O curta “Auto de Vitória”, do cineasta baiano Geraldo Sarno, que desde que foi finalizado em 1966 se encontrava “perdido”, será exibido em uma sessão especial seguida de debate na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na próxima quarta-feira (23).
A obra foi encontrada na Cinemateca Brasileira quando o jornalista e documentarista Piero Sbragia, fazendo pesquisas para a biografia que está escrevendo – “Geraldo Sarno: o cineasta que virou Sertão” -, a resgatou. O curta, do qual o próprio cineasta, morto em 2022, não sabia do paradeiro desde que o finalizou, foi restaurado digitalmente pela equipe da Cinemateca Brasileira.
Conforme define o texto oficial da Mostra, “Geraldo Sarno é um personagem incontornável do cinema brasileiro”.
“Nasceu no sertão baiano, estudou em Cuba e construiu uma filmografia provocadora e marcada por uma reflexão sobre o próprio fazer cinematográfico. Se o cinema, como quis Humberto Mauro, é água forte de cachoeira, em Geraldo Sarno o cinema é um sertão. Não aquele das ciências da natureza, mas o sertão dentro da gente. O sertão-mundo, como escreveu Guimarães Rosa, ‘onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar’, diz o texto.
No “Auto de Vitória”, como descreve a sinopse do filme, “Satanás e Lúcifer debatem sobre a salvação ou danação do Brasil”. O curta mostra cenas do cortejo fúnebre do fêmur do padre José de Anchieta, “filmado no estilo cinema direito”, com imagens de uma encenação da peça teatral Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício, escrita em 1595 pelo próprio Anchieta.
Ou, como na definição mais esclarecedora e ao mesmo tempo indagadora do biógrafo do diretor: “‘Auto de Vitória’ começa com imagens de um cortejo militar conduzindo o fêmur do padre José de Anchieta (1534-1597) da Basílica de Aparecida à Catedral da Sé, em São Paulo. A presença da força nacional, da polícia e do exército é ostensiva nas imagens, mesmo entre as crianças. Estaria o cineasta preocupado mesmo com o cortejo fúnebre da relíquia? Ou havia uma intenção de conexão com o passado para ressignificar o presente?”.
Segundo ele, “é um filme que discute coisas que ainda estão aí. As igrejas continuam tendo poder no Brasil. As igrejas continuam, de certa maneira, regendo a vida pública dos brasileiros”, diz.
De acordo com o jornalista, Geraldo Sarno, assim como sua obra, que entre os mais de 15 filmes que realizou estão, “Viramundo” (1965), “Coronel Delmiro Gouveia” (1977), “Deus é Fogo” (1985), “O Último Romance de Balzac” (2010), e “Sertânia” (2020), é “uma força bruta da natureza”, que conciliou “de forma muito peculiar um nível de pensamento reflexivo e de análise social sobre a realidade. Não apenas nossa, aqui no Brasil, mas de todos os países latino-americanos”.
“Inquieto e curioso, frequentemente se aproximava das novas gerações com naturalidade. Basicamente por ter perseguido, em vida, uma busca por um cinema genuinamente brasileiro, anticolonialista, constituído de mudanças, rupturas e utopias”, afirma.
Atendendo a um pedido desta reportagem, a filha e a neta do diretor, Paula e Beatriz Sarno, agradeceram a “descoberta” do paradeiro do filme pelo jornalista Piero Sbragia e também “pela recuperação da cópia desse filme realizada pela Cinemateca Brasileira”.
“Entendemos que a memória daqueles que contribuem para o conhecimento e reflexão acerca da cultura e história de nosso País só pode ser um esforço coletivo. Entendemos, também, que essa homenagem demonstra a vivacidade e atualidade de sua obra, principalmente por que traz reflexões das quais necessitamos urgentemente hoje. Muitas descobertas ainda estão por vir. Esperamos todos lá!”, afirmam Paula e Beatriz Sarno.
Nas palavras do diretor, “no cinema busco uma forma de explicar a mim mesmo e de me posicionar no mundo. Mas tenho certeza de que só consigo lançar luz sobre a ponte, sobre o caminho. O que está além é tão misterioso quanto eu mesmo”.
O debate “O cinema de Geraldo Sarno e o sertão dentro da gente”, que ocorrerá logo após a exibição do curta, com as presenças de Paula Sarno, do diretor da Ancine, Paulo Alcoforado; da diretora Ana Carolina e do jornalista Piero Sbragia, e presenças ainda a confirmar, além do filme, também promete muitas reflexões.
Dia 23, às 20h. A exibição do filme, seguida de debate, acontece na Cinemateca Brasileira, na Sala Oscarito.