o que eles consideram a assistência social, mas assim mesmo garantindo alguma renda mínima para isso. O financiamento desta Previdência “básica” é fiscal.
O segundo pilar é baseado no modelo de seguro social, em que os planos de poupança individuais ou planos ocupacionais – os chamados Fundos de Pensão – são considerados essenciais e financiados pela contribuição de salários. Esse pilar seria obrigatório e gerenciado pelo sistema privado, aberto ou fechado. O terceiro pilar é, aí sim, voluntário. Seria uma espécie de poupança adicional ao seguro, em que cada pessoa, individualmente, vai buscar um Fundo de Pensão privado, bancário, para complementar a sua renda.
Vários países já fizeram a reforma previdenciária: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, México, Nicarágua, Peru, República Dominicana e Uruguai. Na época em que se realizou esse estudo, no final dos anos 1990, apenas Brasil, Venezuela, Equador, Guatemala e Paraguai ainda não haviam feito a reforma com base no modelo do Banco Mundial.
Todas essas reformas têm algumas características comuns na América Latina: a “racionalização” e a unificação dos chamados regimes gerais e especiais. O Banco Mundial fazia o diagnóstico de que a Previdência anterior, além de ser pública e estatal, o que eles não gostavam muito, estava muito fragmentada: com múltiplos regimes e com “privilégios”, entre eles os dos servidores públicos. Em todos esses países onde foram feitas as reformas, o papel do Estado mudou e passou de uma função de financiamento e administração direta da Seguridade para uma função essencialmente financiadora e regulamentadora. Ele deixou de ser o prestador final dos benefícios e serviços, delegando essa função para os Fundos de Pensão privados.
Afinal, quais foram os resultados dessas reformas da Seguridade na América Latina? As hipóteses dos defensores das reformas não foram confirmadas. A chamada “concorrência” não reduziu os custos dos fundos de administração de pensões. Essa era uma tese central dos partidários da reforma: se houvesse uma gestão privada, feita por vários agentes, a concorrência entre eles iria baixar os custos. Isto não aconteceu. Ao contrário, houve uma brutal concentração dos fundos, com monopolização dos preços. O Chile tem hoje cerca de oito grandes fundos, sendo que três deles concentram mais de 60% dos cotistas, portanto é um mercado oligopolizado.
O sistema não se tornou mais eficiente, tal como alegado, do ponto de vista dos custos. Ao contrário, os custos de administração desses fundos são elevadíssimos, oscilando entre 19,2%, no México, e quase 25% na Argentina. Tudo financiado exclusivamente pela contribuição do trabalhador. Na Argentina, 25% do que o trabalhador contribui é para os Fundos de Pensão fazerem propaganda e marketing deles mesmos e dos seus serviços.
Vale a pena comparar com o Brasil, em 2001, onde os resultados dos custos administrativos do inss foram de 6,2% da arrecadação total, evidenciando que o nosso custo foi extremamente inferior, mesmo no sistema público centralizado, se comparado aos dos Fundos de Pensão.
Um dos aspectos centrais da crise fiscal da Argentina foi a Reforma da Previdência: o resultado fiscal dessa reforma foi passar de um superávit de 2,2 bilhões de dólares, em 1993, para um déficit de quase 7 bilhões de dólares no final da década. Isso pelo lado fiscal. Já o déficit previdenciário corrente passou de 900 milhões de dólares para 6,7 bilhões de dólares. Eis o déficit previdenciário da Argentina ao mudar seu sistema 2.
Contrariando, portanto, a suposição de que um sistema privado resultaria também na transferência regular de contribuições e na redução da evasão, existem sérias divergências entre os estudiosos desse modelo. Dos contribuintes ativos, entre o número de filiados e a correlação de filiados e contribuintes ativos nos sistemas, temos hoje somente entre 48% e 53%, na média, na Argentina, na Colômbia e no Chile.
Quais são os principais problemas do modelo privado de Fundos de Pensão? Uma péssima cobertura dos trabalhadores e o não-incentivo à filiação, como se alegava. Qualquer documento que defenda os Fundos de Pensão afirma que é muito mais fácil diminuir a evasão quando há contribuição e/ou vínculo de filiação individual. Isso não se comprovou nem no caso chileno, nem em nenhum país latino-americano, onde os chamados autônomos ou informais continuam não se vinculando e a taxa de exclusão continua elevada.
Hoje, no Chile, do ponto de vista do rendimento desses fundos – e esse é o dado mais incrível -, 40% das aposentadorias mínimas, que correspondem a 80% do valor do salário mínimo, são complementadas pelo Estado chileno. Isto é, nos Fundos de Pensão a capitalização não consegue sequer cobrir uma aposentadoria mínima ao término do período de contribuição legalmente previsto. O déficit da transição chilena foi de 25% do PIB nos anos 1980, e a previsão é de que o déficit continue até 2030, e o Estado terá que continuar a “dar cobertura” para compensar essas “falhas” do sistema privado.
Uma coisa importante é a composição da carteira – e a ideia central por trás disso é que os Fundos de Pensão contribuiriam para o desenvolvimento econômico. Do ponto de vista dos investimentos desses fundos, apenas 7% dos investimentos dos fundos latino-americanos (na média) foram para o mercado de ações e para investimentos. Mais de 60% dos recursos desses fundos foram para o mercado financeiro e, sobretudo, para financiar o pagamento dos títulos da dívida pública dos respectivos Estados e governos.
Um jornalista me perguntou se esse modelo não gera poupança. Gera. A poupança privada é monumental, mas no fundo temos uma situação de transferência de poupança pública para a poupança privada. E a questão central é que essa poupança privada não gera necessariamente crescimento, desenvolvimento e muito menos emprego. Repito: o Chile, que é o modelo, a coqueluche dessa história dos Fundos de Pensão e que tem 45% de poupança gerada por esses fundos, não conseguiu diminuir as suas taxas de desemprego, apresentando um crescimento econômico que, se em algum momento foi o maior da América Latina, não foi por causa dos Fundos de Pensão. Os próprios economistas chilenos hoje reconhecem que foi muito mais por um modelo exportador de commodities. Enfim, eles conseguiram um nicho no mundo que permitiu criar um modelo exportador que possibilitou algum grau de crescimento econômico. Nada a ver com os Fundos de Pensão. Em contrapartida, o nível de emprego não aumenta, a pobreza não diminui, muito menos a informalidade etc.
Quais são os principais problemas da capitalização? E aqui vale tanto para os fundos abertos como para os fechados. Primeiro, a taxa de reposição extremamente incerta, um custo altíssimo de transição e manutenção, e nenhum poder redistributivo. Quando se discute a questão da unificação ou da construção desse modelo misto, um modelo geral, que seria o básico, com o complementar em fundo de pensão, resta saber qual vai ser o tamanho desse modelo aqui. Qual vai ser o tamanho desse sistema público de repartição que é o único com algum poder redistributivo. Sistemas de capitalização, seja qual for a forma (aberta ou fechada), não têm poder distributivo, pois seu modelo é individualizado. Há uma brutal transferência da poupança pública para a poupança privada, e nenhum retorno para os empregos.
MITOS
Para finalizar, gostaria de comentar os dez mitos que Joseph Stiglitz – ex-diretor do FMI e ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2001 (sendo, portanto, “fonte insuspeita”) – aponta na questão dos Fundos de Pensão.
“As contas individuais aumentam a poupança nacional”: esse é o mito número um. É um mito, ou seja, isto não acontece.
Segundo mito: “As taxas de retorno individual, no sistema de capitalização, são superiores às do sistema de repartição”. Não é verdade. Pelo contrário, as incertezas na capitalização, tal como já vimos, são muito maiores.
“As taxas de rendimentos, no sistema de repartição, refletem problemas fundamentais e têm impactos econômicos.” Outro mito, não há confirmação de que o impacto econômico que o “generoso” sistema de repartição tinha sobre a economia ia ser resolvido pela substituição pelo sistema de capitalização. Isso não se evidenciou. Muito pelo contrário.
Quarto mito: “O investimento dos fundos fiduciários públicos em ações não tem efeitos macroeconômicos”. Esse é o problema do desenvolvimento do mercado de ações, a questão das bolsas e a instabilidade mundial. Hoje os economistas norte-americanos e alemães já estão criticando o mercado de ações como base para o seu desenvolvimento econômico. Isto para o mercado de ações “deles”, países capitalistas desenvolvidos, que dirá o nosso.
Quinto mito: “Os incentivos no mercado de trabalho são melhores em um sistema de contas individuais”. Já vimos com exemplos que não há nenhum tipo de incorporação dos autônomos, de um lado, nem geração de emprego, de outro.
Sexto: “Os planos privados de contribuição definida necessariamente outorgam mais incentivos para aposentadoria antecipada”.
O sétimo é que “a competição entre os fundos assegura baixos custos administrativos”. Já mostramos que não.
Agora, o oitavo mito, de economia política, é fantástico e era alegado pelo Banco Mundial: “Os governos corruptos e ineficientes oferecem uma argumentação para as contas individuais”.
Segundo o Banco Mundial, o problema da corrupção dos governos afeta o sistema previdenciário, o que seria superado na gestão privada. Na América Latina, a gestão privada dos Fundos de Pensão foi muitas vezes questionada, inclusive do ponto de vista da sua eficiência econômica, para não falar de outros desvios e da própria corrupção.
Nono mito: “As políticas de ajuda estatal são piores sob os sistemas de planos públicos de benefícios definidos”.
Stiglitz faz uma defesa ferrenha destes planos, e outros autores críticos do modelo do Banco Mundial também argumentam que, se é para ter algum fundo, que seja de benefício definido, e não de contribuição definida.
Último mito: “O investimento dos fundos fiduciários públicos sempre se realiza sem o devido cuidado e sua gestão é deficiente”.
Acho que os modelos latino-americanos podem nos trazer algumas lições para reflexão, sobretudo no que diz respeito ao que considero ainda uma defesa do nosso patrimônio, do que nós ainda dispomos, que é a Seguridade Social prevista na Constituição de 1988.
Espero que não sigamos o exemplo da América Latina naquilo que teve de negativo. Oxalá também não acompanhemos alguns mitos. Um mito em particular precisa ser estudado com muito cuidado: o de que um sistema de Fundos de Pensão vai gerar poupança e desenvolvimento. Não há evidência mundial sobre isso. Desloca poupança para o setor privado e não gera crescimento, desenvolvimento e, muito menos, emprego.
Portanto, vamos prestar bastante atenção, olhar para os países latino-americanos, nossos irmãos, além de para outras experiências internacionais, do ponto de vista do que significaram as reformas. Aqui foram mostradas evidências sociais e econômicas das reformas da Seguridade e da Previdência Social em nosso continente. Espero que algumas dessas lições possam ser aprendidas e que olhemos para aquilo, eu insisto, que temos de patrimônio nosso.
Matéria relacionada:
O Banco Mundial e a farsa da capitalização da Previdência – 1