
“O Estado-Maior, que é o centro cultural da Sérvia, que foi bombardeado pela Otan e a América, agora deve ser entregue à América? É completamente inaceitável”, disseram os manifestantes, reunidos nos 26 anos do início do ataque da Otan a Belgrado
Milhares de manifestantes se reuniram na Sérvia na segunda-feira (24) para repudiar o projeto, da família Trump, de construir um hotel de luxo no local de um antigo quartel-general do exército iugoslavo destruído durante os 78 dias de bombardeio da Otan em 1999 à então Iugoslávia.
O protesto coincidiu com o Dia da Memória da Sérvia, que marca a data do início da campanha de bombardeio da Otan ao país, barbárie que completa 26 anos.
Os manifestantes se reuniram em torno das ruínas do antigo complexo militar, exigindo que o local fosse restaurado como um marco histórico e que os planos de ‘revitalização’ fossem descartados. Os manifestantes descreveram o complexo como “um monumento à agressão da OTAN” e se opuseram a “presenteá-lo” a desenvolvedores americanos. Mais exatamente, a Affinity Global Partners, encabeçada pelo genro do presidente Donald Trump, Jared Kushner.
Aliás, ainda mais após o Trump Gaza, parece que a famiglia Trump tem uma fixação mórbida por empreendimentos de luxo sobre escombros de guerras de agressão.
O projeto, que recebeu o aval do governo sérvio a pretexto de modernizar Belgrado, inclui um arrendamento de 99 anos para uma área de três quarteirões e propõe construir um hotel com a marca Trump, apartamentos de luxo, escritórios, lojas e um memorial para as vítimas do bombardeio. Ou, melhor dizendo, um deboche sobre as vítimas do bombardeio.
“O Estado-Maior, que é o centro cultural da Sérvia, que foi bombardeado pela Otan junto com a América, agora deve ser entregue à América? É assustador. Irônico e satírico”, disse um manifestante. “É completamente inaceitável”, acrescentou outro.
Vídeos compartilhados online mostraram multidões cantando slogans anti-Otan e segurando cartazes que diziam “a Otan e a Trump Tower” e “nunca esqueceremos”, ao lado das datas dos ataques aéreos de 1999. Os manifestantes agitavam bandeiras sérvias, bem como faixas de oposição à Otan e à UE. Alguns manifestantes agitaram bandeiras da Rússia, China, Coreia do Norte e Palestina.
“SEM ESQUECIMENTO, SEM PERDÃO”
O vice-primeiro-ministro da Sérvia, Alexandar Vulin, ao relembrar o 26º aniversário do início dos bombardeios pela Otan, afirmou que os sérvios “não querem, nem podem, nem ousam” esquecer ou perdoar a agressão da Otan.
“O século XX terminou com o último grande e impune crime: a agressão da OTAN à República Federal da Iugoslávia. Todas as guerras após 1999 são consequências diretas do assassinato de crianças sérvias pela OTAN e do direito internacional. Suas mãos estão cobertas de sangue”, declarou.
“Que Deus os perdoe, os sérvios não querem, não podem e não ousam”, enfatizou.
Também a porta-voz da diplomacia russa, Maria Zakharova, manifestou a solidariedade da Rússia ao povo sérvio, para “preservar a memória das vítimas da tragédia de 1999 e impedir tentativas de reescrever a história da crise iugoslava segundo a perspectiva ocidental”.
Para ela, a agressão da OTAN foi “um exemplo de barbárie moderna”, em que “os Estados Unidos e seus representantes abusaram do direito internacional, minaram a segurança na Europa e provocaram uma crise nas relações internacionais que não foi resolvida até hoje”.
78 DIAS DE BARBÁRIE
No dia 24 de março de 1999, com a agressão militar contra a Iugoslávia, bombardeada por 78 dias, passando por cima do Conselho de Segurança da ONU e da lei internacional, os EUA, sob o governo de Bill Clinton, explicitaram ao mundo a entrada em vigor da ditadura norte-americana sobre o planeta pós-dissolução da URSS.
Aliás, a que entrou em tamanho declínio atualmente que Trump foi reeleito clamando “MAGA” – ou seja, por fazer a América “Grande de Novo”.
Cerca de 2.300 mísseis de cruzeiro e 14.000 bombas foram lançados sobre o pequeno Estado soberano no centro da Europa. A agressão deixou cinco mil mortos e sequer foram poupados asilos de idosos, creches, escolas, fábricas, estações de tratamento de água, linhas de transmissão de energia e um trem de passageiros.
Até mesmo a TV estatal e a embaixada chinesa em Belgrado foram bombardeadas. A Otan despejou entre dez a 15 toneladas de urânio depletado, multiplicando por cinco os casos de câncer.
Estava aberto o caminho para os ataques ao Iraque, ao Afeganistão, à Líbia e a quem quer que prezasse pela própria soberania, “as guerras eternas”. O mundo estava de volta à lei da selva.
12 dias antes do bombardeio da Iugoslávia, a Otan havia anexado a Polônia, Hungria e República Checa, se expandindo para leste e violando os acordos para a reunificação alemã, e pondo em marcha a roda que levaria, nos dias atuais, ao conflito na Ucrânia.
O então primeiro-ministro russo Yevgeny Primakov, que estava a caminho de Washington para uma reunião com Clinton, mandou o avião dar meia volta quando soube do bombardeio, desbravando um caminho que conduziria aos BRICS e ao renascimento para leste, com a maioria global.
“Este não é apenas um ataque contra um país, mas um ataque contra toda a ordem mundial que surgiu após a Segunda Guerra Mundial”, ele advertiu então.
PROVOCAÇÃO DA CIA EM RACKAK
Para desencadear a agressão, os EUA montaram uma provocação com bandos de terroristas e traficantes albaneses, paparicados pela CIA, em Kosovo/Metodiha, o milenar berço da nação sérvia, alegando tratar-se de uma operação “humanitária”.
No ano passado, por ocasião dos 25 anos da agressão, o presidente dos comunistas russos, Gennady Ziuganov, assinalou que “os EUA, os anglo-saxões, os criadores da nova ordem mundial, estabeleceram a tarefa de esmagar todos os estados independentes. E usando a Iugoslávia como exemplo, eles mostraram como continuariam a acabar com a Federação Russa”.
“No mês de março, com vários anos de intervalo, ocorreram três atentados e três massacres americanos”, acrescentou Ziuganov. “A Iugoslávia foi bombardeada em 24 de março, o Iraque e a Líbia em outros 19 de março. Assim que os líderes dos países declararam a sua independência, caíram imediatamente sob fogo cruzado”.
“Quanto ao nosso país, tornamo-nos a primeira vítima da grande “revolução colorida”, que resultou no colapso traiçoeiro de uma grande potência – a URSS”.
Ziuganov lembrou do irmão do então presidente Slobodan Milosevic, Borislav, que era o embaixador iugoslavo em Moscou. “Ele e eu percorremos todos os escritórios, apelando às autoridades da época para que apoiassem mais decisivamente a Iugoslávia. Mas foi impossível encontrar uma resposta por parte do governo Yeltsin.”
CAMP BONDSTEEL
A Resolução 1244 do Conselho de Segurança garantia a soberania sérvia, mas Kosovo foi colocado sob intervenção da Otan. Em 2008 – mesmo ano em que o governo W. Bush anunciou o “convite” à Ucrânia para anexação -, o governo “provisório” do Kosovo, apoiado pelos EUA, declarou “independência”, o que jamais foi reconhecido por Belgrado. Washington obteve uma base imensa, Camp Bondsteel.
Depois de um golpe de Estado que derrubou seu governo, o presidente Milosevic foi levado para o Tribunal da Otan em Haia, onde acabou morrendo em condições suspeitas, depois de desmoralizar os pretensos “acusadores” e “juízes”, e continuar defendendo o direito da Iugoslávia à soberania e à liberdade.
Em seu livro de memórias, o general americano que chefiava a Otan na agressão, Wesley Clark, revelou que os planos para a guerra estavam “bastante avançados em julho de 1998”. A provocação de Racak foi realizada em janeiro de 1999. Para muitos analistas, foi a agressão à Iugoslávia a fagulha que reacendeu na Rússia a chama da soberania, explicando boa parte da trajetória depois vista com Putin.
PILGER: NÃO ESQUEÇAM A IUGOSLÁVIA
O saudoso cineasta John Pilger, em “Não Esqueçam a Iugoslávia”, registrou que o país era “uma federação independente e multiétnica, ainda que imperfeita, que se posicionou como uma ponte política e econômica durante a Guerra Fria” e um dos fundadores do Movimento dos Não Alinhados.
“Isto já não era aceitável para a Comunidade Europeia em expansão, especialmente para a Alemanha, que principiara um esforço para o Leste a fim de dominar o seu ‘mercado natural’ nas províncias iugoslavas da Croácia e da Eslovênia”.
“No momento em que os europeus se encontravam em Maastricht, em 1991, um acordo secreto fora lavrado; a Alemanha reconhecia a Croácia e a Iugoslávia era condenada. Em Washington, os EUA asseguravam que à sufocada economia iugoslava fossem negados empréstimos do Banco Mundial e a defunta Otan foi reinventada como o agente de força.”
“Numa conferência sobre a ‘paz’ no Kosovo, em 1999 na França, foi dito aos sérvios para aceitarem a ocupação pelas forças da Otan e uma economia de mercado, ou seriam bombardeados até à submissão. Foi o precursor perfeito dos banhos de sangue no Afeganistão e no Iraque.”
“Os trágicos acontecimentos na Iugoslávia em 1999 só foram possíveis porque os Estados Unidos sentiram um nível colossal de permissividade. O colapso do bloco socialista tornou as ações de Washington e Bruxelas incrivelmente autoconfiantes e egoístas. Escondendo-se atrás de slogans sobre a paz, cometeram atrocidades incríveis”, afirmou ao jornal russo Vzglyad o doutor em ciências políticas, o sérvio Stevan Gajic.
“Iraque, Líbia, Síria – todos estes países também são vítimas do ataque de 1999”, acrescentou. “É claro que essas ações chocaram outros grandes Estados. A Rússia e a China ficaram chocadas com a impunidade da agressão e estão agora ajudando a mudar a ordem mundial que foi criada naquela época.”