Vassalagem às sanções de Washington contra a Rússia e autoexclusão do gás barato russo abalam alicerces da máquina industrial alemã e governo Scholz é detestado por três em cada quatro alemães
A Alemanha realizará eleições legislativas antecipadas em 23 de fevereiro de 2025, após acordo entre os partidos no governo e o maior partido de oposição, os democratas-cristãos (CDU), segundo o jornal Süddeutsche Zeitung. Pelo calendário regulamentar, a eleição seria em setembro.
Na semana passada, com a demissão do ministro das finanças, Christian Lindner, pelo premiê Olaf Scholz, a coalizão Semáforo [nome em referência às cores dos partidos componentes] entrou em colapso, com a saída dos liberal-democratas (FDP) e permanência dos social-democratas (SPD) e dos verdes (G), acarretando a perda da maioria no parlamento.
Entre as principais divergências, cortes nos programas sociais numa escala maior do que Scholz acreditava ser prudente abraçar em ano de eleição; medidas para reavivar a maior economia da Europa, em seu segundo ano de contração, via cortes de impostos e subsídios; pressão para o fornecimento de mísseis Taurus ao regime de Kiev, a que o premiê se opõe por temor ao repuxo dos russos, e adiamento de cumprimento de metas da transição climática.
Segundo Scholz, Lindner pretendia manter o fluxo de dinheiro para Kiev “através de cortes nas aposentadorias, através de corte do repasse para os municípios e corte do dinheiro que falta para a modernização do país” – claramente um programa para a derrota nas eleições.
Inicialmente, Scholz havia proposto que as eleições fossem antecipadas para 25 de janeiro, mas as demais forças políticas alemães pressionaram para que a situação de governo pato manco fosse enfrentada rapidamente, ainda mais com a vitória de Donald Trump nos EUA e sua ameaça de aumentar em 10% as tarifas sobre importações, o que atingiria especialmente a indústria automobilística alemã, o carro-chefe da máquina exportadora alemã.
Assim, Scholz deve apresentar um voto de confiança ao parlamento no dia 16 de dezembro, que irá perder, levando o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier a dissolver o Bundestag, e levar a eleições marcadas para dentro de 60 dias.
O ex-executivo-chefe da sucursal na Alemanha do megafundo norte-americano BlackRock e atual presidente dos democrata-cristãos, Friedrich Merz, já posa de candidato e vencedor.
ALEMANHA EM CRISE ABERTA
A bancarrota da Coalizão Semáforo não foi um relâmpago em céu azul, com a crise escancarada na Alemanha. Scholz e seus parceiros de coalizão encabeçaram a subordinação da Alemanha às sanções contra a Rússia e seu gás barato, na esteira da guerra por procuração da Otan na Ucrânia. Empurraram o país para uma recessão que já completa dois anos e para o risco de desindustrialização. Ficaram impassíveis quando o gasoduto Nord Stream foi explodido.
E Berlim se tornou o segundo maior fornecedor de armas e financiamento aos neonazistas de Kiev depois de Washington, além de ser avalista assumido do genocídio perpetrado por Israel em Gaza, que chama de “direito de defesa”.
Também caninamente Scholz anunciou em julho ter sido informado por Washington de que irá reinstalar na Alemanha os mísseis de alcance intermediário – eliminados no final da década de 1980 pelo Tratado INF, assinado por Reagan e Gorbachev, anulado por Trump em 2019. O que irá pintar no país um alvo da guerra nuclear.
DESPENHADEIRO DA INDÚSTRIA AUTOMOBILISTA
Sem o gás russo barato e com a alta do preço da energia, a indústria alemã engasgou e a desindustrialização se tornou uma ameaça premente. A ponto de o carro-chefe da máquina exportadora alemã, o setor automobilístico, anunciar, como acaba de fazer a Volkswagen, fechamento de fábricas, demissões em massa e corte de salários de 20%.
BMW e Porsche anunciaram quedas drásticas nos lucros em setembro, em relação ao ano passado, respectivamente 83% e 26%. Em comparação com o ano passado, a produção industrial caiu 4,6 % em setembro. Ao longo do ano, a produção de automóveis caiu 15%, numa base já fraca em relação ao ano anterior.
Segundo estudo de dois respeitados economistas alemães, Tom Krebs e Isabelle Weber, sob a crise energética de 2022 (o rompimento de Berlim com o gás russo, para aderir à guerra da Otan contra a Rússia na Ucrânia) os trabalhadores alemães foram submetidos às “maiores perdas salariais reais da história alemã do pós-guerra”, muito piores do que no crash de 2008 e no lockdown da pandemia.
No início de 2024, eles explicitaram, “a produção agregada seguia 7% abaixo e os salários reais 10% abaixo” dos valores de antes da crise. O freio no preço da energia – apontaram – chegou tarde demais, fez os cidadãos se sentirem largados à própria sorte. Krebs foi conselheiro de Scholz e é membro científico da Comissão do Salário Mínimo. Weber integrou o conselho consultivo do atual ministro da Economia, o verde Robert Habeck.
De acordo com o FMI, a Alemanha será o único país do G-20 que terminará o ano em recessão. Assim, não chega a ser surpreendente que 3 em cada 4 alemães reprovem Scholz e seu governo, segundo recente pesquisa do INSA.
De acordo com as pesquisas, os democrata-cristãos devem vencer as eleições, tendo cerca de 30%, com a Alternativa para a Alemanha em segundo e os social-democratas em terceiro. A Aliança Sahra Wagenknecht está em quinto, atrás dos verdes. É possível que os liberal-democratas não superem a cláusula de barreira dos 5%.
O recém falido governo alemão também tem a duvidosa glória de ter sido aquele que, oitenta anos após a guerra de extermínio nazista, enviou tanques alemães contra a Rússia, na provocação em Kursk. E também o que lançou uma guerra tarifária contra a China nos automóveis elétricos.
O OFERECIDO MERZ
Nesse contexto de início da campanha eleitoral, o provável candidato democrata cristão, o banqueiro Merz, anunciou publicamente que daria à Rússia um ultimato sobre a questão da Ucrânia se ganhasse as eleições. Ele prometeu fornecer ao regime de Kiev mísseis Taurus para bombardear o território russo se este ultimato não fosse aceito dentro de 24 horas.
Uma provocação ainda mais imbecil dado que, quanto a tais questões, na Alemanha sob ocupação há sete décadas, como todos sabem, decisões desse calibre são tomadas em Washington, não em Berlim.
Além de que o vazamento de um diálogo entre altos militares alemães em que estes admitiam explicitamente que tais mísseis teriam que ser operados por alemães e ter alvos e dados fornecidos pela Alemanha, inclusive, citando como alvos ‘hipotéticos’ a Ponte da Crimeia, implicaria na entrada da Alemanha diretamente na guerra contra a Rússia – como já bem advertido por Moscou.
E, claro, uma disposição à vassalagem a Washington que não parece ter peias.
Nos últimos meses, uma verdadeira histeria percorre os círculos de elite alemães, que clamam pelo “rearmamento” contra a Rússia, inclusive havendo sido estabelecido um fundo especial de 100 bilhões de euros para esse fim e já se discute a urgência de mais dinheiro para canhões e menos para manteiga.
Uma das entusiastas do rearmamento é a ministra das Relações Exteriores, a verde Annalena Baerbock, que já advoga que é pouco os 2% do PIB que Trump exige dos europeus para armas e prefere 3-3,5%.
A imediata votação de um novo fundo para o rearmamento foi defendida pelo vice-premiê, o verde Habeck, argumentando que como era previsível que, após a eleição, “não poderemos mais aprovar resoluções que exijam uma maioria de dois terços do centro democrático”, o novo fundo especial deve ser decidido antes da dissolução do Bundestag. Ou seja, para ele, após a eleição não haverá mais uma maioria a favor da guerra e do rearmamento e, por isso, quer criar um fato consumado de antemão.