BETO ALMEIDA (*)
“Foi-se a época em que a escrituração de nossas obrigações se fazia no estrangeiro, confiada a bancos e intermediários: não mais nos impressiona a falsa atitude filantrópica dos agentes da finança internacional, sempre prontos a oferecer soluções fáceis e vantajosas”
Getúlio Vargas, Novembro, 1933
Em razão de uma interpretação manipulada e colonizada sobre todo o período conhecido como Era Vargas, importantíssimas políticas estatais adotadas em benefício amplo do povo brasileiro foram deliberadamente escondidas da história política brasileira ou apresentadas com overdose de preconceitos e distorções seja por representantes do pensamento liberal conservador (conduzindo a linha editorial da grande mídia e com repercussões no mundo acadêmico), seja por representantes de certas alas à esquerda que, equivocadamente, combateram o período getulista. Ainda hoje, insistem em desconhecer grandes conquistas para o país naquele período. Uma dessas políticas escondidas é a Auditoria da Dívida Pública realizada pelo governo Getúlio Vargas, entre 1931 e 1945, ignorada, em boa medida pelas forças progressistas que defendem, hoje, a realização de uma auditoria, mas ignoram o passado.
A decisão de realizar uma Auditoria da Dívida Externa, acompanhada pela suspensão de seu pagamento, é decisão soberana que só pode ser adotada por um governo dotado de compromisso sólido e profundo com a transformação do país. Sem se intimidar com as inevitáveis pressões da tirania financeira. A Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, chegou ao poder por meio de um movimento de massas corporificado numa decidida aliança cívico militar, armada, que recebe enérgicas manifestações de apoio popular em sua trajetória de Porto Alegre até o Rio de Janeiro. O Trem da Revolução, que conduzia a direção cívico e militar do movimento, foi obrigado a paralisar sua marcha em inúmeras cidades, por solicitação espontânea do povo do lugar, que exigia ouvir a palavra e os compromissos de Getúlio Vargas. Era um movimento que pretendia virar uma página a história semicolonial em que o Brasil ainda estava imerso. E virou. Para a grande mídia conservadora a Revolução de 30 não passou de um golpe ditatorial, visão que influenciou uma ala das forças progressistas, apesar a anistia imediata aos presos e perseguidos políticos da República Velha, incluindo os líderes da Coluna, inclusive o próprio Luiz Carlos Prestes, que fora convidado para ser o chefe militar da Revolução, mas, já influenciado pelo stalinismo, declinou do convite que havia aceito. Todos os demais líderes da Coluna aderiram ao processo revolucionário.
Tudo começa com o estranhamento por parte de Getúlio Vargas e de seu Ministro Oswaldo Aranha em relação à quantidade de contratos que eram obrigados a firmar, como parte da rotina administrativa do governo. Uma firme e corajosa desconfiança em relação ao papel dos credores – em sua maioria bancos ingleses – foi o ponto de partida para que, em 1931, Getúlio assinasse o decreto 20631, em novembro de 1931, determinando a criação da Comissão de Estudos Econômicos e Financeiros dos Estados e Municípios. Valentim Bouças é encarregado da Secretaria Técnica desta Comissão, cuja finalidade é “colecionar todos os contratos de empréstimos realizados pela União, Estados e Municípios” (Bouças). Há que se registrar que a Era Vargas havia herdado uma situação em que estados e municípios possuíam uma larga autonomia para endividamentos externos e internos, eivados de irregularidades de toda sorte. Mais tarde, o governo Vargas vai terminar com esta deletéria autonomia que, chegou ao ponto, para dar um exemplo, em que o estado do Amazonas havia fixado concessões para a entrega de 6 grandes fatias do território estadual para a Standard Oil e empresas do grupo Rockefeller explorarem petróleo. Getúlio, ao lado das medidas preparatórias para a Auditoria, cancelou todas estas concessões, decretando que apenas o governo federal tinha legitimidade para firmar acordos desta natureza. A visão soberana se impunha.
Enquanto submetia a exame criterioso todos os contratos de empréstimos realizado pelos estados e municípios, o governo Vargas já determinou, também, a suspensão do pagamento da dívida externa, antes de mesmo dar início formal à Auditoria, o que viria a ocorrer em 1932, por meio do decreto 22089, determinando, especificamente, “a fiscalização do serviço de empréstimos externos dos Estados e Municípios” (Bouças) . Não por acaso, a indevidamente chamada Revolução Constitucionalista, de 1932, pela qual a oligarquia paulista queria evitar a evolução política para uma nova Constituição (Getúlio já havia convocado eleições para a Constituinte), e regressar à velha Constituição da República Velha, foi apoiada firmemente por bancos ingleses. Uma espécie de movimento preventivo dos banqueiros para manter o endividamento colonial e irregular brasileiro, com grandes privilégios para os credores.
O início da Auditoria permitiu comprovar descontrole e um sem número de irregularidades nos papéis que regulavam a Dívida Externa Brasileira, inclusive, dívidas inexistentes. Segundo relatório de Valentim Bouças, a Auditoria revelou que “por frequentes vezes o descaso com a causa pública de alguns administradores, já que por inadvertência, anuíram em certas cláusulas deprimentes para o nosso brio, já por demonstrarem escrúpulos ao assumirem obrigações muitas vezes superiores às reais possibilidades dos Estados e Municípios” (Bouças).Verificou-se, também, que muitos destes contratos de empréstimos foram firmados com dose de desídia e má-fé por parte dos intermediários e banqueiros, o que anulava qualquer boa vontade por parte dos administradores, se houvesse.
O processo de renegociação da dívida brasileira envolveu 6 estágios, sendo o primeiro deles iniciado pela suspensão do pagamento da dívida externa pública, seja federal, estadual e municipal.
O segundo estágio correspondeu à renegociação propriamente dita, com o governo conseguindo a suspensão da amortização e a rolagem da dívida com títulos federais, obrigando-se a pagar apenas contratos mais antigos, de 1898 a 1914. Enquanto renegociava, mantinha a suspensão do pagamento dos demais empréstimos, estaduais e municipais, submetidos à Auditoria.
O terceiro estágio, denominado Esquema Oswaldo Aranha, começa por decreto presidencial de fevereiro de 1934, com validade até dezembro de 1938. Por ele, o Brasil conseguiu reduzir o pagamento dos juros, e adiou o pagamento das amortizações. Este esquema previa a divisão dos contratos em 8 tipos distintos, e a redução dos juros alcançou, a depender do tipo de empréstimo, em 62%, 70% 80% e até 82% em cada caso.
O quarto estágio da Auditoria ocorre em 1937, após o advento do Estado Novo, quando o governo determina, novamente, a suspensão de qualquer pagamento de dívida externa, além de optar pelo controle estatal do câmbio e a imposição de severas restrições à importação de bens e serviços, bem como à remessa de lucros e dividendos. Assim, por meio da Auditoria, ficava bem demarcada a opção do governo Vargas pela industrialização interna, pela não submissão a pressões dos credores internacionais e pela prioridade ao desenvolvimento do mercado interno. Estas medidas complementavam decisões adotadas na Constituição de 1934, quando o governo Vargas conseguiu aprovar a nacionalização progressiva dos bancos, bem como o monopólio estatal dos seguros e resseguros, combinada à criação de um Banco Estatal de Seguros, existente até hoje, muito embora o monopólio estatal dos seguros tenha sido extinto em 2004, sendo Antonio Palocci o ministro da Fazenda, medida altamente comemorada pelo mercado de seguros e resseguros.
É preciso que se diga que o Estado Novo, paralelo à restrição de direitos democráticos em vários países, como EUA e Inglaterra, face ao pré-guerra, foi o período em que se adotaram medidas estruturantes de grande peso, ao lado da Auditoria da Dívida externa. Cite-se a criação da Vale do Rio Doce, que viria a ser a maior mineradora do mundo, da Cia Siderúrgica Nacional, da Hidrelétrica de Paulo Afonso, do Estatuto da Lavoura Canavieira, da primeira experiência de reforma agrária e sindicalização rural, além da legalização do Salário Mínimo e dos Diretos Laborais da CLT, além da fundação da Previdência Pública.
O quinto estágio da Auditoria, estipulou uma regra nova, na qual o pagamento da dívida externa, desde que reconhecida legal pelo rigoroso exame dos contratos, dependeria de “capacidade de pagamento”, entendida como saldo na balança comercial, examinando-se os contratos com cada país. Esta opção beneficiava os EUA, de quem o Brasil estava recebendo investimentos importantes e para quem destinava o principal de suas exportações. Era o período da criação, já mencionada, da siderurgia nacional, com recursos norte-americanos, em contrapartida à permissão para a instalação da bases navais no Nordeste do Brasil, como parte do esforço de guerra contra o nazi-fascismo. Com o fim da Guerra, os EUA pretenderam manter as bases navais no Nordeste, mas Getúlio negou veementemente. Caso contrário, teríamos a Guantánamo brasileira.
Finalmente, o sexto estágio da Auditoria, em 1943, conhecido como Esquema Souza Costa, pelo qual a renegociação envolvia a redução do pagamento de juros, nas duas opções propostas pelo Brasil. O país pagaria, mas nas condições decididas soberanamente, com redução dos juros ou emissão de títulos com deságio.
Conclusão
A Auditoria da Dívida Externa brasileira permitiu resultados bastante significativos. Inicialmente, a redução da dívida em termos absolutos e relativos, foi superior a 60 por cento, em relação à dívida reconhecida pelo governo, após criteriosa auditoria. A relação entre a dívida externa e as exportações de bens, reduziu-se de 4,06%, em 1930, para 0,4 % em 1948. Além disso, o serviço da dívida externa sobre as exportações teve uma queda de 30 por cento, em 1930, para 7 por cento em 1945, quando Getúlio é derrubado por golpe militar.
Se analisarmos a Dívida Externa como uma ferramenta que organiza uma Armadilha contra o Desenvolvimento, pode-se concluir que todos os demais projetos de um governo que busca a industrialização e a regulamentação mais robusta de direitos laborais e previdenciários na história brasileira, dependem rigorosamente de uma disponibilidade de recursos o suficiente para dar estabilidade a esta significativa expansão do estado. Deve-se lembrar que nada disso foi tranquilo, porque o governo Getúlio Vargas sofreu 3 tentativas de golpes de estado, armados, em 1932 (que implicou numa guerra interna de 6 meses), de 1935, no equivocado levante comunista, e a tentativa de golpe dos Integralistas, e nos dois casos estava prevista a eliminação física do Presidente da República. A Auditoria da Dívida garantiu a execução de todo o vasto elenco de programas sociais, nenhum deles sacrificados para o pagamento dos empréstimos, ao contrário, eram a condição para executar os empréstimos, se houvesse disponibilidade de caixa.
A espinhosa situação enfrentada pelo Governo Vargas, contrasta com a oportunidade perdida pelo Governo Dilma, que, a seu favor, tinha uma Disposição Transitória Constitucional prevendo a Auditoria e, mais que isso, uma lei aprovada autorizando sua realização. Falaram mais alto os privilégios dos banqueiros que, no período, auferiram monumental concentração de recursos via Sistema da Dívida Pública, como consta dos documentos da Auditoria Cidadã da Dívida. O quadro atual se agrava, aponta para um crise financeira generalizada, enquanto a Dívida Pública, sem a realização de uma auditoria, converte-se no mais perverso instrumento de destruição do patrimônio público nacional, conduzindo o país a uma falência generalizada das empresas estatais, do sistema previdenciário, da universidade pública, dos estados e municípios, enquanto uma minoria de banqueiros é remunerada indecentemente por recursos públicos que são negados à atividade vital da sociedade, como saúde, educação, transporte, saneamento, moradia.
É determinante estudar e debater a Auditoria de Getúlio Vargas como meio de enfrentar a pedagogia colonial que prepara, conscientemente, a implosão de uma Nação que tem todas as condições de ser uma das mais prósperas e justas do mundo. O resultado global daquela Auditoria de Vargas foi uma vertiginosa industrialização que transformou o Brasil agrário num país com indústrias, com empresas estatais de porte, com direitos laborais, com direitos previdenciários, com investimentos em educação e cultura, chegando a alcançar um ritmo de crescimento industrial de 12 por cento ao ano, ou seja, superior ao crescimento registrado pela China na atualidade. Uma Auditoria da Dívida hoje revelaria que uma montanha de recursos públicos está sendo esterilizada, quando este país tem recursos de sobra, naturais e financeiros, para que aqui não existisse um único cidadão pobre!
(*)Beto Almeida é jornalista, Conselheiro da ABI e diretor da Telesur.
Fontes de Pesquisa
Relatório Valentim Bouças
Auditoria e Dívida Externa: lições da Era Vargas (Reinaldo Gonçalves)
Documentário “Vargas, a grande transformação do Brasil”, depoimento de Maria Lúcia Fattorelli
Discursos Getúlio Vargas – Editora José Olímpio