A Justiça retificou a certidão de óbito de Carlos Danielli, um dos principais líderes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), preso e torturado nas dependências do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo durante a ditadura militar.
No novo documento, é reconhecido que a morte do dirigente comunista não foi uma “morte natural”, mas sim uma “morte violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Preso em 1972, sem mandado judicial e submetido a brutal tortura por mais de 70 horas, seus inquisidores para forçá-lo a delatar os nomes e endereços de lideranças comunistas, especialmente o presidente do PCdoB, João Amazonas, Carlos resistiu com bravura – e até com ironia. “É disso que vocês querem saber? Pois é comigo mesmo, só que eu não vou dizer”, afirmou diversas vezes: “Só faço o meu testamento político”.
Depois de enfrentar por três dias o sangrento martírio – e sem entregar nenhum companheiro, – Danielli faleceu aos 43 anos. “Anemia aguda traumática” foi a justificativa usada pelo 2º Exército no atestado de óbito para encobrir as circunstâncias criminosas da sua morte. A prática era recorrente na ditadura militar. O atestado foi assinado pelos legistas Isaac Abramovitc e Paulo de Queiroz Rocha.
Os depoimentos de Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles, outros militantes políticos presos junto com ele, confirmaram que Carlos Nicolau Danielli morreu sob torturas na madrugada de 2 de janeiro de 1973, nas dependências do DOI-Codi em São Paulo.
“Foram apresentadas a mim e à minha esposa manchetes de jornais que anunciavam a morte de Carlos Danielli como tendo tombado num tiroteio com agentes policiais. Sob nossos protestos de que ele havia sido morto em consequência e a cabo das torturas que sofreu na OBAN, fomos ameaçados de termos o mesmo destino […] E ficamos durante cinco meses incomunicáveis, certamente, por termos assistido ao brutal assassinato de Carlos Nicolau Danielli”, relatou César Augusto, em depoimento ao Superior Tribunal Militar (STM).
“A violência que ele sofreu foi causada pelo Estado autoritário, um Estado ditatorial. Está escrito aqui. Isso é uma questão de justiça”, diz Amelinha Teles.
A decisão que alterou oficialmente a versão da causa mortis do militante do PCdoB atende a uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e vai reparar também essa injustiça contra outros 202 opositores da ditadura mortos durante o período em que vigorou o sangrento regime.
Os cartórios de todo o país estão sendo notificados para cumprir a decisão. A medida também obriga que os 232 desaparecidos durante o regime militar tenham, finalmente, direito a um atestado de óbito. E todos os registros devem indicar que essas pessoas foram vítimas da violência perpetrada pelo Estado. Foi a Comissão Nacional da Verdade quem reconheceu que o total de mortos e desaparecidos durante a ditadura é de 434.
Todos os registros devem indicar que essas pessoas foram vítimas da violência perpetrada pelo Estado. A Comissão Nacional da Verdade reconheceu que o total de mortos e desaparecidos durante a ditadura é de 434. Até então, as certidões de óbito das vítimas da ditadura só eram corrigidas após longas batalhas na Justiça.
Os familiares dos mortos não precisam comparecer ao cartório. “Elas serão contactadas no momento oportuno já com as certidões em mãos para que elas possam ter seu direito de reparação consagrado”, afirma Gustavo Renato Fiscarelli, vice-presidente do Operador Nacional do Registro Civil.
Carlos Nicolau Danielli foi enterrado como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na capital paulista. Após a promulgação da Lei de Anistia, seus familiares e amigos puderam sepultar seus restos mortais em Niterói (RJ), em 11 de abril de 1980.
Em nota, a Comissão Executiva do PCdoB ressaltou o papel Carlos Nicolau Danielli como dirigente partidário. “A decisão do CNJ […] é resultado de um processo de luta que envolve partidos políticos, organizações sociais, familiares de mortos e desaparecidos, juristas e personalidades democráticas”, destaca o partido, ao apontar uma correção à matéria do Jornal Nacional, da TV Globo, que chamou Danielli de “amigo do Partido Comunista do Brasil”.
Abaixo, a íntegra da nota:
Verdade e justiça para Carlos Danielli e demais mortos pela ditadura militar
A matéria no Jornal Nacional, da TV Globo, de 7 de janeiro, sobre a entrega de certidões de óbito corrigidas de vítimas da ditadura pelos cartórios, cumprindo resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constou o entendimento de que Carlos Nicolau Danielli era “amigo do Partido Comunista do Brasil”.
Cumpre retificar que Danielli foi dirigente do Partido desde a juventude e ocupava o posto de secretário de Organização do Comitê Central quando foi assassinado no DOI-Codi paulista, aos 43 anos, em 30 de dezembro de 1972, depois de quatro dias de torturas, comandadas pessoalmente pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. A falsa certidão de óbito da ditadura afirma que Danielli morreu de “anemia aguda traumática”, após “tiroteio” com agentes da repressão.
Seu assassinato ocorreu no auge da resistência à ditadura militar. Ele era um dos esteios do movimento guerrilheiro do Araguaia. No mesmo período foram também assassinados, no Rio de Janeiro, os membros da Comissão de Organização Luiz Guilhardini e Lincoln Oest, além do jovem Lincoln Bicalho Roque, igualmente membro do Comitê Central. A partir dessas execuções, a ditadura intensificou o cerco para o aniquilamento da Guerrilha do Araguaia.
A decisão do CNJ, que determina a emissão de certidões de óbito corrigidas de 202 mortos durante a ditadura, informando que essas pessoas foram vítimas da violência cometida pelo Estado, é resultado de um processo de luta que envolve partidos políticos, organizações sociais, familiares de mortos e desaparecidos, juristas e personalidades democráticas. Jornada da qual o PCdoB participa desde o início da luta pela anistia, em meados dos anos 1970. Dezenas de seus dirigentes e militantes integram a honrosa lista dos que tombaram no combate à ditadura, em defesa da democracia.
É uma jornada que ainda tem muito a conquistar, como a elucidação dos casos dos reconhecidos 232 desaparecidos durante a ditadura. E que seja assegurado às famílias o direito humanitário de sepultar os restos mortais de seus entes queridos. É preciso, também, a abertura de todos os arquivos do regime e a requisição de documentos públicos daquele período que se encontram em mãos privadas. Impõe-se, ainda, a punição aos que cometeram torturas e assassinatos.
A defesa da democracia e dos direitos humanos exige que a verdade e a justiça prevaleçam para que todas as sombras sinistras da ditadura sejam removidas e não sirvam de abrigo para novas aventuras golpistas para tentar implantar regimes de exceção e violência.
Brasília, 8 de janeiro de 2025
Comissão Executiva Nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)