Segundo um dos articuladores da Lei da Ficha limpa, juiz Márlon Reis, muda a condição de inelegibilidade para quem cometeu abuso de poder econômico ou político
O Senado Federal aprovou, na quarta-feira (28), requerimento para acelerar a tramitação de projeto de lei — PLP (Projeto de Lei Complementar) 192/23 —, que enfraquece a Lei da Ficha Limpa. A proposta aprovada é criticada por entidades ligadas à transparência e combate à corrupção.
O requerimento de urgência, para votação em plenário, foi aprovado no âmbito da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Casa.
O projeto de lei é de autoria da deputada Dani Cunha (União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (Republicanos-RJ), cassado e condenado por corrupção. O texto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados
A expectativa é que o plenário da Casa vote a matéria na próxima semana. A votação se deu de forma simbólica e apenas o senador Eduardo Girão (Novo-CE) manifestou voto contrário.
A proposição cria novas condições para o começo da contagem do prazo de inelegibilidade de candidatos e beneficiará mesmo candidatos que já foram condenados, encurtando o tempo de afastamento dos pleitos.
PRAZO DE INELEGIBILIDADE
Se aprovado, o projeto encurtaria o prazo de inelegibilidade de, entre outros, do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que poderá disputar o pleito de 2026, e do próprio deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), que viu seu processo de cassação ser aprovado no Conselho de Ética da Câmara, nesta quarta-feira.
Segundo um dos articuladores da LC (Lei Complementar) 135/10, a Lei da Ficha limpa, juiz Márlon Reis, a mudança pode beneficiar até mesmo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Reis explica que a redação atual do texto proposto pelo Congresso muda a condição de inelegibilidade para quem cometeu abuso de poder econômico ou político — caso de Bolsonaro — restringindo a condição apenas para os casos em que poderiam anular o resultado eleitoral.
TRÊS POSSÍVEIS CONTAGENS
A proposta estabelece três possíveis contagens para o prazo de inelegibilidade. A primeira conta a partir da decisão judicial que decretar a perda do cargo. Essa vale para membros dos poderes Executivo e Legislativo em nível federal, estadual e municipal.
A segunda envolve o caso de abuso de poder econômico ou político. A contagem do prazo, em caso de decisão transitada em julgada pela Justiça Eleitoral que envolverem o tema é iniciada no ano da eleição em que ocorreu o abuso. O candidato apenas se torna inelegível caso ocorra a cassação do diploma, registro ou mandato, algo que não é exigido atualmente.
A terceira é em caso de renúncia após representação de membros do Legislativo ou do Executivo, que pode levar a abertura de processo por infringir a Constituição em vários níveis. Nesse caso, a data de inelegibilidade começa a partir da renúncia.
INELEGIBILIDADE POR ATÉ 12 ANOS NO MÁXIMO
Além disso, a matéria assegura que o prazo de inelegibilidade só possa se acumular por até 12 anos. Isso quer dizer que se determinado candidato ficar inelegível e receber nova condenação, independentemente do prazo, ele só poderá ficar inapto a ser candidato por até 12 anos, não podendo passar desse período.
O projeto de lei complementar especifica que a condição de inelegibilidade exige a comprovação do dolo, ou seja, a intenção deliberada de quem foi condenado por improbidade. Antes, bastava que fosse constatada a voluntariedade da pessoa. Ou seja, o cidadão denunciado pode alegar que roubou sem querer e a discussão se dará em nada.
O relator do projeto de lei, Weverton Rocha (PDT), afirmou que o texto é “totalmente pertinente”. “Da forma que está não pode ficar”, disse.
Até o momento, pelo menos seis organizações da sociedade civil criticam a proposta. As entidades afirmam que se aprovado o PLP, causará “retrocessos para o combate à corrupção”. Para essas entidades, reduzir o prazo de inelegibilidade contribui apenas para os interesses dos condenados.
“A diminuição de tal prazo, conforme estabelecido pelo projeto em questão, contribui única e exclusivamente para a salvaguarda dos interesses daqueles que já se encontram na posição de representantes da cidadania, mas não foram capazes de desempenhar com retidão e moralidade tal função”, está escrito na nota, assinada pelas organizações.
Leia o posicionamento da Comissão de Fundadores e Fundadoras da Associação Brasileira de Eleitoralistas.
“NOTA PÚBLICA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ELEITORALISTAS EM REPÚDIO AO PLP nº 192/2023
A Comissão de Fundadores e Fundadoras da Associação Brasileira de Eleitoralistas (ABRE) vem a público manifestar sua incontida indignação e irrefreável revolta diante do Projeto de Lei Complementar nº 192/2023, que ora retorna à pauta de votações do Senado, em razão dos gravíssimos retrocessos que representa para as normas eleitorais, em especial para a Lei da Ficha Limpa.
Em primeiro lugar, o PLP nº 192/2023 altera a alínea ‘e’ do art. 1º, I, da Lei das Inelegibilidades, afrouxando o regime de inelegibilidade e facilitando a candidatura para condenados por crimes gravíssimos.
Ora, referida alínea ‘e’, que impõe inelegibilidade em razão de condenação por certas categorias de crimes especialmente graves, constitui o que se pode chamar de “coração” da Lei da Ficha Limpa. Trata se de sua principal razão de ser, do principal motivo que impulsionou a gigantesca mobilização popular havida em favor da sua aprovação.
A inaceitável proposta contida no PLP nº 192/2023 pretende extinguir a inelegibilidade “após o cumprimento da pena” na hipótese de condenação criminal. A inelegibilidade por 8 anos incidiria apenas após a condenação por órgão colegiado. Dessa forma, o projeto reduz drasticamente o prazo de inelegibilidade de condenados por crimes gravíssimos – como homicídios, estupros, tráfico de drogas, organização criminosa, entre outros crimes hediondos. Em alguns casos, indivíduos condenados por tais crimes nem mesmo ficariam inelegíveis, pois ao contar o prazo de 8 anos da condenação por órgão colegiado, e não do término da pena, esses indivíduos, ao término da pena, já teriam cumprido o prazo de inelegibilidade.
Eventual aprovação de projeto de lei que enfraqueça ou minimize o alcance da alínea ‘e’ possibilitaria a candidatura de indivíduos que claramente não ostentam vida pregressa compatível com o que se espera de governantes e legisladores, em frontal violação do princípio da proteção da moralidade para o exercício dos mandatos, considerada a vida pregressa dos candidatos, consagrado na Constituição.
O projeto contém alteração similar relativa a outra alínea sensível da Lei das Inelegibilidades, a alínea “l”, que trata de condenações por improbidade administrativa. Ele prevê, do mesmo modo, que a inelegibilidade de 8 anos incida apenas após a condenação por órgão colegiado, e não ao final da pena de suspensão de direitos, fazendo com que ao final da pena de suspensão de direitos os indivíduos condenados por improbidade administrativa já tenham cumprido o prazo de inelegibilidade.
Como se não bastasse, o projeto acrescenta à alínea “l” a expressão “na parte dispositiva da decisão”, passando a exigir que os requisitos cumulativos de enriquecimento ilícito e lesão ao patrimônio público constem expressamente do dispositivo da condenação, o que praticamente inviabiliza a incidência de inelegibilidade em casos de improbidade administrativa.
E o que é pior mais grave, o projeto permite a aplicação das novas regras aos “processos em curso e aos transitados em julgado”. Ou seja, permite a aplicação da nova contagem de prazo de inelegibilidade a eleições já concluídas, causando um enorme risco de alteração dos mandatos em curso.
Com efeito, a reversão de registros indeferidos importaria na recontagem de votos, alteração dos quocientes partidário e eleitoral, maiores médias e a retotalização dos resultados, com a substituição de parlamentares federais, estaduais e municipais, causando um verdadeiro caos político e insegurança institucional e jurídica.
O projeto estabelece, por fim, a unificação de todas as inelegibilidades ocorridas no período em no máximo 12 anos. Referida norma ofende o princípio da isonomia, pois trata de forma semelhante indivíduos que recebem sistematicamente diversas condenações aptas a gerar inelegibilidade com aqueles que tiveram uma ou duas intercorrências em sua vida.
A nova regra, inclusive, pode produzir situações anômalas e absurdas, bem como até incentivar o cometimento de novos ilícitos, pois não gerariam mais inelegibilidade. Exemplificando: caso determinada pessoa, durante os 8 anos de inelegibilidade, inclusive no 7º ano, cometa diversos outros crimes ou ilícitos que geram inelegibilidade, terá sua restrição eleitoral limitada em apenas 12 anos. Ou mesmo, no 10º ou 11º ano de inelegibilidade cometa novos ilícitos, ainda assim, terá sua inelegibilidade limitada a 12 anos, o que é absurdo.
Em suma, o PLP nº 192/2023 pretende afrouxar, de maneira nítida e acentuada, as restrições à elegibilidade de indivíduos com vida pregressa incompatível com o exercício de mandatos eletivos, que foram instituídas pela Lei das Inelegibilidades com redação dada pela Lei da Ficha Limpa.
Nunca é demais lembrar que a Lei da Ficha Limpa resultou de um Projeto de Iniciativa Popular que teve o apoio de mais de um milhão e seiscentos mil eleitores, e teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.
Reverter essa conquista histórica e democrática atenta contra a soberania popular, contraria o interesse público e serve apenas para dar livre acesso à candidatura a cargos eletivos a indivíduos que deveriam estar fora do processo político.
Diante do exposto, a Comissão de Fundadores e Fundadoras da Associação Brasileira de Eleitoralistas (ABRE) exorta os senadores e senadoras do Brasil a dignificar o mandato recebido pelo voto popular e a VOTAR CONTRA o PLP nº 192/2023!
Brasília, 20 de agosto de 2024.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ELEITORALISTAS
Márlon Reis
Edson de Resende Castro
Milton Lamenha de Siqueira
Moisés Casarotto
Olivia Raposo da Silva Telles
Paulo Madeira
Rafael Estorílio
Valéria Paes Landim”