Cerca de 600 mil pessoas, entre as mais vulneráveis, podem perder o benefício que lhes garante vida minimamente digna. Pretexto: aprimorar o programa. Objetivo real: compensar privilégios fiscais oferecidos a grandes empresas
Um ataque gravíssimo está em curso contra o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Com a aprovação do Projeto de Lei 1847/2024, cerca de 600 mil idosos e pessoas com deficiência (mais de 11% dos beneficiários) podem ser excluídos do programa. Serão vítimas de uma manobra para continuar oferecendo subsídios fiscais a 17 setores do grande capital, jogando a conta sobre os ombros dos mais vulneráveis.
O BPC, que assegura uma renda mínima para idosos e pessoas com deficiência em situação de extrema pobreza, tem sido alvo de contínuos ataques desde o governo Bolsonaro. Em 2019, Paulo Guedes tentou reduzir o benefício para R$ 400 e aumentar a idade mínima para 70 anos, mas a proposta foi barrada pela resistência popular. Infelizmente, a ofensiva contra os direitos dos mais pobres não parou por aí.
A ofensiva contra o BPC não é um ataque isolado, mas parte de uma agenda mais ampla de austeridade e neoliberalismo que busca desmantelar os mecanismos de proteção social, transferindo recursos públicos para o grande capital. Essa agenda vê os mais pobres não como cidadãos dignos de direitos, mas como um custo a ser reduzido. Enquanto os lucros de poucos são preservados, os direitos de muitos são sistematicamente corroídos.
Mesmo sob o governo Lula, que assumiu com promessas de justiça social, o BPC voltou a ser alvo, agora sob o Novo Arcabouço Fiscal. Essa trava fiscal impôs um teto para os gastos, estabelecendo limites rígidos para o crescimento das despesas primárias do governo. Isso gerou pressão direta sobre o BPC, uma vez que as projeções indicam que o crescimento dos gastos com o benefício – atrelado ao salário-mínimo, à informalidade no mercado de trabalho e ao envelhecimento da população – supera o limite imposto pelo arcabouço fiscal, criando uma incompatibilidade matemática e política.
Um dos primeiros ataques, felizmente derrotado, partiu da ministra do Planejamento, Simone Tebet, que sugeriu desvincular o benefício do salário-mínimo. Uma medida que seria devastadora. Sem o reajuste atrelado ao mínimo, o BPC perderia valor rapidamente, jogando milhões de brasileiros para além do limite da pobreza. Mais uma vez, era a lógica perversa da austeridade: proteger as elites empresariais enquanto os mais pobres pagam a conta. A resistência popular foi fortíssima e a ministra não teve correlação de forças para avançar.
A saída da equipe econômica do governo Lula então foi recorrer à velha tática dos pentes finos. Vale lembrar que a mesma lógica foi aplicada pelos governos Temer e Bolsonaro, então fortemente combatida pela esquerda. Em publicação oficial do PT em 2019, o partido lembrava que a operação “pente-fino” de Bolsonaro ameaçava os direitos dos mais pobres. O texto lembrava que o objetivo era fazer austeridade fiscal, reduzindo o programa, e que a revisão dos benefícios, “por certo”, teria como efeito perverso o cancelamento indevido de benefícios. Entretanto, o governo liderado pelo partido anunciou que seguirá a mesma cartilha e prevê o cancelamento de 670,4 mil benefícios do BPC (Benefício de Prestação Continuada) em 2025.
Dentre as medidas concretas dessa ofensiva, no final de julho, o governo publicou duas portarias que alteram os critérios e exigências para o cadastramento e recebimento do BPC. Uma das portarias determina que, para continuar recebendo o benefício, o beneficiário deve estar inscrito no CadÚnico; caso contrário, o benefício será suspenso. A outra exige o cadastro biométrico e a realização de revisões periódicas. Após a notificação bancária, os beneficiários terão apenas 45 dias, nos municípios de pequeno porte, para regularizar sua situação. Caso não haja confirmação da notificação bancária ou de outros canais de comunicação, o crédito será bloqueado em 30 dias após o envio da notificação. O não cumprimento dessas exigências resultará na suspensão do benefício, desde que a ciência da notificação seja comprovada. Se a ciência não for confirmada em até 30 dias, o valor do benefício será bloqueado.
Essas mudanças podem resultar na perda de benefícios para inúmeras pessoas, já que muitos cadastros estão desatualizados devido à sobrecarga de trabalho do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), dos centros de referência (CRAS/CREAS) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em diversos municípios, já há registros de longas filas para a atualização. Além disso, em muitas cidades, a população alvo do BPC tem acesso limitado a meios digitais, dificultando a atualização de informações e a realização da biometria.
Dois fatores acabaram levando à conversão das portarias em leis. Primeiro, as deputadas Samia Bonfim, Fernanda Melchionna e Glauber Braga (do PSOL) apresentaram um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 338/2024) revogando as medidas. Havia risco de a pressão popular crescer e a proposta ser aprovada.
Além disso, pesava uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Há meses, o STF considerou inconstitucional uma lei que isentava 17 setores empresariais de contribuir para a Previdência, permitindo-lhes um “compensação” insuficiente, por meio de outros tributos. Segundo o Supremo, a inconstitucionalidade estava no fato de a lei não apresentar fontes de arrecadação substitutas, o que supostamente prejudicaria o “equilíbrio das contas públicas”, conforme previsto no arcabouço jurídico brasileiro. O tribunal, no entanto, concedeu ao Legislativo um prazo para adequar-se. Esgotava-se em 11/9. Se a exigência não fosse cumprida, os setores privilegiados pela isenção voltariam a pagar contribuições previdenciárias como todos os demais.
A “saída” encontrada pelos ministérios econômicos do governo Lula foi incluiu as medidas no Projeto de Lei ( PL) 1847/2024, com a justificativa de coibir fraudes – uma justificativa falsa. Seu relator no Senado foi o líder do governo naquela casa, Jaques Wagner (PT-BA). Prevê-se que “economia” produzida pelo pente-fino no BCP e também no INSS (atingindo, por exemplo, a aposentadoria por invalidez) compense parte dos privilégios que o Estado brasileiro continua oferecendo aos 17 setores. Em relação ao pente-fino na aposentadoria por invalidez, o secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, Sérgio Firpo, afirmou ao Jornal O Globo:
No caso da aposentadoria por invalidez, a gente deveria fazer uma avaliação a cada dois anos para quem tem menos de 60 anos, mas a gente não faz. Há espaço para fazer pelo menos 800 mil. Também é papel do Estado fazer uma reabilitação dessas pessoas para que elas se tornem produtivas, estarem no mercado de trabalho.
A situação, portanto, agravou-se: enquanto as portarias poderiam ser facilmente revertidas por um simples ato do presidente da República, o governo e o Congresso incorporaram essas medidas num projeto de lei. Ele foi aprovado no Congresso Nacional nesta quinta-feira (12/9) e pode ser em breve sancionado, tornando-se lei.
Vale lembrar um episódio relacionado ao “pente-fino”. No início do mandato de Jair Bolsonaro, o governo criou um bônus financeiro pago aos analistas do INSS por cada processo analisado além da jornada regular de trabalho. O objetivo de acelerar a conclusão de investigações sobre supostas irregularidades no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Essa prática resultou em análises frágeis, prejudicando os cidadãos. Um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) concluiu que, devido ao incentivo financeiro, analistas muitas vezes deixaram de solicitar informações e documentos adicionais aos segurados, a fim de acelerar a tramitação e concluir os processos mais rapidamente para receber o bônus.
No que se refere ao atual pente-fino, o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO) estima que essa varredura nos benefícios pode resultar em cortes de R$ 9 bilhões, valor que corresponde a metade do impacto estimado da desoneração, de acordo com as projeções do Ministério da Fazenda. Portanto, no que diz respeito especialmente ao BPC, fica evidente que não há qualquer intenção de melhorar a qualidade do programa; o verdadeiro objetivo é promover um severo ajuste fiscal sobre o benefício.
É fácil comprovar que o PL 1847/2024 tem como foco atacar o BPC Se a intenção fosse realmente aprimorar o programa, e não apenas cortar gastos sociais, o espaço fiscal gerado pelo pente-fino seria utilizado para incluir mais beneficiários, ampliando a elegibilidade. Em uma abordagem genuína, aqueles que não precisam do benefício seriam excluídos, enquanto mais pessoas vulneráveis seriam contempladas. No entanto, o que observamos é exatamente o oposto.
Também podemos comprovar que a intenção é atacar o BPC quando, oficialmente, representantes da equipe econômica, como o secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas do Ministério do Planejamento, Sérgio Firpo, sugerem ir além dos ataques já previstos pelo pente-fino. O ministério, segundo o secretário, estuda um modelo para o BPC muito semelhante ao proposto por Paulo Guedes em 2019, com alternativas como a desvinculação do benefício do salário mínimo e o aumento da idade mínima de 65 para 70 anos. Fica claro que o objetivo não é qualificar o programa, mas desmantelá-lo, adotando políticas que aprofundam ainda mais o prejuízo para os mais vulneráveis. Por definição, o programa foi incluído no PL 1847/2024 como uma medida de compensação, que só atingirá seu propósito se resultar em cortes. A meta é clara: reduzir o número de beneficiários.
A justificativa apresentada para manter privilégios tributários a 17 setores empresariais foi a “manutenção de empregos”. Trata-se de uma peça de ficção. O texto da lei afirma que as empresas desoneradas devem manter 75% de seus empregados do ano anterior. Como isso pode ser chamado de “manutenção de empregos” se 25% dos trabalhadores podem ser demitidos sem qualquer restrição? Isso não é preservação de postos de trabalho, é um corte autorizado e descarado. A verdade é que essa narrativa foi montada para que alguns setores progressistas possam vender a ideia de que estão protegendo empregos, quando, na realidade, estão apenas garantindo que a desoneração do grande capital continue até 2027 — enquanto a compensação vem às custas de cortes no BPC, sacrificando os mais pobres. É um artifício pouco honesto, cuidadosamente projetado para apaziguar a militância e os eleitores, enquanto esconde o verdadeiro propósito: assegurar que os ricos continuem colhendo os frutos, enquanto os vulneráveis, como de costume, ficam com a conta.
O BPC é mais do que uma política pública. Ele representa a linha mínima de dignidade que uma sociedade deve garantir aos seus cidadãos mais vulneráveis. Portanto, a luta pela manutenção e ampliação desse benefício é uma luta por justiça social, contra um sistema que insiste em precarizar a vida da classe trabalhadora e dos mais pobres. A resistência contra essas medidas de austeridade deve ser enérgica, pois o ataque ao BPC é, em última instância, um ataque à própria noção de solidariedade e justiça social.
David Deccache é Mestre em Economia pela UFF, ativista dos direitos humanos e, atualmente, exerce o cargo de Assessor Econômico da bancada de Deputados Federais do PSOL.
Artigo reproduzido do site Outras Palavras, publicado em 13/09/2024