IRAPUAN SANTOS
Os feriados nacionais sempre trazem em si a ideia de congraçamento e mesmo de compensação no imaginário do povo de um País.
Não foi por outra razão que em “Chão de Estrelas” Sílvio Caldas e Orestes Barbosa cunharam alguns dos versos inesquecíveis do nosso cancioneiro popular:
“Nossas roupas comuns, dependuradas,/ Na corda, qual bandeiras agitadas,/ Pareciam um estranho festival…/ Festa dos nossos trapos, coloridos,/ A mostrar que nos morros, mal vestidos/ É sempre feriado nacional…/”
O agora feriado nacional de 20 de novembro, em memória a Zumbi dos Palmares, ao lado do feriado de 21 de abril, dedicado a Tiradentes, são personificações de duas figuras históricas que condensam a saga do povo brasileiro em busca de sua afirmação enquanto Nação, do alcance da soberania e do desenvolvimento da capacidade de superar as profundas desigualdades sociais que, ainda hoje, afligem o nosso povo.
Ainda é preciso aprofundar o significado da resistência do Quilombo dos Palmares, que durante quase um século enfrentou a sanha de portugueses e holandeses para defender o direito de construir seu próprio destino, se libertar do jugo colonial, do açoite, da barbárie escravocrata e construir uma sociedade fraterna. Por isso, sua luta foi fundamental ao longo dos séculos como exemplo de resistência e coragem.
O CNAB – Congresso Nacional Afro-Brasileiro – foi fundado em setembro de 1995, no 3º centenário da imortalidade de Zumbi dos Palmares, conforme consta de nossos assentamentos, sob a liderança e a presidência do Professor Eduardo de Oliveira.
Ainda no III Congresso da entidade, realizado em agosto de 2008, que tinha como tema “Unir a nação contra o racismo, pelas cotas e pelo desenvolvimento”, discutindo e analisando as teses congressuais elaboradas por Carlos Lopes, o CNAB aprovou a avaliação de que “ Zumbi dos Palmares, nascido no Brasil, representa a primeira intercessão entre duas vertentes do movimento de libertação dos negros no Brasil: a que luta por uma sociedade própria, fora da sociedade escravagista – [e por isso não necessariamente no Brasil ] – e àquela que luta pela liberdade dentro da sociedade escravagista”.
Para Edson Carneiro, em O Quilombo dos Palmares,(1958, p. 25), “O quilombo foi, portanto, um acontecimento singular na vida nacional, seja qual for o ângulo por que o encaremos. Como forma de luta contra a escravidão, como estabelecimento humano, como organização social…” Prossegue o autor: “…E, embora em geral contra a sociedade que oprimira os seus componentes, o quilombo aceitava muito dessa sociedade e foi sem dúvida, um passo importante para a nacionalização da massa escrava”.
É indispensável concluir que a luta pela liberdade conduzida por Zumbi dos Palmares, que cresceu e se ampliou até desaguar, dois séculos depois, na campanha abolicionista, que fundiu a luta pelo fim da escravidão com a luta pela República e pelo progresso – e por isso teve caráter amplo, embora ancorada na resistência tenaz dos escravizados contra a opressão – demonstra que o caminho era lutar dentro da sociedade escravagista até derrubá-la.
Um herói nacional é tanto mais profundo e arraigado na história de um País quando sua ligação visceral com o povo atinge a dimensão da poesia, da música e da cultura nacional.
É impossível mencionar tudo que há, pois não caberia neste breve texto, mas é justo citar alguns fatos emblemáticos.
Em 1º de maio de 1965, sucedendo cronologicamente o Show Opinião, de grande impacto na resistência ao golpe de 1964, é lançado no Teatro de Arena em São Paulo, a peça “Arena Conta Zumbi”, de Augusto Boal e Guarnieri, sob a direção do primeiro, com música de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, tendo no palco Dina Sfat, Lima Duarte, Marília Medalha, Milton Gonçalves, Anthero de Oliveira e Zezé Mota. O espetáculo faria sucesso nos Estados Unidos, México, Peru, Argentina, Uruguai, Portugal, Áustria e foi sucedido pelo “Arena Conta Tiradentes”. Edu Lobo, então com 21 anos, autor de todas as músicas lançou em seguida o LP “Edu Canta Zumbi”, onde se destacam algumas das canções como “Upa Neguinho” que virou sucesso nacional na voz de Elis Regina.
Em 8 de dezembro de 1975, no Rio de Janeiro, o sambista Antonio Candeia Filho, crítico do gigantismo da Portela e demais Escolas de Samba, reúne nomes como Paulinho da Viola, Waldir 59, Wilson Moreira, Élton Medeiros, Nei Lopes, Monarco e cria O Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, de cores dourado, branco e lilás, tendo como símbolo uma palmeira em homenagem ao Quilombo dos Palmares.
Em 1978 é lançado em São Paulo o 1º exemplar dos Cadernos Negros, que ao longo dos anos teve várias publicações e grande participação de ativistas e intelectuais negros. O professor Eduardo de Oliveira participa da edição com 6 poemas, onde se destacam “Túnica de Ébano” e “Zumbi dos Palmares”. Em 1980, prefaciando o livro de poemas “Túnica de Ébano” de Eduardo de Oliveira, o grande teórico Clóvis Moura, assim se referiu ao poema “Zumbi dos Palmares” e ao autor:
“… O seu passado negro-africano reafirma-se na consciência dos heróis negros brasileiros. Como não podia deixar de ser, a memória de Zumbi é invocada:
“Foste um guerreiro audaz e libertário,/ fustigando o labéu da escravidão./ Sendo, a um só tempo, herói e visionário,/ não desejaste e não morreste em vão./ Teu vulto negro e forte, foi o ideário/ de toda uma sofrida geração/ que sob a ação do teu poder lendário,/ pôs-se a caminho da libertação/…… Hoje segues à frente do meu povo/ colhendo triunfos, através dos anos, / ante os clarões do sol de um mundo novo!‟
Conclui Clóvis Moura: “Aqui é o protesto quilombola, como o classifiquei. Ao exaltar Zumbi, liga sua memória às lutas atuais dos negros brasileiros que têm no chefe de Palmares o seu símbolo maior”.
Em 1988, no centenário da Abolição, a Escola de Samba Vila Isabel vence o desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro, com o enredo “Quizomba, Festa da Raça” de Martinho da Vila, cujo samba histórico foi composto por Jonas, Rodolfo e Luiz Carlos da Vila e tem como abertura os versos:
“Valeu Zumbi, o grito forte dos Palmares/ Que correu terras, céus e mares/ Influenciando a Abolição.”
No ano de 2000, em 27 de novembro, em comemoração à Semana da Consciência Negra e o 305° aniversário da imortalidade de Zumbi dos Palmares, o CNAB promove o espetáculo “Martinho Canta Zumbi”, no Theatro Municipal de São Paulo, com Martinho da Vila, Martinália e Carmen Queiroz, apresentado por Aldo Bueno e dirigido por Fernando Faro.
Em 21 de março de 2005, em comemoração ao Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, o CNAB promove o lançamento do primeiro registro em CD do “Hino à Negritude”, de autoria do Professor Eduardo de Oliveira, gravado por Carmen Queiroz, arranjado pelo maestro Laerte Braga, na Câmara Municipal de São Paulo. O Hino à Negritude é um dos hinos oficiais brasileiros, devendo ser executado em todas as solenidades, conforme Decreto presidencial promulgado em 28/05/2014. É o único hino oficial brasileiro com menção expressa a Zumbi dos Palmares, nas estrofes:
“Dos Palmares os feitos históricos/ São exemplos da eterna lição/ Que no solo Tupi Nos legara Zumbi/ Sonhando com a libertação/ Sendo filho também da Mãe-África/ Aruanda dos deuses da paz/ No Brasil, este Axé/ Que nos mantém de pé/ Vem da força dos Orixás”.
CAMISA DE FORÇA
Não obstante tudo que já avançamos no Brasil e os revezes que sofremos, ainda temos muito o que fazer. Nosso País continua submetido aos ditames do rentismo que suga o fruto do nosso trabalho e, como consequência, ainda temos sobrevivendo em favelas e mocambos, com assistência médica parca e salários miseráveis, grande parte do nosso povo. Segundo o censo demográfico 72,9% dos moradores de favelas são pretos ou pardos; dos mais de 850 mil presos no país, cerca de 70% são negros; segundo o IBGE, em 2022, os pretos e pardos tinham uma taxa de desocupação maior do que a dos brancos, e estavam mais representados na informalidade: a proporção de pessoas pretas ou pardas na informalidade foi de 46,8% entre as mulheres e 46,6% entre os homens. Já entre os brancos, a proporção foi de 34,5% entre as mulheres e 33,3% entre os homens. Não tenhamos dúvida que quando falamos de negros e pardos, falamos da esmagadora maioria dos brasileiros. Este é o mapa da desigualdade social no Brasil.
Enquanto isso, agora mesmo, estamos combatendo a tentativa de aplicação do nefasto “ajuste prá banqueiro ver”, em gestação, que tenta jogar nas costas do povo a culpa pelos desequilíbrios causados pelos juros astronômicos auferidos pelos parasitas dos bancos.
Não foi para isso que elegemos o atual governo. Os compromissos com a industrialização do país, ciência e tecnologia, a geração de empregos de qualidade, a ampliação dos investimentos na educação, saúde, transportes, segurança pública, o fim da miséria e da fome têm que estar acima dos interesses do capital especulativo.
O Brasil não cabe mais na camisa de força da submissão do Banco Central aos banqueiros.
Independência Já! Antes que seja tarde!