Depois de negar peremptoriamente, através de seu ministro do Interior, Abdulaziz bin Saud bin Naif, que o jornalista saudita, Jamal Khashoggi, tenha sido morto nas dependêncas do consulado da Arábia Saudita, afirmando que tudo não passava de “mentiras ridículas” e de haver assegurado que o jornalista teria saído normalmente do local, os sauditas estão preparando um memorando onde assumem que Khashoggi morreu, de fato, no interior do prédio, através de um interrogatório que “teria dado errado”.
O interrogatório teria sido comandado por “um agente da inteligência” sem o conhecimento do príncipe Mohammed Bin Salman que comanda o país.
Jamal Khashoggi, que escreve para o jornal Washington Post, está desaparecido desde o dia 2 de outubro. Ele entrou no consulado da Arábia Saudita, em Istambul, naquela terça-feira, às 13:00 h, e desde então não foi mais visto. Sua namorada, que aguardou em vão, durante 11 horas seu retorno, informou do desaparecimento à polícia turca.
Segundo material publicado pelos jornais norte-americanos, tanto o WP, onde ele trabalhava, quanto o New York Times, a polícia turca teria áudios e vídeos que comprovam o desenrolar dos fatos: a entrada de Khashoggi no prédio, seu interrogatório e sua morte.
O NYT detalha, como numa horrenda história, daquelas que povoam cenas de filmes de Quentin Tarantino, que depois de morto o jornalista teria sido “esquartejado com uma serra óssea” especialmente trazida para a fase final do desfecho seguida do desaparecimento do corpo do morto.
Instrumento que teria sido utilizado por um “especialista em atópsia” entre os 15 agentes sauditas que desembarcaram no aeroporto de Istambul pouco antes do assassinato e que teriam ido embora em jatos particulares, já com o corpo desmembrado e acondicionado em “malas diplomáticas”.
BARBÁRIE
Desde então este macabro incidente adquiriu proporções crescentes e, ao expor as entranhas de um regime bárbaro – que tem sido notícia através das ações no Iêmen, um verdadeiro genocídio que ameaça de inanição 13 milhões de pessoas, além de um impiedoso bombardeio sobre a população civil –, tem complicado principalmente as relações entre os Estados Unidos e seu principal aliado no Oriente Médio, depois de Israel, a Arábia Saudita.
O presidente Trump, que em um primeiro momento disse que os Estados Unidos dariam uma resposta através de uma punição severa “caso fique comprovado que a ordem para matar o jornalista tenha partido do príncipe Bin Salman”, apresando-se a alertar, no entanto, que isto não seria no terreno econômico. Principalmente em se tratando do acordo de aquisição de US$ 110 bilhões em armas americanas pelos sauditas para, segundo Trump, “que não se perca nenhum emprego nos EUA” (as milhões de vidas iemenitas ameaçadas, além das milhares já ceifadas ou barbaridades, como a do crime não esclarecido no consulado, não viriam ao caso para qualquer consideração quanto à suspensão da venda de armamentos aos sauditas).
Até pouco antes da morte, Kashoggi, cuja trajetória inclui o desempenho de papéis sauditas de apoio a ações que interessavam à CIA, a exemplo da desestabilização do regime socialista afegão, tendo entrevistado, o depois proscrito e morto por um pelotão norte-americano, Osama Bin Laden, era próximo da própria família real saudita.
A saída dele da Arábia Saudita e refúgio nos Estados Unidos vem coincidir com as tensas contradições dentro do poder do reino da Casa Saud. Como foi amplamente noticiado, membros da realeza foram detidos acusados de corrupção e abuso de poder depois da indicação do príncipe Mohamed Bin Salman para o comando do país.
Kashoggi, longamente experimentado jornalista, teria dito em um de seus artigos que “as autoridades sauditas podiam e com razão ficar nervosas com Donald Trump na presidência”.
Foi o suficiente para que ele começasse a ser ameaçado e proibido de escrever a qualquer mídia, inclusive de tuitar. Emigrou para os Estados Unidos em 2017. Valendo-se de seus contatos com o serviço secreto norte-americano, foi se tornar articulista do Washington Post. Em seus artigos, entre outras denúncias, Kashoggi, antes partícipe das benesses do trono, agora se posicionava contra a agressão da Arábia Saudita ao Iêmen.
Teria a morte de Khashoggi resultado – como até aqui tudo indica – de uma ordem do próprio Bin Salman que não aceita qualquer contestação a seus atos? Ou teria sido – numa hipótese mais difícil de admitir – um incidente tramado para complicar a vida do príncipe que promete mudar as normas mais obscurantistas e tirar das mãos do extremismo religioso uma Arábia Saudita que até a pouco chegava-se ao ponto de proibir as mulheres de dirigir?
O fato é que já anunciaram que estão declinando de convite empresas a exemplo da Ford, do banco JPMorgan, entre outras, além de palestrantes a exemplo do ex-diretor da Google e da diretora do portal Haffington Post, antes com lugar garantido em um evento de grande porte, que estava sendo conhecido como “Davos no Deserto”, encontro que pretendia reunir os maiores bancos e empresas em Riad para darem início a um movimento de grandes proporções de modernização da atividade econômica saudita, com o qual Salman estaria propondo tirar o país da monocórdica dependência exclusiva no petróleo farto em seu subsolo.
A ONU, Espanha, Alemanha, França e Inglaterra estão entre os que exigem explicações convincentes da Arábia Saudita sobre a morte do jornalista.
RETALIAÇÃO
A imprensa oficial saudita respondeu a tudo isso dizendo que, a qualquer sanção, seu país retaliaria: “O reino afirma sua rejeição a quaisquer ameaças de miná-lo, seja por ameaçar com sanções econômicas ou pela repetição de falsas acusações. Também afirma que se recebe qualquer destas ações vai responder com mais forte ação e que “a economia saudita tem papel vital na economia global”.
Já o diretor-geral do canal de TV Al Arabiya, Turki Aldakhil, alertou os Estados Unidos que com tais ações “os Estados Unidos estariam apunhalando mortalmente sua própria economia” e que os preços do petróleo explodiriam a US$ 200 o barril.
Trump, que logo mandou o seu secretário de Estado, Mike Pompeo, se entender com os sauditas, já recuou e baixou o tom afirmando agora que “o príncipe Salman declarou de forma peremptória que não tem relação com os fatos” ocorridos no consulado com o jornalista e sugeriu que o jornalista teria sido morto por “assassinos agindo por conta própria”.
Parlamentares norte-americanos já manifestaram sua repulsa diante da leveza com que Trump passa a tratar a questão. O senador Chris Murphy, democrata do Connecticut, se declarou estupefacto ao ouvir a “ridícula teoria dos assassinos por conta própria” com a qual os sauditas pretendem sair incólumes em aliança com Trump.
NATHANIEL BRAIA