“Espera-se que a sensibilidade de Lula seja maior do que a pressão da banqueirada e a subserviência de sua equipe econômica”
NILSON ARAÚJO DE SOUZA*
A política econômica da Faria Lima, esposada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad, está tentando tirar o pobre do orçamento e, como consequência, levando o presidente Lula a praticar estelionato eleitoral (não custa lembrar do que ocorreu com Dilma Rousseff). Todos nos lembramos da máxima forjada e propagada por ele durante a campanha: “vamos colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Essa mesma máxima foi repetida por um importante membro da equipe econômica, a propósito da então planejada reforma tributária, por ocasião de um seminário que organizamos em São Paulo, em meados do ano passado, para examinar o então arcabouço fiscal.
No seminário, com a participação de economistas de várias estirpes, mas todos apoiadores do governo Lula, concluiu-se, quase por unanimidade, que o arcabouço era mais flexível do que o “teto de gastos”, mas mantinha o essencial de seus limites, ao fixar um “teto” para aumento da despesa real (2,5% ao ano e 70% do aumento da receita real) e comprometer-se a zerar o déficit e começar a gerar superávit primário para pagar juros, estabelecendo metas acima do que havia sido precificado pela própria Faria Lima por meio da Pesquisa Focus.
AJUSTE FISCAL
No entanto, em lugar de fazer o “ajuste fiscal” pela via do corte da despesa, como querem os rentistas financeiros, Haddad se propunha a fazê-lo pelo aumento da receita. E começou por aí nas medidas iniciais enviadas ao Congresso. E, com isso, convenceu o presidente Lula, mas, em algum momento, sedento de atingir o déficit zero, encampou a gritaria da Faria Lima e dos setores mais atrasados do Congresso de que era hora de começar a cortar a despesa.
Ao mesmo tempo, começou a aparecer na superfície um problema que também havia sido diagnosticado naquele seminário: a equipe da Fazenda havia colocado as despesas sociais, que Lula, não inteiramente errado, chama de investimento (educação, saúde, previdência, salário, benefícios sociais), para brigar com o investimento, quando, na verdade, são complementares.
Isso porque, como havia um teto para o crescimento da despesa e as áreas sociais são, justamente, protegidas pela legislação, que, a bem do desenvolvimento econômico e social, não devem ser alteradas (piso constitucional para educação e saúde, aposentadorias, pensões e benefícios sociais reajustadas pelo salário mínimo, o qual, por sua vez, tem tido um aumento real), devendo, portanto, crescer acima do teto, a manutenção deste implicaria, certamente, na derrubada do já exíguo investimento. Por isso, o seminário propôs na época retirar o investimento dos limites do arcabouço.
MAIS INVESTIMENTOS
Mas Haddad não fez isso. Essa questão é de somenos importância para ele. Até porque o principal para ele não é liberar recursos para investimento. O central é conseguir o famigerado déficit zero para a seguir gerar superávit e assim dar mais garantias à Faria Lima de que vai “honrar seus compromissos”. E foi por isso que optou pelo caminho de cortar despesas. Mas optou por cortar as despesas que não promovem produção, emprego ou bem-estar, ou seja, que são literalmente supérfluas?
Refiro-me às despesas financeiras, que, nos últimos 12 meses encerrados em agosto, montam em 855 bilhões, que engordam a cada segundo, a cada minuto, a cada hora, a cada dia, a cada mês e a cada ano os já gordos bolsos dos rentistas; e as despesas tributárias (isenções fiscais), cujo montante anual, alardeado pelo próprio Haddad no começo do governo, é de R$ 600 bilhões, a grande maioria dos quais sem qualquer impacto na geração de produção, emprego e renda, como é seu objetivo.
Na época, Haddad chegou a falar numa “economia” de R$ 150 bilhões nas despesas tributárias, sendo que a Anafisco estimava uma cifra muito maior. Por que isso foi “esquecido”. Suspeita-se. E, por outro lado, não dá para comprar gato por lebre. Ou seja, acreditar que o ministro da Fazenda não tem a menor incidência sobre os juros estabelecidos pelo Banco Central, a Selic. Tem sim, e ele sabe disso. Se baixassem em três pontos percentuais a taxa Selic, já se “economizaria”, no mínimo, R$ 150 bilhões, que, somados aos R$ 150 bilhões de “economia” nas despesas tributárias, atingiriam o montante de R$ 300 bilhões, mais do que suficientes para cobrir o déficit e ainda gerar recursos para investimento.
REDUÇÃO DOS JUROS
E é possível a redução dos juros, mesmo dentro da lógica do chamado “mercado”, eufemismo para grandes bancos e grandes empresas, ou seja, os cartéis dos donos das finanças, em suma, a Faria Lima. Isto é, não se trata de nenhuma medida revolucionária.
Bastaria alterar a meta de inflação para os níveis médios do IPCA dos últimos quatros anos, que se situam em 4,83% (excluindo 2021, que foi um ponto fora da curva -10,06% -, e incluindo uma previsão para 2024 na faixa dos 4,42%, inflação ocorrida nos últimos 12 meses até setembro), podendo arredondar para 5% ou para o limite superior da meta atual (4,5%), que o Copom do BC, mesmo dentro da lógica financeirista, não teria como justificar a não flexibilização da política monetária.
E quem toma essa decisão? O Conselho Monetário Nacional, presidido pelo ministro da Fazenda, ou seja, Fernando Haddad, e integrado pela ministra do Planejamento e o Presidente do Banco Central, ou seja, com maioria do governo. Antes tarde do que nunca, alertei em artigo anterior.
ISENÇÕES FISCAIS
Mas, em lugar de ter algum nível de enfrentamento à Faria Lima e aos grandes beneficiários das isenções fiscais, o ministro da Fazenda prefere submeter-se a eles e praticar o estelionato eleitoral de tirar o pobre do orçamento, isto é, prefere propor um pacote fiscal que contemplaria a redução de direitos sociais (tais como os pisos da saúde e da educação, o reajuste real do salário mínimo e das aposentadorias, pensões e benefícios sociais).
O economista e professor da Unb, José Luís Oreiro, que participou na área econômica da comissão de transição nomeada por Lula, informou que essa comissão recebeu da equipe bolsonarista de Paulo Guedes uma lista de medidas que Bolsonaro adotaria se ganhasse as eleições, e essas medidas são escritas e escarradas as mesmas que Haddad estaria propondo agora.
Alega-se que a correlação de forças não permitiria dar os tímidos passos indicados acima. Enquanto prosseguir a política de submissão à Faria Lima, obviamente, não vai mudar a correlação de forças. A tendência é piorar. Correlação de forças é algo objetivo, mas pode ser alterada por ações subjetivas. Submissão aos que dominam a piora; fortalecimento dos dominados a melhora.
E não se pode fortalecer os dominados tirando seus direitos sociais e mantendo uma política de juros e uma política fiscal que sacrificam o investimento público e privado, a produção e o consumo. E, pelo que tem sido ventilado, o pacote se propõe a enrijecer mais ainda o tal do arcabouço, procurando colocar os gastos sociais em seus rígidos limites. Espera-se que a sensibilidade de Lula seja maior do que a pressão da banqueirada e a subserviência de sua equipe econômica.
(*) Doutor em economia pela Universidade Autônoma do México (Unam), pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB; presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo