Recentemente, participei de uma discussão sobre a questão das emendas parlamentares, que, no caso do Brasil, chegou à fronteira do escândalo, se é que já não a ultrapassou. Estamos na situação em que boa parte do Orçamento, que sempre foi uma responsabilidade do Executivo, foi sequestrada por grupelhos que se homiziam no Legislativo, sob o guarda-chuva oferecido pelo presidente da Câmara.
Em especial, as chamadas “emendas-pix” constituem uma erupção descontrolada de dinheiro público, pois trata-se de dinheiro enviado a instituições (em geral, Prefeituras), sem que seja necessário qualquer documento que comprove sua necessidade ou sua aplicação – nem mesmo um simples papel.
O que impede essas emendas de ser a forma de um roubo?
Nada, exceto a suposta honestidade dos gestores e receptadores.
Mas, quem garante essa suposta honestidade, sem controle de algum órgão público?
No entanto, é inútil culpar as instituições pelos problemas institucionais. Essa tentativa de atribuir a elas os seus próprios problemas, mais parece com aquela serpente ocupada em devorar a própria cauda. Caso seja bem sucedida, o resultado será o nada.
O que é necessário responder é por que jamais foi assim no Brasil, exceto hoje. Da mesma forma, os que responsabilizam a incrível mediocridade do parlamento por esse estado atual de coisas, devem explicar porque, nem na ditadura, o parlamento foi tão medíocre.
Naturalmente, não estamos discutindo um problema do Estado Socialista. Para não deixar dúvida, havia, na discussão a que aludimos, um cidadão pertencente a um Estado socialista, que parecia perdido em meio àquele debate, pela impossibilidade de entendê-lo.
Com efeito, tal assunto diz respeito apenas a Estados burgueses ou feudais ou escravagistas – embora não a qualquer Estado burguês ou feudal ou escravagista.
Assim, para simplificarmos a questão, vamos admitir, como premissa, o óbvio: o Brasil é um Estado burguês.
Mas nem todo Estado burguês é igual a outro Estado burguês. E nem toda burguesia é igual a outra burguesia.
O que diferencia, portanto, a nossa burguesia de outras burguesias – e o nosso Estado burguês de outros Estados burgueses?
Lembremos que a nossa burguesia – e, portanto, o nosso Estado burguês – desenvolveu-se, a partir de uma base formada ainda no Império e na República Velha, da década de 30 do século passado em diante, até a década de 80.
Lembremos que:
“De 1930 a 1980, o crescimento foi sustentado e crescente, com taxa média anual de 6,7%. Curtos períodos de desaceleração ocorreram na primeira metade das décadas de 1930, de 1940 e de 1960. A pujança do crescimento foi notável no final da década de 1950 e no período do ‘milagre econômico’, entre 1967 e 1973, quando o crescimento real atingiu taxas recordes de 10,7% ao ano, em média. A partir de 1980, a tendência do crescimento foi declinante: a taxa média de crescimento médio anual foi de 2,1%, mas com substancial oscilação” (cf. Eustáquio Reis, Fernando Blanco, Lucilene Morandi, Mérida Medina e Marcelo De Paiva Abreu, Século XX nas contas nacionais, in Estatísticas do Século XX, IBGE, Rio, 2006, p. 512).
Esse crescimento, até 1980, foi impulsionado sobretudo pela industrialização: “De 1920 a 1980, impulsionada pelo processo de substituição de importações, a industrialização e urbanização da economia fizeram o PIB per capita praticamente dobrar a cada 20 anos” (op. cit., p. 510).
Podemos, também, utilizar a tabela do IBGE sobre a variação anual do PIB a preços de mercado:
1930 => -2,10%
1931 => -3,30%
1932 => 4,30%
1933 => 8,90%
1934 => 9,20%
1935 => 3,00%
1936 => 12,10%
1937 => 4,60%
1938 => 4,50%
1939 => 2,50%
1940 => -1,00%
1941 => 4,90%
1942 => -2,70%
1943 => 8,50%
1944 => 7,60%
1945 => 3,20%
1946 => 11,60%
1947 => 2,40%
1948 => 9,70%
1949 => 7,70%
1950 => 6,80%
1951 => 4,90%
1952 => 7,30%
1953 => 4,70%
1954 => 7,80%
1955 => 8,80%
1956 => 2,90%
1957 => 7,70%
1958 => 10,80%
1959 => 9,80%
1960 => 9,40%
1961 => 8,60%
1962 => 6,60%
1963 => 0,60%
1964 => 3,40%
1965 => 2,40%
1966 => 6,70%
1967 => 4,20%
1968 => 9,80%
1969 => 9,50%
1970 => 10,40%
1971 => 11,34%
1972 => 11,94%
1973 => 13,97%
1974 => 8,15%
1975 => 5,17%
1976 => 10,26%
1977 => 4,93%
1978 => 4,97%
1979 => 6,76%
1980 => 9,20%
1981 => -4,25%
1982 => 0,83%
1983 => -2,93%
1984 => 5,40%
1985 => 7,85%
1986 => 7,49%
1987 => 3,53%
1988 => -0,06%
1989 => 3,16%
1990 => -4,35%
1991 => 1,03%
1992 => -0,54%
1993 => 4,92%
1994 => 5,85%
1995 => 4,22%
1996 => 2,21%
1997 => 3,39%
1998 => 0,34%
1999 => 0,47%
2000 => 4,39%
2001 => 1,39%
2002 => 3,05%
2003 => 1,14%
2004 => 5,76%
2005 => 3,20%
2006 => 3,96%
2007 => 6,07%
2008 => 5,09%
2009 => -0,13%
2010 => 7,53%
2011 => 3,97%
2012 => 1,92%
2013 => 3,00%
2014 => 0,50%
2015 => -3,55%
2016 => -3,28%
2017 => 1,32%
2018 => 1,78%
2019 => 1,22%
2020 => -3,28%
2021 => 4,76%
2022 => 3,02%
2023 => 2,91%
As conclusões que se podem tirar desses números, referentes ao crescimento econômico do país, são semelhantes ao do estudo que citamos acima, publicado, também, pelo IBGE:
a) Entre 1930 e 1980, ou seja, durante o período nacional-desenvolvimentista, mesmo incluindo nele algumas fases (como o governo Dutra e o início da ditadura) que dificilmente se podem classificar como de desenvolvimento nacional, crescemos a uma média anual de 6,38%.
b) No período posterior (1981-2023), em que imperou, exceto em poucos instantes, o neoliberalismo, empacamos em 2,19% de média anual de crescimento.
Porém, desagreguemos mais os dados.
c) No governo Collor, primeira vertigem neoliberal, o país caiu -1,29% na média anual.
d) No governo Fernando Henrique, outro abismo neoliberal, o crescimento, na média anual, foi entravado em 2,43%, menos que na chamada “década perdida” (2,9%).
e) Nos dois primeiros mandatos de Lula, a média anual de crescimento, apesar dos juros altos mantidos pelo sr. Meirelles no Banco Central, saiu um pouco da mediocridade, atingindo 4,08%.
f) Porém, no período de Dilma (2011-2016), esse crescimento caiu para apenas 0,43%.
g) Os períodos de Temer (1,55%) e Bolsonaro (1,43%) tiveram média anual tão medíocre que servem apenas para engrossar nosso argumento sobre a miséria política atual.
Mas voltemos ao fio da meada: assim como a burguesia e o Estado burguês se desenvolveram com o crescimento econômico, isto é, com a industrialização – pois o desenvolvimento burguês é, antes de tudo, desenvolvimento industrial -, a precarização ideológica da política, inclusive do parlamento, foi uma função da desindustrialização que atingiu o nosso país a partir de 1980, e, sobretudo, a partir de 1990.
Acima, vimos o aspecto quantitativo do crescimento. Agora, vejamos o aspecto qualitativo, ou seja, com base em que setores econômicos se deu esse crescimento – assim como o declínio posterior.
Antes, é justo observar “a evolução anual do PIB real per capita no Brasil de 1901 a 2000”:
“Nesse período, o PIB per capita brasileiro cresceu quase 12 vezes, com taxa geométrica média de 2,5% ao ano, feito que, no Século XX, poucas economias nacionais conseguiram superar – destacando-se, Japão, Taiwan, Finlândia, Noruega e Coreia” (op. cit., p. 510).
E, na mesma página:
“A partir de 1995, a taxa de inflação foi estabilizada em níveis relativamente baixos. A estabilização, contudo, foi acompanhada de crescimento econômico insatisfatório e contração do emprego industrial gerando frustrações e preocupações sobre perspectivas futuras.”
Aqui, existe algo importante, do ponto de vista de uma economia capitalista – sobretudo de uma economia capitalista dependente, como a nossa:
“(…) 9 dos últimos 20 anos do século foram de crises que se destacaram pela severidade e duração. (…) Nos 50 anos da fase de substituição de importações ocorreu uma única crise no período de 1963-1965, ainda assim relativamente breve e suave com queda de 2% no PIB per capita. Nos 30 anos da fase primário-exportadora ocorreram cinco crises com duração de quatro a seis anos e quedas de renda per capita que oscilam entre 6% e 9% do pico prévio” (op. cit., p. 511).
Então, o nosso problema, como já anunciamos, é identificar qual o setor (ou os setores) que foram responsáveis pela queda do nosso crescimento.
Esta é uma pequena tabela sobre a participação da indústria manufatureira (ou indústria de transformação) no PIB, a preços correntes:
1939 => 16,3%
1985 => 35,9%
1998 => 13,8%
2004 => 17,8%
2020 => 11,2%
2021 => 11,3%
O quadro não é diferente se utilizarmos preços constantes, em vez de preços correntes.
Ou se utilizarmos a participação dos produtos industriais importados na oferta doméstica:
1997 => 10,3% da oferta doméstica
2001 => 14,9% da oferta doméstica
2005 => 10,9% da oferta doméstica
2015 => 16,7% da oferta doméstica
2021 => 20,9% da oferta doméstica
E repare o leitor que estão contados como produtos nacionais aqueles que apenas são montados dentro do Brasil.
Assim, temos um país em que há um violento processo de desindustrialização. Em outra época, Luciano Coutinho chamou esse processo de “dessubstituição” de importações, ou seja, substituição do produto nacional pelo produto fabricado no estrangeiro.
Como consequência desse processo, temos o enfraquecimento da burguesia nacional (ou que nome o leitor queira dar). De qualquer forma, o debilitamento da burguesia industrial – e o incensamento do “agro” e de seu reacionarismo, inclusive como ninho do bolsonarismo. Essa é a origem da pauperização política que vemos dos meios públicos, levando ao escândalo das emendas e demais formas de apropriação política do dinheiro público.
Mas é evidente que isso não seria possível sem o privilégio aos rentistas quanto ao Orçamento. Pois o que esses parlamentares se apropriam é apenas uma migalha para que permitam o imenso açambarcamento dos recursos coletivos através dos juros da dívida pública.
Comparemos a taxa básica (SELIC), que é o piso das taxas de juros, com a inflação – e veremos que os juros reais, pelo menos desde 1995, com raras exceções, têm estado sistematicamente acima da inflação.
O juro real é, exatamente, o lucro do banco.
Quem investirá na produção, se pode obter ganho muito maior nos juros de uma aplicação financeira?
Esta é a origem interna da desindustrialização no Brasil – e, consequentemente, a base econômica do charivari parlamentar, inclusive do carnaval das emendas que sequestram o orçamento.
CARLOS LOPES
Com o Final da URSS, queda do Muro de Berlim, segunda guerra consequentemente, quando tivemos eleições para Presidente, acaba o ciclo Getúlio Vargas, retornam as oligarquias tradicionais (Agro) em detrimento da burguesia industrial. Supressão do Estado de SP e a intensificação do totalitarismo. A Inflação da era militar subsidiava as empresas e formava uma classe média leal ao regime… Os ciclos econômicos e a cidade: na era industrial branca, as habitações eram alinhadas nas avenidas principais, deram lugar ao comércio e ao serviço, e agora aos apartamentos. Migração em Massa para reformas. Ciclo Industrial = inflação e expansão; Ciclo banco = Juros e recessão
Que confusão! O que tem o fim da URSS a ver com Getúlio Vargas? E desde quando uma regressão, como a desindustrialização do Brasil, implica em nossa volta a uma fase histórica anterior, no caso, à República Velha? E o que é “era industrial branca”? Será que isso não é racismo?