A África do Sul forneceu provas forenses à Corte Internacional de Justiça (CIJ) de que Israel está cometendo genocídio em Gaza, disse o gabinete do presidente Cyril Ramaphosa, após o país apresentar na segunda-feira (28) documentos expondo seu caso completo perante o tribunal. São mais de 750 páginas de evidências, com mais 4.000 páginas de anexos.
“O genocídio flagrante em Gaza está aí para todos os que não estão cegos pelo preconceito verem”, disse o porta-voz de Ramaphosa. Denominado memorial, a documentação é um chamado à comunidade global da urgência de proteger o povo palestino, acrescentou.
“As evidências mostrarão que subjacente aos atos genocidas de Israel está a intenção especial de cometer genocídio, o fracasso de Israel em prevenir o incitamento ao genocídio, em prevenir o genocídio em si e em punir aqueles que incitam e cometem atos de genocídio”, disse a presidência sul-africana.
“O memorial da África do Sul é um lembrete para a comunidade global se solidarizar com o povo da Palestina e impedir a catástrofe. A devastação e o sofrimento só foram possíveis porque, apesar das ações e intervenções da CIJ e de vários órgãos da ONU, Israel não cumpriu suas obrigações internacionais”.
A documentação com provas do genocídio foi entregue à Corte de Haia no mesmo dia em que o Knesset, o parlamento israelense, acintosamente aprovou a proibição da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, o maior fornecedor de alimentos e assistência de saúde à população de Gaza, criada pela Assembleia Geral da ONU em 1949, logo após a Nakba, a Catástrofe, como os palestinos denominam a expulsão de 800 mil deles durante a limpeza étnica em paralelo à implantação do Estado de Israel.
O que não apenas viola o direito internacional, como agravará incontestavelmente a fome e mortes que já grassam na Gaza ocupada. Em março, a África do Sul já argumentara perante a CIJ, em um de seus pedidos ao tribunal para ordens provisórias contra Israel, que as tentativas de paralisar a agência estavam entre os atos deliberados por parte de Israel.
“SOLUÇÃO FINAL” PARA GAZA
Os bombardeios israelenses indiscriminados contra uma das áreas mais densamente habitadas do planeta já causaram, de acordo com as autoridades médicas palestinas, mais de 43 mil mortos, a maioria mulheres e crianças, e mais de 100 mil feridos, muitos deles mutilados permanentemente.
Mortos enquanto dormiam, quando estavam em abrigos sob a bandeira da ONU, ou no pátio de hospitais. Assassinados quando estavam na fila para conseguir comida.
Segundo a mais respeitada revista médica do mundo, The Lancet, que tem expertise nesse tipo de investigação (no Iraque), o total de mortos em Gaza está próximo de 200 mil, considerando as mortes indiretas, decorrentes da falta de cuidados médicos, da fome e da devastação generalizada.
O caso da África do Sul contra Israel na CIJ afirma que este está violando a Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio, adotada em 1948 exatamente em resposta ao Holocausto cometido pelos nazistas.
Em petições perante o tribunal em janeiro, a equipe jurídica sul-africana argumentou que declarações de autoridades israelenses expressavam abertamente a disposição de aniquilar os habitantes palestinos de Gaza. Inclusive chamando-os “animais humanos” e que não havia “civis inocentes” quanto ao ataque do Hamas em 7 de outubro, que muitos viram como uma fuga do maior campo de concentração a céu aberto do mundo, depois de “57 anos de ocupação sufocante”, nas palavras do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres.
A equipe teve de condensar milhares de páginas de evidências de “brutalidade impensável” em argumentos legais, explicou Zane Dangor, diretor-geral do Departamento de Relações Internacionais e Cooperação da África do Sul.
CASO CLÁSSICO DE GENOCÍDIO
“É um caso clássico de genocídio”, disse Dangor, acrescentando que a “intenção é clara”. “Atos genocidas sem intenção podem ser crimes contra a humanidade. Mas aqui, a intenção está na frente e no centro.”
“Você está vendo declarações de líderes, mas também de israelenses comuns dizendo ‘mate todos os habitantes de Gaza, até mesmo os bebês'”, apontou.
“Com esse nível de depravação, assassinato intencional e imunidade, onde Israel diz: ‘Vamos cometer genocídio e nos safar, como você ousa chamá-lo de genocídio’, temos o dever de pará-lo”, disse Dangor.
Entre as declarações de óbvia intenção genocida, estão as observações do ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, em novembro de 2023, nas quais fez referência a Gaza enquanto aludia a possíveis ações contra o Líbano.
“Estou dizendo aqui aos cidadãos do Líbano, já vejo os cidadãos de Gaza andando com bandeiras brancas ao longo da costa … Se o Hezbollah cometer erros deste tipo, quem pagará o preço será, em primeiro lugar, os cidadãos do Líbano. O que estamos fazendo em Gaza, sabemos como fazer em Beirute”, disse Gallant na época.
O governo sul-africano não divulgou publicamente o memorial porque esta é a prerrogativa do tribunal, mas disse que continha evidências persuasivas de violação da Convenção do Genocídio, inclusive por meio da privação de ajuda humanitária e do uso de fome em massa como arma de guerra “para promover os objetivos de Israel de despovoar Gaza por meio de morte em massa e deslocamento forçado de palestinos”.
Tanto Ramaphosa quanto seu ministro das Relações Internacionais, Ronald Lamola, apontaram para a campanha implacável de Israel em Gaza e sua incursão no Líbano como prova de que o Conselho de Segurança da ONU falhou em seu mandato sobre paz e segurança – o que analistas consideram que se deve ao encobrimento propiciado por Washington, utilizando o poder de veto.
A África do Sul recorreu três vezes ao tribunal para obter medidas provisórias desde que a CIJ proferiu um julgamento provisório em janeiro, no qual considerou que havia risco de violação dos direitos do povo palestino à proteção contra o genocídio. Em maio, a CIJ ordenou que Israel suspendesse suas operações militares em Rafah, no sul de Gaza, por 13 a 2.
“CRIME DOS CRIMES”
Ao levar o caso à Corte Internacional de Justiça da ONU e enquadrar as ações de Israel na lei, a África do Sul mudou a forma como a conduta de Israel é vista e contribuiu para os pedidos de cessar-fogo em Gaza, assinalou Lamola. Vários países, entre eles Espanha, México e Turquia, se somaram à denúncia da África do Sul contra o genocídio.
“O que temos estado dizendo é que genocídio é o crime dos crimes”., disse Chrispin Phiri, a porta-voz da chancelaria sul-africana. A chefe da Associação Internacional de Estudiosos do Genocídio, Melani O’Brien, disse que um veredicto de culpado pressionaria outros países a reconsiderar seu relacionamento com Israel, inclusive forçá-los a um embargo de armas.
Falando na cúpula do BRICS na Rússia na semana passada, Ramaphosa disse aos líderes mundiais que, juntamente com sua ação legal na CIJ, a África do Sul permaneceu “inabalável” em seu apoio ao estabelecimento de um Estado palestino, soberano, viável, com Jerusalém Oriental como capital e vivendo em paz sob as fronteiras de 1967. “Acreditamos que o mundo não pode ficar parado e assistir ao massacre de pessoas inocentes continuar”, concluiu.